[num domingo à noite, febril, deitado de lado, com o coração aos gritos e a televisão ligada no volume errado]
Ontem à noite, o país sentou-se a ver o circo. Um circo de uma só figura, de um homem só, de um espectáculo monológico onde o palhaço também era domador, director, macaco amestrado, leão faminto e criança perdida que grita da plateia para que olhem para ele, só para ele, sempre para ele. André Ventura falou. Falou como quem cospe. Falou como quem bate. Falou como quem quer ser amado mas só sabe odiar. E parte do país, a parte do país fatigado de esperar por Deus, ouviu. Ouviu como se ouve o padre numa missa a que se vai por obrigação, como se ouve a mulher que já não se ama ou o pai que já não se respeita. Ouviu com raiva, com cansaço, com culpa.
Disse que acabara o bipartidarismo. Disse-o como quem anuncia a queda de Roma, o fim dos tempos, a libertação do povo escolhido. E ali estava ele, o Moisés do populismo, de microfone à frente e a azia no bolso como quem esconde a vergonha, prometendo terra prometida a quem nunca teve jardim. Disse que a história tinha mudado, que agora o país era outro, um país dele, feito por ele, para ele, com ele ao leme e os outros calados, de joelhos, em silêncio. Ventura quer o país em silêncio. O país de joelhos. O país em medo. Ventura não quer governar. Ventura quer mandar. E o que há de mais grave é que há quem deseje ser mandado. Há quem precise.
O Chega não é um partido. É uma carência. Um sintoma. É o vómito do país que nunca curou a sua tristeza. Que finge que é alegre no São João, no Santo António, nas bifanas do domingo, nos copos do sábado, nas sardinhas do Junho. Mas que sangra por dentro. Que odeia por dentro. Que tem raiva de si, de tudo, de todos. Ventura oferece isso: um inimigo. Um sentido. Um alvo. Se há um culpado, já não sou eu. Já não é o meu fracasso, o meu salário, a minha solidão. É o cigano, o negro, o comunista, o assistente social, o jornalista, o juiz, o reformado, o artista, o pobre, o estranho. Ventura dá um nome à frustração. E isso consola. E isso vicia. E isso mata.
O seu discurso foi uma lista de cadáveres simbólicos. “Matei o partido de Álvaro Cunhal”, disse, como se estivesse a caçar fantasmas no sótão. “Varreram o Bloco de Esquerda do mapa”, gritou, com o orgulho de quem limpa sangue do chão e chama a isso arrumação. Para Ventura, política é isso: uma limpeza. Uma desinfecção. Uma purga. Como se o país estivesse sujo e só ele, com a sua verdade puríssima, o pudesse lavar. E lavar com quê? Com insultos. Com medo. Com castigos. Com prisões perpétuas. Com castrações químicas. Com multas. Com violência.
E depois, claro, o momento cómico, se a comédia ainda tivesse graça. Atacou as sondagens. Sempre as sondagens. Sempre o mesmo coro: que o queriam calar, que o queriam derrubar, que lhe mentem, que lhe fazem armadilhas. Ventura não percebe que as pessoas votaram no seu partido com vergonha de o fazer, de o dizer às sondagens. Ventura é o miúdo que jogava mal à bola e que ninguém quis na equipa e passou o resto da vida a sonhar ser capitão. E agora que lhe deram um apito, anda a expulsar todos os que correram mais depressa do que ele. Ventura não acredita em instituições. Acredita em si. Ventura não acredita em regras. Acredita no seu instinto. Ventura não acredita no país. Acredita no seu espelho.
E depois aquela frase. Aquela frase que soa a taverna com vinho barato e gritaria ao fundo. “A mama vai mesmo acabar.” Disse-o com o orgulho de quem faz justiça, mas com o tom de quem está habituado a mentir e a justificar-se com o cansaço. A mama vai acabar. A mama, quer dizer, o Estado. Os apoios. Os direitos. A solidariedade. Os serviços. A dignidade. Ventura quer um país onde só os fortes sobrevivem. Onde quem não consegue, morre. Onde quem chora, se cala. Onde quem precisa, se esconde. Porque, para ele, a vida é uma luta de cães. E ele é o dono da trela.
Mas Ventura não quer que a mama acabe. Ventura quer ser ele a mamar. Quer o lugar do outro. Quer mandar nos subsídios. Quer mandar na televisão. Quer mandar na escola. Ventura quer mandar. Ventura quer mandar. Ventura quer mandar. E o país, esse país magoado, esse país velho que já não acredita em ninguém, esse país que se esqueceu como é que se luta, esse país votou nele como quem diz: “toma, faz tu melhor.” E ele fará. Mas não será melhor. Será só mais triste. Mais cruel. Mais pequeno.
O que me espanta não é Ventura. Ventura é uma personagem de novela das seis: previsível, mal escrita, exagerada. O que me espanta é o silêncio. O silêncio dos outros. O silêncio dos bons. O silêncio dos sérios. Dos que deviam estar ali, naquele exacto momento, a dizer: basta. Mas estavam calados. Com medo de perder votos. Com medo de serem insultados. Com medo de não parecerem “populares”. E assim se mata uma democracia: não com balas. Com medos. Com cobardias. Com silêncios.
Este discurso, o de 18 de ontem, não foi um discurso. Foi uma bofetada. Foi uma noite de gritos num quarto fechado. Foi o início de qualquer coisa escura. E se não gritarmos agora, se não dissermos agora, alto e claro, que isto não é normal, que isto não é aceitável, que isto não é o país que queremos, amanhã já não poderemos falar. E depois? Depois virá o silêncio. O grande silêncio. O silêncio dos cemitérios. E Ventura sorrirá. Porque não há nada mais cómodo para quem quer mandar do que um povo sem voz. E nós estamos perigosamente perto disso. Perto de calar. Perto de baixar a cabeça. Perto de desistir.
E quando isso acontecer, será tarde. Será sempre tarde.
Maio 2025
Nuno Morna
P.S: Estarei sempre do outro lado da barricada. Com todos os que são, efectivamente, pessoas de bem, não os que se dizem, mas os que o demonstram, com os que amam a liberdade sem adjectivos e a democracia sem asteriscos. No combate a todos os radicalismos, venham eles mascarados de justiça ou de ordem, de povo ou de nação. No combate aos que aparecem para dividir, para semear o ódio, para apagar a pluralidade, para transformar o medo em política. No combate, sempre, à intolerância, a intolerância dos gritos e a dos silêncios cúmplices.
Quero viver com a noção de que "Combati o bom combate", 2 Timóteo 4:7-8.
Da minha parte, não esperem outra coisa. Nem agora, nem nunca.