O estúdio onde foi rodado o filme "Mulheres à beira de um ataque de nervos", em Madrid, fica a poucos metros da sala onde trabalha Cristina Muñoz, mas ela não parece nervosa, apesar de não atuar em nenhuma comédia, e sim num roteiro de filme de terror. Muñoz é a codiretora do Plano Nacional Frente à Resistência aos Antibióticos, uma iniciativa espanhola que tenta frear uma das maiores ameaça à humanidade. Os medicamentos contra as bactérias estão deixando de funcionar, a uma velocidade agora acelerada pelo consumo excessivo e incorreto durante a pandemia de covid-19. A cientista convida a imaginar o dia a dia sem antibióticos, um horripilante mundo onde qualquer infecção poderia ser letal. Sem cesarianas, sem transplantes de órgãos, sem operações de menisco, sem prótese de quadril.
“Seria dar um passo atrás de quase 100 anos nos avanços médicos”, adverte Muñoz. “Aconteceriam coisas que nem nos ocorre pensar, como que uma criança caia, abra o joelho, seja levada ao hospital e o médico lhe diga que não há nada a fazer, que sente muito”, explica. Algumas doenças bacterianas —como a pneumonia, a tuberculose, a gonorreia e a salmonelose - já estão a ficar sem tratamentos eficazes. A quimioterapia, que favorece as infecções microbianas nos pacientes com cancro ao reduzir as suas defesas, também seria uma prática de alto risco na ausência de antibióticos. “Deixaríamos de curar as pessoas, mas também os animais. Não poderíamos produzir alimentos saudáveis”, adverte Muñoz. A um regresso das enfermidades do século XIX se somaria também a fome.
Nesta quinta-feira começa a Semana Mundial de Consciencialização sobre o Uso dos Antimicrobianos, e as autoridades tocam as trombetas do apocalipse. Um relatório elaborado para o Governo britânico alertava em 2016 que os micróbios resistentes aos fármacos - sobretudo as bactérias - já matavam 700.000 pessoas por ano no planeta, e que se poderia chegar a 10 milhões de óbitos em 2050, mais do que os causados pelo cancro. O microbiologista Bruno González Zorn alerta que a covid-19 piorou a pandemia silenciosa das superbactérias. “Pode ser que os 10 milhões de mortes já não ocorram em 2050, mas sim em 2040 ou em 2030″, adverte.
As bactérias se multiplicam a cada 20 minutos e às vezes sofrem mutações que são, por acaso, um escudo contra algum antibiótico. E o mais inquietante é que podem transmitir esses novos genes de resistência a outras bactérias próximas, inclusive de outras famílias. “É como se eu aprender alemão e transmitir essa capacidade a você”, explica González Zorn, catedrático da Faculdade de Veterinária da Universidade Complutense de Madrid. Quantos mais antibióticos são usados, mais as bactérias evoluem para resistir a eles.
González Zorn afirma que está se formando “uma tempestade perfeita” e mostra os dados dos hospitais espanhóis durante a primeira onda da covid-19. De fevereiro a março de 2020, cresceu em 400% o uso de azitromicina, um antibiótico que foi muito receitado, de forma desesperada, para a eventualidade de que funcionasse contra o vírus SARS-CoV-2. O consumo de doxiciclina aumentou 517%. Na Espanha, estes níveis voltaram rapidamente à normalidade, mas continuaram descontrolados em outras regiões do mundo, como a América Latina. “Durante a pandemia foram utilizadas tantas carbapenemas [um tipo de antibióticos] que em alguns países, como o Chile, temos os níveis de resistência que esperávamos ter em 2030. Aceleramos 10 anos. Estamos muito alarmados”, afirma o pesquisador.
O microbiologista é um dos 15 membros de um grupo internacional de cientistas recém-criado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para identificar quais antibióticos são essenciais para a saúde humana, com o objetivo de blindar seu uso para que continuem funcionando. Estes fármacos são uma espécie de tropa de elite dos medicamentos. Se forem necessários e não derem conta, depois deles não há nada. São o último recurso. E as carbapenemas são justamente uma destas últimas balas.
A subsede europeia da OMS lançou um alerta em fevereiro: “Não permitamos que a crise da covid-19 se transforme em uma catástrofe de resistência aos antimicrobianos”. Em alguns países, o cenário é horripilante. Médicos do Hospital Almenara, em Lima, advertiram para o uso “irracional e indiscriminado” de antimicrobianos no Peru durante a pandemia. Especialistas nos Estados Unidos, Índia, México e outros países também fizeram soar os alarmes.
A microbiologista holandesa Ana Maria de Roda Husman adverte que os mecanismos de resistência, em princípio, só precisam aparecer uma vez. “Então a caixa de Pandora já se abriu”, afirma. Sua equipa, do Instituto Nacional para a Saúde Pública dos Países Baixos, detectou uma grande quantidade de bactérias resistentes a carbapenemas nas águas residuais do país. As tubulações dos hospitais, e também as dos lares, contribuem para disseminar superbactérias na natureza. A ameaça de combinações inimagináveis está sobre a mesa. Um homem tampa o nariz em frente ao rio Isakavagu, destino dos dejetos das fábricas de antibióticos de Patancheru, um polo industrial próximo a Hyderabad, na Índia, em uma imagem de 2008. Mahesh Kumar A (AP)
Husman alerta que “os próprios fabricantes de antibióticos podem ser um problema, especialmente em regiões onde não existem leis de resíduos”. A pesquisadora cita o caso de uma fábrica de azitromicina a 25 quilómetros de Zagreb, na Croácia, que contaminou o rio Sava, já colonizado por uma rica comunidade de bactérias resistentes a antibióticos. Noutros países, como a Índia, a gravidade da situação dispara. Em 2007, um estudo encontrou níveis inauditos de antibióticos nas águas vertidas no rio Isakavagu por uma fábrica de tratamento que atende 90 fabricantes de medicamentos genéricos em Patancheru, uma zona industrial próxima à cidade de Hyderabad. A concentração do antibiótico ciprofloxacino no rio alcançava 31 miligramas por litro, uma dose 1.000 vezes superior ao limite tóxico para algumas bactérias.
O microbiologista clínico Rafael Cantón recorda de quando começou a trabalhar, em 1988, e fazia testes de laboratório para determinar a suscetibilidade de uma bactéria a diferentes antibióticos. “Antes o habitual era ver tudo S, a letra inicial de sensível. Agora a maioria dos valores é R, de resistente. Costumamos estudar 20 antibióticos [para cada infecção], e 15 vezes por ano nos deparamos com uma situação dramática: tudo R. Não temos opções terapêuticas para estes casos”, lamenta Cantón, chefe de Microbiologia do Hospital Ramón y Cajal, em Madri.
As autoridades europeias calculam que as superbactérias já matam 33.000 pessoas por ano no continente. A Agência Espanhola de Medicamentos e Produtos Sanitários, onde trabalha Cristina Muñoz, fala de 4.000 mortes na Espanha, o triplo das causadas por acidentes de tráfego. Apesar dos alertas, a última pesquisa Eurobarómetro mostrava que 42% dos espanhóis haviam tomado antibióticos em 2018, frente a 32% do total da UE. Um em cada três pesquisados na Espanha pensava, equivocadamente, que os antibióticos curam resfriados, quando na verdade estes são provocados por vírus, não por bactérias.
Rafael Cantón lamenta que, apesar destas cifras, a pandemia de supermicróbios seja praticamente invisível. “Não há coletivos de pacientes que se queixem da resistência a antibióticos”, afirma. É um silêncio surpreendente, porque 6% dos internados em hospitais adquirem uma infecção no próprio centro, depois de intervenções como a colocação de uma sonda urinária ou a intubação para a respiração artificial, segundo um estudo promovido pela Sociedade Espanhola de Medicina Preventiva, Saúde Pública e Higiene.
“Há menos infecções adquiridas nos hospitais, metade que em 1990, mas as adquiridas agora são mais problemáticas”, adverte Cantón. “Chamamos isso de capitalismo genético. Uma bactéria que é resistente tende a permanecer e tem mais possibilidades de adquirir ainda mais mecanismos de resistência. É como alguém que já tem dinheiro, que tem mais facilidade para ganhar mais dinheiro”, compara.
O especialista reconhece o “tremendo pico” no consumo de antibióticos nos hospitais durante a primeira onda da pandemia. “Isso recrudesceu problemas que já tínhamos, e outros apareceram”, aponta Cantón em referência à proliferação de bactérias resistentes às carbapenemas. “Aumentaram em todos os hospitais pelo efeito seletivo da utilização de antibióticos”, diz.
O panorama na indústria farmacêutica é desolador. Só existem 43 antibióticos experimentais em ensaios clínicos, segundo a OMS, frente a mais de 5.700 possíveis novos tratamentos contra o câncer. Para o microbiologista Marc Lemonnier, isso é escandaloso. “Para cada produto antibacteriano em desenvolvimento há mais de 100 em oncologia. É inaceitável. Estamos falando de uma necessidade médica comparável. Daqui até 2050 estas infecções matarão igual que o cancro”, opina.
Lemonnier, um hispano-francês nascido em Tânger (Marrocos) há 54 anos e criado em Madri, trabalhou como cientista até que em 2009 montou sua própria empresa farmacêutica, chamada Antabio. O nome faz referência a Anteu, o gigante norte-africano que, segundo a mitologia grega, vencia todas as suas lutas porque cada vez que caía no chão obtinha novas forças de sua mãe, Gea, a deusa da terra. “Hércules encontrou uma maneira inovadora de matar esse monstro: levantá-lo do chão, para que não entrasse em contato com sua mãe. E essa é exatamente a estratégia da minha empresa: encontrar uma maneira inovadora de matar as bactérias que nada consegue matar”, afirma Lemonnier. Uma tela do pintor Francisco de Zurbarán no Museu do Prado, em Madri, representa esta luta de Anteu e Hércules.Tela do pintor Zurbarán sobre a luta mitológica entre Hércules e o gigante Anteu, no Museu do Prado.
“A quantidade de antibióticos em desenvolvimento é paupérrima, porque ninguém quer investir nesta área”, sentencia o empresário. Os laboratórios farmacêuticos ganharam mais de sete bilhões de euros (44 bilhões de reais) com produtos contra o câncer entre 2014 e 2016, ao mesmo tempo que perdiam 90 milhões com os antibióticos (560 milhões de reais), segundo a organização americana Pew. O dinheiro voou para a oncologia. Em 2019, o investimento privado em potenciais tratamentos contra o cancro rondou os 8,6 bilhões de euros (54 biliões de reais), frente a 120 milhões (cerca de 750 milhões de reais) para os antibióticos. “O paradoxo é que é uma área prioritária para a OMS, mas absolutamente não prioritária para os investidores privados”, lamenta Lemonnier.
O empresário obteve 44 milhões de euros de financiamento desde 2009 para o desenvolvimento de três antibióticos promissores. Metade desse dinheiro chegou a ele através de organizações sem fins lucrativos, como a britânica Wellcome Trust e a norte-americana CARB-X. “Cada vez fica mais complicado financiar minha empresa. Para meus estudos clínicos em humanos, preciso levantar agora dezenas de milhões, mas o investimento privado está se tornando rarefeito porque os investidores não veem saídas, não veem sucessos comerciais, e vão para outro lugar”, explica.
Grandes laboratórios —como o suíço Novartis, o anglo-sueco AstraZeneca e o francês Sanofi— abandonaram nos últimos anos a pesquisa de novos antibióticos. “Se a dinâmica não mudar, temos um problema maiúsculo. Estamos numa encruzilhada que pode dar lugar a uma segunda pandemia mundial devastadora”, adverte Lemonnier, membro do conselho de direção da BEAM, uma aliança de 70 pequenas e médias empresas biotecnológicas europeias que se dedicam a buscar tratamentos contra os micróbios.
A economista espanhola Laura Marín dirige desde 2013 em Estocolmo a maior iniciativa mundial de estudo das resistências antimicrobianas, o programa JPIAMR, com a participação de quase 30 países, incluindo Alemanha, Espanha, Índia e Argentina. “Não há um modelo de negócio favorável”, explica. “Criar novos antibióticos é complicado cientificamente, e todo mundo deixou de fazê-lo. O antibiótico depois é vendido por um euro (6,28 reais), então não vale a pena. E se conseguirmos um novo antibiótico, não vamos querer dá-lo a ninguém, para reservá-lo para os casos mais graves, então serão vendidos muito poucos”, argumenta Marín. São necessários, salienta, incentivos econômicos para os laboratórios farmacêuticos e muito mais dinheiro público.
O programa JPIAMR tenta convencer os países a investirem mais o quanto antes, não só para o desenvolvimento de novos antibióticos, mas para descobrir como manter a eficácia dos que ainda funcionam. “Se obtivermos um novo antibiótico, que é algo que pode ocorrer dentro de 20 anos, não podemos ter resistências desde o primeiro dia”, alerta Marín. A especialista menciona duas medidas importantes: proibir a venda de antibióticos sem receita médica e acabar com seu uso sistemático para estimular o crescimento de animais saudáveis. São duas políticas em vigor na UE, mas inimagináveis nos países mais pobres, sem acesso a médicos e com necessidade de aumentar sua produção de carne.
Cristina Muñoz considera a Espanha como um exemplo para o mundo. Era o país com o maior consumo de antibióticos da UE em 2014, quando o Plano Nacional foi lançado. Desde então, segundo suas cifras, as vendas caíram 33% em medicina humana e 59% na veterinária, frequentemente graças a acordos voluntários com as empresas pecuaristas. O maior sucesso é a eliminação quase total, nas criações suínas, do antibiótico colistina, que após sua descoberta, em 1947, foi descartado para os humanos por sua toxicidade renal, mas acabou adotado na veterinária.
Há 15 anos, perante a falta de alternativas, os médicos tiveram que ressuscitar a colistina para usá-la como último recurso em pessoas com infecções multirresistentes, conforme recorda Bruno González Zorn. “Isto dá uma ideia da situação em que estamos. Estamos resgatando antibióticos tóxicos dos anos cinquenta para salvar vidas nos hospitais do mundo. É algo inédito”, afirma o microbiologista. Em novembro de 2015, na China, detectou-se pela primeira vez um gene capaz de transformar as bactérias em superbactérias resistentes à colistina. Abriu-se a caixa de Pandora.
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