quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Globalização e Democracia



A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) usa, no relatório de 2018, o termo hiperglobalização para designar o ritmo e o tipo de integração económica que teve lugar nas últimas décadas. Citando o mesmo relatório:

«Entre 1990 e 2015, o número de acordos comerciais aumentou de 50 para 279, muitos dos quais plurilaterais e, portanto, envolvendo um número maior de pares de países […]. Os tratados bilaterais de investimento (TBIs) cresceram quase dez vezes, de 238 para 2239 no mesmo período […]. Ao mesmo tempo, a “abrangência” de tais acordos continuou a aumentar, colocando sob o seu alcance muitas áreas políticas que até agora haviam sido excluídas das negociações comerciais. Historicamente, os acordos comerciais focavam questões relacionadas principalmente com taxas aduaneiras e cotas. Depois de 1995, as chamadas disposições OMC-plus incluídas na maioria dos acordos comerciais […] também cobriam regulamentos alfandegários, impostos de exportação, medidas antidumping, medidas de direitos compensatórios, barreiras técnicas ao comércio e padrões sanitários e fitossanitários. Outros acordos obrigaram ainda os signatários a fazer cumprir disposições que liberalizassem serviços financeiros ou aquisições públicas, com implicações de longo alcance para políticas públicas, emprego e distribuição de rendimento. Quanto às disposições “extras da OMC” […], que não são discutidas sob a égide da OMC, incluem um conjunto abrangente e em expansão de áreas de política, que muitas vezes reduzem ainda mais o espaço político dos países em desenvolvimento.»

Este fenómeno tem sido insustentável do ponto de vista ambiental, económico e político.

Do ponto de vista ambiental, o desafio das alterações climáticas, cujos danos materiais e humanos podem superar os da Segunda Guerra Mundial, de acordo com o relatório Stern, não são os únicos que testemunham a insustentabilidade do actual sistema. As florestas tropicais ocupavam cerca de 15% da superfície terrestre há poucas décadas, e ocupam hoje cerca de 7%, sendo que o ritmo da sua desflorestação não abrandou. Em poucos anos o peso dos plásticos nos oceanos pode superar o peso dos peixes, trazendo consequências devastadoras para a nossa saúde. De acordo com o trabalho de Steffen et al. (2015) publicado na revista Nature, existem nove «fronteiras planetárias» essenciais à nossa sobrevivência enquanto espécie, das quais sete são quantificadas, sendo as alterações climáticas apenas uma de quatro onde a actividade humana tem sido insustentável.



De facto, na Europa e nos Estados Unidos, os níveis de desigualdades atingem valores semelhantes aos que existiam quando se deu a ascensão da extrema-direita nos anos 20 e 30 do século passado. O esvaziamento da democracia promovido pela hiperglobalização por processos que iremos abordar também pode resultar num aumento do cinismo e revolta contra a democracia que é aproveitado por líderes demagógicos num contexto social que se torna propício ao seu surgimento. Por outro lado, a hiperglobalização, ao aumentar a desigualdade, acabou por incentivar um consumo guiado pelo aumento do endividamento possibilitado pela desregulamentação financeira, aumentando por essa via a instabilidade do sistema financeiro. As crises financeiras de maior severidade, que se tornam assim mais frequentes, tendem, por seu lado, a reforçar a extrema-direita (como investigação recente tem demonstrado empiricamente).

A globalização não teria, no entanto, de ser perversa. O alargamento dos mercados poderia trazer prosperidade, seja por via dos ganhos associados às vantagens comparativas absolutas e relativas (como já descrito por David Ricardo); seja por via de um conjunto de economias de escala que possam conduzir a redução de custos e menor dispêndio de recursos (como descrito por Krugman); seja até pela redução do número e violência dos conflitos militares devido à maior integração económica. Esta maior prosperidade poderia traduzir-se em maiores salários, num estado social melhor financiado e mais robusto e em maior qualidade de vida. E se é verdade que a forte diminuição da fome e miséria que tem ocorrido no mundo ao longo das últimas décadas tenha tido outras causas mais importantes (o desenvolvimento tecnológico e tendências de convergência que teriam lugar mesmo em economias isoladas), não deixa de ser verdade que o aumento do comércio internacional teve um impacto positivo neste processo. Por fim, vale a pena lembrar que o progresso tecnológico tem permitido reduzir as distâncias e facilitar o alargamento dos mercados.


No entanto, se ao alargamento geográfico dos mercados não corresponder um alargamento geográfico do exercício do poder democrático, a discrepância entre as escalas permite subalternizar a Democracia, principalmente na esfera económica.

Um exemplo claro deste fenómeno é o dos paraísos fiscais: se os mercados se alargam mais que o espaço político de decisão, as empresas multinacionais tenderão a pagar menos impostos, independentemente da vontade da maioria da população desse mercado comum. Imaginemos dois países vizinhos com a mesma população e estrutura económica que se juntam num mercado comum, mas com política fiscal independente. Enquanto que uma política fiscal comum obrigaria os eleitores a pesar os ganhos globais de uma descida dos impostos face às perdas globais dessa descida, uma política fiscal separada faz com que os eleitores pesem os ganhos locais e as perdas locais, com menos consideração pelos impactos nos cidadãos do estado vizinho. Isto cria uma dinâmica de corrida para o fundo: aquele país que descer ligeiramente os impostos vai encorajar deslocalizações e aumentar a receita fiscal. O outro país perderá receita fiscal ou copiará o exemplo. No global, teremos um processo do tipo jogo do prisioneiro ou tragédia dos comuns em que quase todos ficam a perder. Isto explica porque é que nas últimas décadas o capital detido em paraísos fiscais aumentou de forma explosiva, tendo ultrapassado todas as economias incluindo a China e os EUA. Recorrendo a estas formas de evitar a tributação, as empresas multinacionais aumentaram seu poder e dimensão e hoje dos 100 governos e empresas mais ricas do mundo, 69 são empresas multinacionais e apenas 31 são governos.


Acrescidamente, as questões fiscais estão muito longe de ser as únicas onde processos deste tipo ocorrem. A legislação laboral está sujeita ao mesmo efeito; bem como defesa dos direitos dos consumidores; bem como a defesa do bem-estar animal. Praticamente todas as áreas de regulação e intervenção económica podem ser afectadas e inibidas por este processo.
Duas merecem particular destaque. Uma é a legislação de cariz ambiental: a não coincidência de escalas geográficas entre mercados e o espaço de exercício do poder político pode fazer com que legislação ambiental adequada não apenas prejudique economicamente o estado que a implementa (caso a do outro estado seja mais laxista), como até prejudique ambientalmente a comunidade global. Este resultado perverso ocorre porque, assumindo que uma proporção suficientemente elevada da produção se deslocaliza para onde a legislação é mais laxista, aos impactos ambientais dessa produção há que adicionar ainda os eventuais impactos do transporte causado pela deslocalização da produção. Não serve este argumento para desincentivar os países de adoptarem legislação ambiental adequada, embora vários interesses económicos o usem com esse propósito. O problema não está obviamente na adopção de legislação ambiental adequada, mas sim num contexto económico que favorece o interesse das empresas multinacionais à custa do esvaziamento da democracia.

No que concerne à legislação de cariz macroprudencial, ocorre um fenómeno semelhante. Quando os tempos são bons, os bancos sujeitos a regulação financeira menos prudente tenderão a crescer mais: se os sistemas financeiros estiverem mais integrados, é para lá que se desloca o centro de gravidade dos processos financeiros. Quando os tempos são maus, o sistema financeiro global terá crescido e consolidado num contexto de regulação menos prudente, o que torna as crises financeiras muito mais prováveis. E, efectivamente, verificamos que nas últimas décadas a volatilidade no sector financeiro aumentou consideravelmente, com crises mais fortes e devastadoras. Como já mencionado, crises financeiras graves tendem a resultar num fortalecimento da extrema-direita, o que resulta numa ameaça acrescida ao sistema democrático.

Na aparência, parece existir aqui um dilema: mercados mais amplos que os estados esvaziam a democracia; estimulam o aumento das desigualdades; reforçam as empresas multinacionais à custa do interesse das populações; põem em risco o ambiente de forma insustentável e catastrófica; aumentam a probabilidade de crises financeiras devastadoras e reforçam a extrema-direita. Mercados não mais amplos que os estados resultam em menos prosperidade; mais fome e miséria; mais conflitos militares potencialmente devastadores e, pelo menos em potencial, menores salários.

A solução para este dilema está no alargamento do exercício do poder democrático para a escala geográfica dos mercados. Isto aconteceu nos Estados Unidos da América com Franklin Roosevelt. Antes, a união de dezenas de estados num mercado comum e um poder federal quase inexistente (para lá de questões militares e de política externa) tinha trazido prosperidade mas também muita desigualdade e instabilidade financeira, a qual culminou com a terça-feira negra de 1929 que trouxe consigo a grande depressão. O New Deal de Franklin Delano Roosevelt, pesem embora as suas insuficiências na resposta a injustiças de âmbito étnico-racial, foi absolutamente transformador e uma das viragens progressistas mais impactantes do século XX. Foi também, não por acaso, a maior expansão do Estado Federal. É por boa razão que nos EUA os sectores mais conservadores se apegam tanto ao mote dos state rights; um estado federal forte e democrático trouxe inevitavelmente consigo políticas progressistas e ecológicas não apenas durante os mandatos de Roosevelt mas também nas várias décadas que se seguiram. Neste período, os EUA implementaram um sistema fiscal em vários domínios mais progressivo e redistributivo que a generalidade dos países europeus, com taxas marginais sobre os maiores escalões de rendimento acima dos 70%. E até o próprio Presidente Richard Nixon, que dificilmente poderíamos considerar progressista ou ecologista, se viu forçado a uma política ambiental e de defesa do património ecológico que deixou saudades a muitos ambientalistas.

No entanto, este processo sofreu uma regressão. Não porque o poder federal em si tivesse regredido, mas porque o poder democrático à escala federal regrediu. Em 1976 o caso Buckley v. Valeo considerou ilegal o estabelecimento de limites aos gastos independentes em apoio de qualquer candidato presidencial por parte de empresas ou associações, alegando a proteção da liberdade de expressão das empresas (como se fossem pessoas a quem estas garantias constitucionais se apliquem). Esta decisão acabou por abrir a porta à prática de suborno legalizado: as empresas começaram a canalizar volumes de dinheiro cada vez maiores para os membros do Congresso e outros representantes eleitos, e aqueles mais dispostos a subalternizar os interesses dos eleitores aos dos lobistas acabaram, em consequência, por ter acesso a contribuições de campanha mais volumosas e, portanto, mais recursos para facilitar a sua reeleição. Seria de esperar que com o passar do tempo o comportamento dos agentes políticos se fosse tornando menos íntegro, e efectivamente a correlação entre a popularidade de uma medida junto da população em geral e a probabilidade de ser aprovada foi-se tornando residual, enquanto a popularidade de uma medida entre os lobistas ou entre os cidadãos mais ricos se tornou absolutamente determinante. O muito badalado caso Citizens United vs FEC apenas pôs sal nessa ferida, não mudou nada de substancial. Com estas decisões, os EUA passaram de Democracia a Oligarquia.

Na União Europeia não existe um processo de suborno legalizado, como nos EUA. No entanto, no que concerne à arquitectura institucional, as instituições comunitárias funcionam de forma muito menos democrática do que as instituições federais dos EUA. O Parlamento Europeu, ao contrário de qualquer parlamento democrático, não tem iniciativa legislativa, prerrogativa que cabe à Comissão Europeia. O Presidente da Comissão Europeia é proposto pelo Conselho Europeu, dando a este órgão maior poder na escolha de quem preside à Comissão a comparar com o Parlamento, não obstante o poder de veto deste último. As reuniões do Conselho da UE e do Conselho Europeu não são televisionadas nem devidamente escrutinadas. Por fim, estes dois órgãos, que fazem as vezes de uma câmara alta, são ocupados por pessoas que, tendo sido eleitas ou nomeadas, não foram eleitas exclusivamente (ou sequer maioritariamente) para esta função. Ou seja: António Costa não está no Conselho Europeu porque os portugueses debateram o seu projecto para este órgão e o consideraram apelativo. Em vez disso o debate centrou-se na política nacional e a ocupação deste cargo constituiu uma mera “nota de rodapé” durante a campanha eleitoral, se tanto. E as restantes pessoas que nos representam nos órgãos mencionados não foram eleitas mas sim nomeadas por António Costa.

Por fim, uma pescadinha de rabo na boca: a impotência do Parlamento Europeu conduz à falta de interesse e atenção às matérias europeias e inclusivamente à eleição deste órgão; falta de interesse e atenção essas que são depois usadas para justificar a impotência desta instituição. Enquanto este défice democrático não for resolvido, maior integração económica entre os países europeus resulta em mais políticas saírem da esfera de controlo democrático, diminuindo o poder da população na determinação das políticas que afectam as suas vidas.

No entanto, o processo de integração económica que mais ameaça a Democracia é mesmo o que ocorre por via de tratados de comércio e investimento muito amplos que não criam nenhum mecanismo para delinear políticas comuns. Os tais que, como referido no início do texto, têm aumentado de forma explosiva.

Na sua generalidade, os tratados de comércio e investimento assentam em três pilares: redução das taxas aduaneiras, a harmonização regulatória e os chamados mecanismos de protecção do investimento.

A redução das taxas aduaneiras é justificada com base nos benefícios mencionados da integração económica, mas esses benefícios diminuem consideravelmente com a distância e por isso tendem a ser irrisórios na maior parte dos acordos comerciais recentes, mesmo de acordo com as estimativas dos próprios proponentes destes tratados. Por outro lado, a redução das taxas aduaneiras pode encorajar os fenómenos de dumping ambiental e social acima expostos, por exemplo ao tornar uma legislação laboral e ambiental mais laxista numa vantagem competitiva ainda maior. Por essa via, esta redução das taxas aduaneiras pode contribuir para um aumento das desigualdades de rendimento e património e para um impacto ambiental da produção mais nefasto.

Outra abordagem para diminuir as barreiras ao comércio é a harmonização regulatória, mas desta vez as barreiras são de natureza legislativa: diferentes regras para os diferentes mercados – seja para garantir a segurança, a saúde, o ambiente, ou outros valores que cada população considere importantes – podem dificultar a exportação e maiores economias de escala. A solução adoptada é uma aproximação das regras dos países envolvidos no acordo.

Além dos problemas de dumping social e ambiental mencionados acima, que podem resultar da redução das barreiras ao comércio, a harmonização regulatória apresenta um desafio acrescido: o respeito pela Democracia. Este desafio não seria, à partida, insuperável: mesmo que diferentes regulamentações pudessem resultar de diferentes prioridades e preferências por parte das populações dos países em causa, um diálogo que envolvesse estas populações e as várias associações da sociedade civil poderia, em tese, resultar numa aproximação dos quadros legislativos democraticamente legitimada. No entanto, em todos os processos de negociação de acordos de comércio e investimento já realizados, foram as grandes multinacionais quem ditou as novas regras, aproveitando o pretexto da harmonização regulatória para contornar a democracia e alterar a legislação ao sabor dos seus interesses. O acordo entre a União Europeia e o Japão é um exemplo típico a este respeito: segundo as informações fornecidas pela Comissão Europeia, entre Janeiro de 2014 e Janeiro de 2017, o departamento de comércio da Comissão Europeia realizou um total de 213 reuniões à porta fechada com lobistas da indústria e dos grandes negócios para discutir as negociações, o que constituiu 89% das reuniões com entidades externas e contrasta gritantemente com 4% para grupos representantes da sociedade civil. A Comissão argumenta que neste acordo existiu uma abertura «sem precedentes» para ouvir a sociedade civil. Isto diz-nos tudo o que precisamos de saber sobre a forma como decorre tipicamente a harmonização regulatória.

Contudo, o pilar mais controverso e perverso dos acordos de investimento são os mecanismos de protecção de investimento. O mais comum destes mecanismos foi descrito da seguinte forma pela revista The Economist em Outubro de 2014:

«Se a intenção do leitor fosse convencer o público de que os acordos comerciais internacionais são uma forma de as empresas multinacionais ficarem ricas à custa da população em geral, eis o que poderia fazer: conceder às empresas estrangeiras o direito extraordinário de aceder a um tribunal secreto, de advogados empresariais muitíssimo bem remunerados, pedindo indemnizações sempre que um governo aprovasse uma lei para, por exemplo, desencorajar o hábito de fumar, proteger o meio ambiente ou impedir uma catástrofe nuclear.

No entanto, isso é precisamente o que milhares de tratados de comércio e investimento têm feito ao longo do último meio século, através de um processo conhecido como “Resolução de litígios entre investidor e estado” ou ISDS.»

Em resposta às críticas ao ISDS, a Comissão Europeia tem vindo a propor alternativas a esse mecanismo, tais como o Sistema de Tribunal de Investimento (conhecido pela sigla inglesa ICS) ou o Tribunal Multilateral de Investimento (conhecido pela sigla inglesa MIC). Pesem embora algumas melhorias processuais face ao sistema ISDS, estas propostas mantêm os problemas do ISDS no essencial, e constituem por isso uma perigosa ameaça para a Democracia e para os sistemas de Justiça, que podem assim ser contornados pelas empresas multinacionais e pelos grandes investidores.

José Albuquerque, antigo Secretário-Geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), procurou alertar quanto às ameaças que os mecanismos referidos representam: «A segunda nota é a que se refere à instituição do mecanismo para a resolução de litígios, uma espécie de tribunal arbitral ou à la carte. O contexto da arbitragem internacional tornou-se favorável às soluções da justiça privada. A nova economia da normatividade, na perspectiva global, aposta sistematicamente no reforço e até no domínio da arbitragem, como instrumento jurisdicional do direito universal dos negócios. O direito nacional já não conta nessa jurisdição. (...) os Estados renunciam à competência das suas jurisdições nacionais. O efeito directo ou muito provavelmente indirecto é o de, sendo as decisões desses árbitros executórias, eles obrigarem os Estados a modificar o seu direito ou impedirem os Estados de o modificarem (...). [Uns] quantos actores vão ser “expulsos” neste precipício sistémico. É o caso do juiz público, cuja figura é transfigurada neste tribunal arbitral ao passar de titular de um órgão de soberania a agente privado designado e remunerado pelas partes em litígio ou por uma qualquer organização privada. Estes árbitros e tribunais arbitrais têm meios de obrigar os Estados a modificar o direito.»

De facto, várias centenas de casos ISDS justificam estas preocupações. Em 1998 o Canadá baniu um aditivo tóxico (tricarbonilo metilciclopentadienil de manganês) para a gasolina. Uma queixa através do ISDS forçou o governo a reverter a decisão e pagar 13 milhões de dólares aos investidores. O governo do Equador impediu a prospecção de petróleo numa situação em que a mesma estava a provocar, além de pesados danos ambientais, graves violações de direitos humanos. Em 2012 foi forçado a pagar 1400 milhões de dólares. Em 2001 a Argentina fez diversas reformas para garantir o acesso a serviços públicos em resposta à crise económica que se vivia. Os investidores estrangeiros processaram o estado argentino mais de 40 vezes, e em 2014 o estado argentino foi forçado a pagar mais de mil milhões de dólares. Ficaram célebres casos em que a subida do salário mínimo foi pretexto para uma acção contra o Egipto, ou o facto do governo não ter evitado uma greve ter sido pretexto para uma acção contra a Roménia. Legislação para proteger serviços públicos, reverter privatizações, alterar a tributação, proteger os consumidores ou a privacidade, entre muitas outras, está sujeita à ameaça destes mecanismos. Geralmente este mecanismo tem efeito sem que nenhuma acção seja movida: a mera ameaça é suficiente para intimidar o legislador, esse é aliás o seu impacto mais importante.

Em suma: o alargamento dos mercados sem mecanismos de controlo político democráticos na mesma escala tem consequências ambientais, económicas e políticas perversas a que temos estado a assistir nas últimas décadas e que culminam com a ascensão da extrema-direita e a ameaça à própria democracia. Resolver estes problemas sem abdicar de uma parte importante dos benefícios da integração económica exige atacar as causas de défice democrático nas escalas geográficas mais alargadas. Se os mercados funcionam numa escala mais alargada, também a soberania democrática o deve fazer. No caso da União Europeia, isso exige uma reforma institucional profunda que permita aumentar o escrutínio sobre o Conselho e reforçar os poderes do Parlamento Europeu, eventualmente eleger directamente a Comissão Europeia (ou pelo menos trocar as prerrogativas de nomeação e veto entre Parlamento e Conselho). Estas e outras medidas do mesmo cariz – nomeadamente uma revolução na política de comércio internacional – construirão os alicerces institucionais a partir dos quais as políticas progressistas se tornarão não apenas possíveis mas quase inevitáveis: sistemas mais democráticos tendem a resultar em melhores políticas públicas, ao encontro dos interesses da generalidade da população.

Será isto possível? Por um lado, existe uma grande inércia institucional e pouco interesse popular nestas questões muito aquém do necessário para enfrentar tal inércia. Na realidade este assunto tem uma aparência distante, abstracta, complexa e até enfadonha. Já é difícil mobilizar os cidadãos mesmo quando estão em causa medidas cujo impacto nos seus rendimentos e nas suas vidas é directo e imediato. Muito mais difícil será quando se fala de questões que – apesar de terem um poder transformador muito maior nas suas vidas – parecem tão abstratas e distantes.

Por outro lado, dir-se-á que não existem os mesmos laços sociais, culturais e linguísticos que no contexto nacional, pelo que uma comunidade política a esta escala será sempre disfuncional e pouco democrática, ou nem sequer pode emergir. Esta segunda objecção parece, no meu entender, revelar uma grande falta de perspectiva histórica. A Alemanha surgiu como uma federação de diferentes estados, com diferentes culturas, e até existia um grau de considerável diversidade linguística; e a realidade em Itália não era muito diferente. Foi a criação de uma comunidade política que acabou por resultar numa forte aproximação cultural e linguística. O mesmo aconteceu nos EUA, um país num território onde se falava inglês, francês, espanhol, holandês entre muitas outras línguas e que construiu uma identidade nacional precisamente com o exercício comum da Democracia a essa escala. Não há razão nenhuma pela qual uma Democracia à escala da UE não possa funcionar.

A primeira objecção, relativa ao alheamento popular e inércia institucional, parece-me, infelizmente, muito mais persuasiva na alegação de que não existem condições políticas para superar o défice democrático na UE. Pessoalmente não sei como serão ultrapassados estes obstáculos no actual contexto, mas alguma perspectiva histórica pode dar alguma esperança. Olhemos, por exemplo, para a luta das sufragistas no seu início: como poderiam conquistar o direito a votar se não tinham o voto para começar? Como poderiam persuadir a sociedade se a cultura dominante persuadia a generalidade das mulheres, para já não dizer os homens que eram parte interessada e única com poder político formal, que o status quo era o mais justo e adequado? Se nos colocarmos no contexto em que essa luta teve início, não há como negar que parecia uma luta perdida e inglória, uma quimera quixotesca. No entanto, hoje sabemos que essa luta foi ganha. O mesmo sucede em relação à luta anti-esclavagista; o mesmo em relação à luta contra o Antigo Regime; contra a Monarquia Absoluta; e por aí fora.

E, de facto, começam a existir sinais de que esta luta vai ganhando alguma tracção. Há década e meia não existia nenhum movimento transnacional relevante com o propósito de resolver este problema, enquanto neste momento já existem três (o Partido Pirata Europeu; o Volt e o DIEM25, este último sendo o que me parece mais interessante e promissor deste grupo). A força política destes três movimentos ainda é irrisória, mas não é de excluir que a taxa de crescimento se mantenha, caso em que os próximos anos poderão trazer esta luta política para a ribalta e talvez garantir uma democracia que funcione a uma escala maior. Essa democracia poderá trazer um conjunto de transformações sociais e económicas progressistas e ecológicas que mostre os benefícios do alargamento da esfera democrática e conduza a muitas outras transformações políticas e sociais tão necessárias quanto urgentes por esse mundo fora.
Fonte: A Gralha

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