sexta-feira, 2 de maio de 2025

As minhas leituras: Silvia Federeci - Calibã e a Bruxa


Sensível como sou ao femicídio, violência doméstica e ao renascimento nas redes socias de extrema-direita do elogio ao macho tóxico e machismo, resolvi ler este livro, atraído também pelo percurso filosófico da autora Silvia Federici.
As bruxas não são necessariamente uma figura desconhecida dos nossos dias. Elas são tema de filmes, histórias em banda desenhada, músicas, contos infantis, festas e obras literárias. O chapéu preto e pontudo, o vestido comprido da mesma cor, a vassoura, o caldeirão e o gato por companhia compõem o imaginário simbólico de um dos arquétipos femininos mais conhecidos e explorados – seja para se referir de forma caricata e estereotipada às mulheres, seja para, numa releitura, colocar a bruxa como uma figura sedutora e mística. Não são estas, porém, as facetas exploradas pela historiadora feminista Silvia Federici, autora de Calibã e a Bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva.
O nome do livro é uma referência a dois personagens da obra A tempestade (1610-1611), de William Shakespeare: Calibã, um homem negro escravizado e descrito como “selvagem” e “deformado”, e sua mãe, a bruxa Sycorax, que no livro de Federici são tomados como os símbolos do racismo e da misoginia que sempre andaram de mãos dadas com o capitalismo.

A perspectiva que interessa a Federici, e que é contada em 392 páginas repletas de referências e análises aprofundadas e dialogadas com outras obras e autores, é a história de como a construção da figura da bruxa está intimamente ligada à história da origem do capitalismo, cujo objetivo era transformar os corpos femininos, por meio de um processo de aterrorização, em máquinas de produzir crianças, os futuros trabalhadores responsáveis por manter a nova ordem econômica em funcionamento.

Tal trabalho historiográfico, diga-se de passagem, foi monumental: Federici trabalhou em Calibã e a Bruxa durante quase 30 anos, e decidiu-se pelo tema após viver na Nigéria em meados dos anos 80, em um momento em que as terras comunais daquele país passaram por um processo de cercamento semelhante ao ocorrido no período entre a crise do feudalismo e o advento do capitalismo.
Ali, percebeu a cruel associação entre a perda da posse da terra, a liberalização económica e a exposição das mulheres à violência. Foi o clique para que decidisse estudar a relação entre o capitalismo e a caça às bruxas, período que durou aproximadamente 200 anos, dos séculos XV ao XVII.

História de homens
De início, Federici explica que buscou contar a história do capitalismo levando-se em conta a experiência das mulheres, praticamente invisibilizada e ignorada nas análises de Karl Marx.
Segundo Federici, o pensador alemão ignorou o papel da caça às bruxas para a construção de uma ordem patriarcal em que a capacidade reprodutiva e laboral das mulheres (gestação e cuidado das crianças e trabalho doméstico) foram colocadas sob o controle do Estado e transformadas em recursos económicos.

Neste caso, o processo de formação e acumulação do proletariado mundial, ela explica, não se deu apenas pelos cercamentos das terras dos trabalhadores europeus e pela escravização dos povos originários da África e da América (a acumulação primitiva), mas também pela transformação dos corpos das mulheres em máquinas de trabalho doméstico e de parir – foi um processo de acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora.

Ao classificar tais atividades como não produtivas (uma vez que são atividades não pagas), Marx invisibilizou o fato de que as mesmas também eram uma forma de trabalho, essencial para a reprodução da força de trabalho que sustenta o capitalismo em si, e também o fato de que a dependência das mulheres do salário dos homens da família contribuiu para reforçar a opressão femininas dentro das relações de afeto e parentesco.

Ao não tocar nesta temática, Marx não entendeu ou não demonstrou entender que tal subordinação só foi possível a partir de uma política de aterrorização das mulheres – por meio da parceria entre Estado, Igreja Católica e Igreja Protestante – e enfraquecimento do poder que possuíam perante a comunidade. A caça às bruxas, portanto, foi o meio encontrado para domesticar e subjugar as mulheres à função determinada a elas pelo sistema capitalista nascente.

Tal história de dominação dos corpos das mulheres também ignorada pelo historiador Michel Foucault, que produziu uma historiografia androcêntrica, focada numa experiência universal do corpo e da sexualidade que, ao fim e ao cabo, era a experiência masculina.

A história da caça às bruxas, e de como a mesma alimentou o sistema penal inquisitório, a instituição da tortura e o controle dos corpos pelo Estado não está presente nos escritos de Foucault, daí a grande contribuição de Federici para a historiografia e para o movimento feminista e de mulheres, que faz com que tal obra devesse ser ensinada nas escolas e universidades.

Misoginia, enfraquecimento do poder feminino e da solidariedade entre mulheres
Na reconstituição do processo de caça às bruxas na Europa, Federici explica que o poder das mulheres começou a ser quebrado a partir dos cercamentos das terras comunais, já que tendo menos poder sobre a terra e menos poder social do que os homens, as mulheres dependiam fortemente das terras comunais para plantar sua comida, garantir sua subsistência e autonomia e exercitar formas de sociabilidade junto a outras mulheres. Despossuídas da relação com a terra e dependentes de contratos de trabalho individuais acordados por seus integrantes, as famílias começaram a se desestruturar.

A historiadora conta que esse cenário foi particularmente cruel para as mulheres mais velhas, cujos filhos migraram para as cidades. Sem a posse da terra, sem animais e sem ter o que comer, tais mulheres caíram na miséria e, para sobreviver, passaram a depender de empréstimos, pequenos furtos e a atrasar o pagamento de suas dívidas.

Como resultado, não houve apenas a polarização entre ricos e pobres, mas também entre homens e mulheres: a obra explica que discussões resultantes da mendicância feminina, da entrada sem autorização em propriedades alheias e do atraso dos aluguéis estavam por trás de muitas acusações de bruxaria feitas contra elas.

Ao mesmo tempo em que se cercavam as terras, com a expulsão do camponeses que ali sempre viveram, e a Europa passava por uma crise populacional, o novo sistema económico que nascia necessitava de braços que mantivessem a fábrica a produzir. Neste momento, entra em cena a importância de se controlar o potencial reprodutivo da mulher, capaz de gerar os corpos que colocavam as máquinas em movimento. Diante da resistência feminina ao controle, a caça às bruxas foi o próximo passo.

Entram em cena, então, a criminalização do controle da natalidade e dos métodos contraceptivos e abortivos utilizados pelas mulheres até então, junto com um processo de redução das mulheres a não-trabalhadoras, uma forma de encerrá-las no espaço doméstico como máquinas de fazer filhos e também como sustentáculo sobre o qual se apoiavam os homens que trabalhavam nas fábricas, a parte da população considerada “produtiva”.

Diz Federici, em resumo: “Os homens perderam terras, mas ganharam servas”. Ao mesmo tempo, os saberes femininos eram dizimados, e, devido ao medo do infanticídio, surge a figura do médico homem a realizar e fiscalizar os partos das mulheres, uma função que sempre foi feminina. Esse ocultamento do trabalho feminino e o processo de cercamento, controle e colonização de seus corpos para a reprodução da força de trabalho é chamada por Federici de “Patriarcado do salário”.

Além disso, a pobreza levou muitas mulheres, solteiras e viúvas, mas também casadas, à prostituição, como forma de complementação da renda. A misoginia contra tais mulheres atingiu níveis estratosféricos, com a tortura e a humilhação pública das prostitutas. Ao mesmo tempo, as mulheres passaram a ser pintadas como demoníacas, promíscuas, assassinas de crianças, a rondar as vilas em busca de sangue e de homens, enquanto participavam dos sabás, onde cultuavam o demónio e praticavam orgias.

Segundo Calibã e a Bruxa, os homens calaram-se a respeito do massacre de mulheres que ocorriam nas suas vilas e nas cidades, até porque beneficiavam com a perda de poder das mulheres e a ideia de que não eram produtivas e não mereciam um salário.

A discussão é extremamente atual, uma vez que a luta das mulheres pelo fim da discriminação de género ainda é invisibilizada, negada ou minimizada. Federici  mostra-nos que o silenciamento das mulheres pelos homens que deveriam ser seus companheiros de luta é antiga e persiste.

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