domingo, 10 de agosto de 2025

Vergonha


Miguel Sousa Tavares in "Expresso" de 07/08/2025

Numa jogada de mau gosto, o Hamas decidiu publicar fotografias de dois reféns israelitas em seu poder, famélicos e abatidos, acompanhadas da legenda “eles comem o mesmo que nós”, numa referência à estratégia de fome adoptada pelo Governo de Israel em Gaza. Netanyahu, como era de esperar, saltou logo sobre a oportunidade, acusando o Hamas de barbárie e anunciando a total ocupação de Gaza: esperava, talvez, que a fome que ele inflige a três milhões de pessoas (proibindo-as inclusivamente de pescar no seu mar!) não afectasse a alimentação dos reféns israelitas. E, em Bruxelas, Kaja Kallas, a responsável pela política externa da UE e que jamais teve uma palavra a condenar o genocídio em Gaza, acompanhou Netanyahu na sua indignação e exigiu a imediata libertação dos reféns, sem pedir nada em troca da parte de Israel. Num momento em que finalmente se levantam vozes dentro de Israel a condenar a ofensiva em Gaza — vozes de antigos chefes militares e de segurança, de organizações humanitárias ou do escritor David Grossman, falando também em genocídio —, a UE, enquanto organização, continua a fingir que não estamos a assistir em Gaza à mais sinistra limpeza étnica levada a cabo por um Governo dito democrático. Mas, como disse Yuli Novak, da organização israelita B’Tselem, “isto não poderia acontecer sem o apoio do mundo ocidental”.

Dentro da UE e escudado na sua inércia, Portugal tem sido um caso notável de hipocrisia e cobardia. Eu chego a ter vontade de rir ao assistir aos contorcionismos explicativos do ministro Paulo Rangel para tentar não ter posição sobre o assunto, fingindo que a tem, numa patética estratégia de “agarrem-nos senão reconhecemos o Estado da Palestina”. Primeiro, confiante na inércia de toda a União, Rangel afirmava que o reconhecimento, a existir, deveria ser uma decisão conjunta dos 27. Os reconhecimentos unilaterais feitos por Espanha e Irlanda não o abalaram, mas ficou claramente sem chão quando Macron anunciou que a França ia reconhecer o Estado palestiniano e a Inglaterra fez o mesmo. Aí, Rangel fez uma inolvidável intervenção na ONU, em que garantiu à assembleia mundial que Portugal tinha detectado uma alteração histórica na posição palestiniana, a qual abria caminho a um possível reconhecimento. Em suma, enquanto o PM inglês colocava exigências a Israel sob a ameaça de reconhecer a Palestina independente, o nosso ministro partia do princípio oposto para sustentar, sem se desmanchar, que a Autoridade Palestiniana aceitara as exigências de Luís Montenegro para poder ser reconhecida por Portugal como Estado. Note-se: a Autoridade Palestiniana na Cisjordânia e não o Hamas em Gaza. Entre essas exigências de Montenegro, Rangel destacou a reforma das instituições palestinianas e a realização de eleições: patéticas demandas para quem acabava de regressar de uma cimeira da inútil CPLP realizada na Guiné-Bissau — um país cujo Presidente amordaçou a democracia no seu país e governa sem ir a eleições — e antes de a chefia da mesma CPLP ser transmitida à Guiné Equatorial — onde jamais houve eleições e persiste há décadas uma ditadura familiar, brutal e corrupta como nenhuma outra. Sim, Portugal é hoje um exemplo eloquente da podridão moral em que vegeta a União Europeia, governada por políticos sem respeito pelo passado e pelos valores europeus.

Esta União Europeia envergonha hoje qualquer europeu que antes se orgulhava de pertencer a um espaço político onde a ética e a coerência de princípios contavam. Na cimeira da NATO, a União, com a honrosa excepção da Espanha, ajoelhou-se aos pés de Trump, aceitando gastar 5% do PIB em armas — e americanas, de preferência. Fica como símbolo dessa capitulação o português Luís Montenegro tentando dar “uma palavrinha” particular a Trump, dizendo-lhe que éramos velhos amigos dos Estados Unidos e sugerindo alguma misericórdia para connosco na rajada das tarifas, e o português António Costa, presidente do Conselho Europeu, acalmando as indignações surdas com a previsão de que o que a União cedera nas armas pouparia nas tarifas.

Viu-se. Na Escócia, Ursula von der Leyen começou por ser ainda mais humilhada por Trump do que o fora por Erdogan. Na Turquia, não tinha cadeira para se sentar, no clube de golfe privado de Donald Trump, na Escócia, para onde foi convocada, teve uma cadeira para se sentar enquanto esperava longamente que o Presidente americano acabasse um jogo de golfe com o filho e tivesse disponibilidade para a receber. Assim tratada como serventuária — ela e a Europa que representa —, não admira que depois tivesse sido sujeita a uma capitulação total e humilhante pelo abusador profissional americano. Von der Leyen aceitou um aumento das tarifas sobre as exportações europeias para os Estados Unidos de 15%, quase mil vezes o que vigorava e em troca de tarifas de 0% para as exportações americanas dirigidas à Europa. Desistiu de taxar as tecnológicas americanas ou de minimamente controlar os seus abusos. Aceitou comprar 750 mil milhões de dólares de energia aos Estados Unidos, assim interrompendo a estratégia de descarbonização em que a UE estava a ser pioneira e substituindo-a por uma total dependência energética de um só país — muito para lá daquilo que se criticava aos países europeus que compravam energia à Rússia. Agora, os EUA passam a determinar a política energética da Europa, aumentam livremente os preços, e Trump e os seus amigos do petróleo, negacionistas das alterações climáticas, encontram um mercado garantido à medida das suas ambições. Mas a senhora foi ainda mais longe, comprometendo-se a investir 600 mil milhões de dólares nos Estados Unidos e a gastar em armas americanas o grosso do investimento a ser levado a cabo para atingir os tais 5% do PIB em armamento. Se tudo isto fosse exequível e executado, acabava a Europa que conhecemos: livre, próspera, orgulhosa do seu sistema social. Mas, mesmo sem o podermos ainda dizer, Von der Leyen, que já enxovalhara a União e os valores europeus com o seu silêncio cúmplice perante o genocídio em Gaza, rematou agora a sua prestação prostrando-se aos pé de um fora-da-lei internacional e dando-lhe tudo o que ele queria, na esperança de o conseguir apaziguar. Mas até nisso esta funesta alemã que nos calhou em sorte está errada: quando se cede uma vez perante a intimidação e a chantagem, está escrito que se terá de ceder mais vezes. Trump é um vampiro que precisa de se alimentar todos os dias do sangue dos fracos, dos indefesos, dos que se ajoelham e dos que ele inveja.

Os tempos vão maus e mesmo incompreensíveis para quem gostaria de se orgulhar de ser português e europeu. Resta-nos ter vergonha: pode ser que eles reparem.

2 comentários:

Manuela Araújo disse...

Sim, é de termos vergonha! Muita vergonha pelo país, pela Europa, pelo mundo

João Soares disse...

Sem dúvida, Manuela!