quarta-feira, 21 de maio de 2025

Encontros Improváveis - Eugénio de Andrade e Jamel Shabazz

Jamel Shabazz -"Flying high!" Brownsville, Brooklyn, 1982

Em Louvor das Crianças
"Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso.

A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.

O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus."

Eugénio de Andrade, in 'Rosto Precário'

Música do BioTerra: Jean-Louis Murat - J'ai Fréquenté La Beauté


Jean-Louis Murat logo se lançou a solo e teve o seu primeiro sucesso em 1987 com o lançamento de "Si je devais manquer de toi ". Seguiram-se "L'Ange déchu " e "Te garder près de moi ", retiradas do álbum"Cheyenne Autumn", lançado em 1989.

Mas foi sobretudo a canção "Regrets ", um dueto com Mylène Farmer, que o tornou verdadeiramente famoso em 1991.

Muitas pessoas descobriram então a poesia das letras de Jean-Louis Murat e a sua extrema sensibilidade, que nunca o abandonou.

Se o artista é prolífico para a sua própria discografia, também o é para os outros. Jean-Louis Murat escreveu para outros artistas, como Françoise Hardy e Isabelle Boulay, e para os Indochine, no êxito "Un singe en hiver " e no single "Karma girls ".

A música marcou sem dúvida a carreira do artista, mas o cinema também. Os seus olhos azuis profundos foram vistos no grande ecrã em várias ocasiões, como na longa-metragem de Jacques Doillon "La Vengeance d'une femme ", em 1990, e no filme "Mademoiselle Personne", lançado seis anos mais tarde.

Conhecido também pelas suas opiniões francas, Jean-Louis Murat faleceu a 25 de Maio de 2023, aos 71 anos, na véspera do lançamento de um álbum Best of que recorda os seus 40 anos de carreira.

O genocídio

Genocídio no Ruanda

O genocídio infelizmente não é novidade. A história humana está repleta de histórias de vingança, diferenças religiosas ou sociais ou competição por terras. Exige que um grupo seja visto como menos que humano. A vítima não deve ter qualquer mérito ou importância. O genocídio vitorioso deve centrar-se nas mulheres e nas crianças; é um requisito. São o futuro da vítima e devem ser mortos, degradados, levados para a selva, enlouquecidos. Genocídio não é guerra. É o mal mais tóxico da alma humana.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Outro filme imprescindível: O Julgamento de Nuremberg, 1961 (legendado)


O Tribunal de Nuremberg, em 9 de dezembro de 1946, julgou vinte e três pessoas da liderança nazi (entre elas: militares, políticos, etc...), vinte das quais médicos, que foram consideradas como criminosos de guerra, devido aos brutais experimentos realizados em seres humanos. Os réus foram denunciados peos seguintes crimes 1- Conspiração para cometer agressão, 2- crimes contra a paz, 3- crimes de guerra, 4-crimes contra a humanidade. As condenações variaram desde a morte por enforcamento, prisão perpétua, prisão e absolvição. O Tribunal demorou oito meses para julgá-los. Em 19 de agosto de 1947 o próprio Tribunal divulgou as sentenças, sendo que sete de morte, e um outro documento, que ficou conhecido como Código de Nuremberg. Este documento pode ser considerado como um marco na história da humanidade, pois pela primeira vez foi estabelecida uma recomendação de repercussão internacional sobre os aspectos éticos envolvidos na pesquisa em seres humanos. A sua repercussão prática, contudo, foi muito restrita.

Direção: Stanley Kramer | Roteiro Montgomery Clift
Elenco: Spencer Tracy, Marlene Dietrich, Richard Widmark
Título original Judgement at Nuremberg

Desbocados, autoritários, cruéis, endinheirados: Os Brutalistas


Por Vitor Belanciano, 6 de Maio de 2024
As noções clássicas de neoliberalismo ou capitalismo já não nos situam. O mesmo se aplica aos conceitos tradicionais de fascismo. Há traços, fisionomias e características que se assemelham. Mas também deslocamentos, desvios, torções. Estamos noutra zona.

Ninguém sabe como lhe chamar. Há quem arrisque fascismo liberal. Outros, como Varoufakis, refletem que as novas formas de capital digital precisam da sua própria ideologia para se posicionarem distantes de qualquer tipo de coibição, estando nós a existir no tecno-feudalismo, regulados por tecno-lordes, sedentos de poder político.

Mas de todas essas noções que surgiram nos últimos anos, nenhuma parece mais ajustada do que o termo cunhado pelo pensador camaronês Achille Mbembe: brutalismo. O termo provém do universo da arquitetura, identificando um estilo de construção massivo, denso, industrial e poluente, sendo empregue por Mbembe não simplesmente como diagnóstico político, económico ou cultural, mas algo mais da ordem existencial, designando a relação dominante dos seres humanos com o que existe, sejam outros seres humanos, o mercado ou o planeta terra. O seu desejo é insaciável.

Uma relação de força e exploração. Como se o planeta fosse inesgotável, sendo o papel dos poderes contemporâneos, segundo Mbembe, tornar a extração possível. E se um dia tudo se esgotar, para quem vive a nadar em dinheiro, existe sempre a hipótese de colonizar Marte, exporá Musk. Ou de encontrar uma forma de nos tornarmos imortais, dirá Jeff Bezos, que tem investido milhões em tecnologia para deter o envelhecimento.

Claro que Mbembe pensa a partir de um lugar específico: África. Mas daí é possível identificar dinâmicas globais que se foram intensificando na última década, e que o segundo mandato de Trump tem exposto. O filósofo livre, o espanhol Amador Fernández-Savater, que tem refletido muito sobre o assunto, olha para o brutalismo como a última fase do neoliberalismo. Antes existiam formalidades, mesmo que soubéssemos que a intenção final era o lucro. Agora temos a impiedade oligárquica a dirigir países como se fossem multinacionais.

Durante décadas acreditámos que quanto mais consolidada fosse a democracia, mais hipóteses de desenvolvimento económico sustentado haveria. Agora, ironicamente, apesar de Trump, Xi Jinping, Putin ou Milei provirem de campos ideológicos diversos, e no meio das suas singularidades, une-os o desprezo pelos mecanismos democráticos. O mesmo acontecendo com as oligarquias financeiras, sejam elas americana, russa ou europeias, nas tintas para políticas de redistribuição, apenas interessados na sua rede.

É isso que vemos emergir em todo o mundo hoje. Agora assume-se às claras que apenas o dinheiro interessa. Não há regras. Passa-se por cima do Estado. Desmembram-se países, territórios e populações, sem justificações ideológicas. E muito menos se necessita das classes médias do conhecimento que só criam entraves com princípios democráticos. Daí os ataques à academia, à ciência, à cultura. A época dos consensos, do diálogo e da consolidação democrática foram à vida. O que interessa é enfraquecer os serviços públicos, descartar os que resistem, ou os fragilizados que estão a mais.

Quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, comunica com entusiasmo que chegou o momento da Europa se rearmar, para que os Estados possam contrair empréstimos sem limites para reabastecer os seus arsenais, é isso que está em jogo. No fim de contas, depois de todos os alarmes ambientais, para todos eles as bombas que protegem os seus muros são mais importantes que o aquecimento global. Nos últimos meses virou-se as costas ao ambientalismo. A aposta é o rearmamento.

As classes médias empobrecidas poderiam ser o toque a reunir, procurando alternativas, mas existe divisão, cinismo, medo ou impotência. Não é tanto que estejam a ser enganadas, mas estão enredadas nas teias do mercado e da tecnologia. A maioria opta por preservar o que tem, imaginando que não será afetada. Já os trabalhadores empobrecidos são levados a acreditar que a sua precariedade se deve aos imigrantes. Culpar os frágeis pelos atos da oligarquia é a forma eficaz de enganar as populações.

E é aqui que estamos. Portugal acerca-se da tendência. Existem traços de Trump ou de Milei nos discursos e práticas. O poder da brutalidade, do mais forte, do mais endinheirado, do mais desbocado, do mais cruel, como caracterizado por Fernández-Savater, está por aí. A paralisia que provocam leva-os a acreditar que inauguraram uma nova forma de governar baseada nos milhões, na digitalização, nos algoritmos, no domínio do quantitativo. É fácil ver no excessivo Musk um emblema disto. Mas existem muitos brutalistas, subtis, operando fora dos holofotes, quase invisíveis.

O mistério, as aspirações utópicas, as energias afetivas de que somos feitos dissolvem-se, emergindo os impulsos destrutivos, ou então um efeito de anestesia geral, para o qual também contribui uma comunicação social que se deixa enredar num ecossistema paralisante. Num dia vemos Gaza ser arrasada. No seguinte, uma outra circunstância ou guerra qualquer. Suspiramos, e nada fazemos, meio zombies, narcotizados.

Fica a indiferença. Quando não o prazer de ferir e ver outros sofrer. A crueldade predomina. Mbembe argumenta que a economia libidinal do brutalismo não envolve a renúncia, mas a ausência de limites. O mercado é a vida. Tudo se compra de forma acelerada, obscena, imediata. Colonizar significou sempre brutalizar. O colonialismo prefigurou o brutalismo, segundo ele. Sem restrições ou mediações, os mais robustos usufruem dos mais fracos como se fossem objetos descartáveis, ao mesmo tempo que, ao lado, nos comportamentos socioculturais, os estilhaços vão-se amontoando.

Jovens do sexo masculino sentem-se atemorizados diante do empoderamento feminino. A visibilidade das lutas anti-racismo cria um efeito reativo da parte daqueles que sentem os seus privilégios postos em causa. Gere-se o Outro, o que é diferente, de forma instrumental. Se tiver dinheiro para investir é aceite. Se for pobre é indesejado, isolado ou deportado. Torna-se supérfluo. Como já acontece também com muitos de nós. Não resistir a isto, não encontrar formas alternativas de estar no mundo, será o fim.

Encontros Improváveis: Mia Couto e Domenico Bigordi

Domenico Bigordi ~ "Francesco Sassetti (1421–1490) and His Son Teodoro"

Aprender a sonhar
"Nasci e cresci numa casa onde vivia um poeta. Era o meu pai. Os meus amigos de infância diziam-me: o teu pai é estranho! 
Todos gostavam dele, era fácil gostar de uma pessoa simples, tão gentil, tão atenta aos outros. Mas achavam-no “estranho“. 
Na verdade, eu mesmo assim pensava. Porque ele perdia um tempo infinito olhando as aves brancas a sobrevoar o Chiveve.
O meu pai trazia livros e discos para casa como um contrabandista transporta as mais valiosas mercadorias. Meu pai era garimpeiro de belezas num mundo ocupado por assuntos de tempo e dinheiro.
Nos meus anos de escola primária eu ia ter com ele ao armazém dos Caminhos de Ferro onde trabalhava. A ideia era que ela me controlasse nos deveres da escola. Mas o meu pai tinha outras prioridades. Ele queria sair daquele lugar cinzento e levar-me ao longo das linhas férreas a catar pedrinhas douradas que tombavam dos comboios...
Nenhum dos trabalhos da escola me podia ensinar aquilo que o meu pai me revelava: a possibilidade de ficar encantado com pequenas inutilidades. Parafraseando um poeta brasileiro: os pequenos utensílios.
Era verdade sim: o meu pai era um homem “estranho”. Mas eu dou graças a esta estranheza. Mas dou graças a essa estranheza. Porque foi com ele que aprendemos a estar atentos às coisas que parecem não ter valor. Isso que ele nos ensinava era uma sensibilidade...
Meu pai mostrou-me outro saber, um outro prazer: o da busca pela intimidade dos seres e das coisas. Ela ganhou vida, ganhou encanto. E ganhou uma história pelo simples facto de a termos procurado. O mais triste é o mais órfão neste nosso mundo é aquele que não tem história.
Em nossa casa não vivia apenas um poeta. Vivia a própria poesia. 
E a poesia é outro modo de designar a Vida."

O Ovo da Serpente 1977 - Filme Raro sobre Nazismo (legendado) - a ver e partilhar


O meu “dia seguinte” aconteceu em 2017 quando o Trump ganhou as eleições. Percebi que ele poderia não ser um epifenómeno mas o princípio de um perigoso processo de degradação e derrapagem para uma direita extremada. A forma como falava, a rudeza com que exprimia a negação dos valores mais elementares, o dizer e o desdizer a seguir com um encolher de ombros normalizando a volubilidade da opinião e decisão, o machismo grosseiro, as asserções anti-científicas...um verdadeiro retrocesso civilizacional.

A psicologia explica muitas coisas que escapam à análise política estrita. O Trump não plantou aquelas ideias nas pessoas: elas estavam lá, controladas pelos filtros sociais pelo assumir de valores socialmente desejáveis. Trump abre a caixa de Pandora que depois de aberta nunca se sabe quando se fecha. O mesmo com o Ventura em modo caseiro.

O que se seguiu foi o que se viu: o retomar dos discursos e políticas despudorados como o de Bolsonaro a que se seguiram tantos outros pela Europa fora. E assistimos à aproximação perigosa dos sociais democratas às teses da extrema direita (gelei com o último discurso do Montenegro nas anteriores eleições).

O mundo de hoje está numa deriva tremenda em que há liberdades que estão em risco e a estrutura, o osso do sistema está muito afetado. Há um torpor face a ataques inimagináveis : a proibição de livros nos EUA, o controle ideológico nas universidades, a proibição do uso de determinadas palavras obrigaria a um levantamento generalizado. Há manifestações grandes mas não há um clamor massivo de rejeição. Estes avanços estão a começar a grassar na Europa.

As guerras- as colunáveis e as outras mais silenciosas e silenciadas - a tragédia de Gaza e a tragédia do silêncio cúmplice adensam tudo. Os tempos são densos e turvos e é difícil visualizarmos uma saída.

Tem-me vindo à memória um filme que me impressionou imenso: “O ovo da serpente “ do Ingmar Bergman que de um modo bruto e discreto conta como o fascismo larvar roía o sistema na Alemanha a pré-anunciar o nazismo. Que chegou. Se puderem, vejam.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

A aula que ensina a ser gente


Na Dinamarca, há uma hora por semana em que não se aprende matemática, nem ciências, nem se conjuga o verbo "ter" — aprende-se, antes, a conjugar o verbo "ser".
Chama-se Klassen Tid, a “Hora da Classe”, mas bem poderia chamar-se a “Hora do Coração”.
Ali, entre mochilas, lápis e silêncios miúdos, as crianças aprendem a arte esquecida de se ouvirem umas às outras — com atenção, com alma.
Aos olhos do mundo, parece coisa pequena: falar de sentimentos na escola.
Mas os dinamarqueses, entre os povos mais felizes do planeta segundo o World Happiness Report (2024), sabem que não se constrói bem-estar sem empatia — esse cimento invisível que une o eu ao outro¹.
Durante essas sessões, dos 6 aos 16 anos, os alunos partilham dores, medos, pequenas vitórias.
Aprendem a escutar sem interromper. A respeitar sem julgar.
Os professores, mais que transmissores de conteúdos, tornam-se guias do sentir.
São jardineiros emocionais, regando com cuidado o terreno fértil da infância.
A prática tem respaldo na ciência. A psicóloga e investigadora norte-americana Michele Borba, no seu livro Unselfie², demonstra que ensinar empatia desde cedo reduz o bullying, melhora a performance académica e reforça a resiliência emocional.
Um estudo da University of Cambridge³ revela que crianças com maior inteligência emocional revelam melhores resultados em leitura e resolução de problemas — competências essenciais no século XXI.
E o próprio Ministério da Educação da Dinamarca reconhece o papel da Klassen Tid, obrigatória desde 1993, como elemento estruturante da formação cidadã⁴.
Num tempo em que as crianças são tantas vezes moldadas para competir, ali ensina-se a cooperar.
Num mundo onde se corre atrás do sucesso, ali aprende-se a parar para sentir.
Porque, no fundo, de que vale saber tudo sobre o universo, se não se compreende o que se passa dentro de nós ou do colega do lado?
Esta lição vinda do Norte traz um sussurro urgente aos restantes sistemas educativos:
Educar não é apenas formar profissionais é formar pessoas.
E, talvez, um mundo mais justo comece assim: numa sala de aula, com miúdos de olhos abertos e corações disponíveis.

Referências
1.World Happiness Report 2024 – Sustainable Development Solutions Network. Dinamarca aparece consistentemente entre os três primeiros países mais felizes do mundo.
3.University of Cambridge (2019). Emotional intelligence in children improves academic achievement. Estudo publicado no British Journal of Educational Psychology.
4. Ministério da Educação da Dinamarca. Curriculum guidelines and values in Danish schools.

Picar a manada… Mas com que aguilhão?


Que esforço inútil foi todo o meu apelo de ontem! Falava, e sentia-me a arder ingloriamente, como um papel incendiado que quisesse comunicar o seu lume a um monte de lenha molhada. E não eram façanhas que pedia! Limitava-me a exigir que não deixássemos substituir dentro de nós o pensante pelo ruminante…
Mas um rebanho é um rebanho. E tanto faz falar-lhe de lobos, como de estrelas. Sonolento, só entende o mundo limitado pelas malhas do redil.

Miguel Torga, in «Diário V» pág. 175

A empatia é uma fraqueza ou um superpoder? - Sem-Abrigo


Há formas de com pouco salvar vidas, e vou-vos mostrar como: Elon Musk diz que a “empatia é um sinal de fraqueza”, ele tem mais dinheiro, mas eu acredito que aqueles que acreditam que a empatia é dos sentimentos mais poderosos da mente humana são a maioria dos portugueses. Ajudam-me a provar que Musk está errado?
Orgulho-me muito de ter trabalhado uns anos no INEM, que para além da experiência médica que fui absorvendo me permitiu entrar em todo o tipo de casas, de todo o tipo de pessoas, no grande Porto. Bairros problemáticos dominados pelo tráfico e pelo crime, as famosas “ilhas” escondidas, e até casebres no meio do nada sem eletricidade. Entrei em todo o lado, com os 5 sentidos bem alerta. Achava eu que tinha visto tudo, mas infelizmente não. Há pior. Há muito pior.
Há um submundo escondido que não se vê a olho nu mesmo para quem já palmou a cidade de lés a lés. Gente que vive nos extremos da pobreza e faz por não ser vista pela fuga às autoridades e também para que não sejam vistos pelos cidadãos que têm local para tomar banho, ou seja, todos nós. Inimaginável como se colocam em tantos lugares onde já passei centenas de vezes e jamais imaginava que havia uma civilização escondida feita de tendas, panos e cartão. Alguma coisa em nós os fez tornarem-se invisíveis. São os “sem-abrigo”. Invisíveis mas iguaizinhos a nós.
A SABER COMPREENDER apoia de uma forma muito humana, integrada e de proximidade estas pessoas há quase 10 anos. Fazem as famosas “rondas”.
Prepararam-se os kits com comes, bebes, café e chá como cartão de visita para o mais importante: SABER quem são, e COMPREENDER os porquês de viverem sem um tecto digno, para que se possam tentar encontrar caminhos e soluções. Esta oferta de comida e bebida, além de suprir o básico é uma porta de entrada para uma conversa, para que aos poucos se ganhe a confiança com psicólogos e assistentes sociais, e se possam encaminhar estas pessoas à tão desejada dignidade humana, só alcançada com a independência económica. É um trabalho muito difícil, mas onde se salva “mais” vidas do que nos hospitais.
Dói-me a alma pensar que há tanta gente com tanto, e outros a dormir na rua ao frio, à chuva e à mercê da maldade alheia. Fontes oficiais: em Portugal a estimativa é que sejam mais de 13.000 as pessoas que vivem no degrau mais baixo da miséria, os sem-abrigo.
A SABER COMPREENDER faz o seu trabalho num regime de 100% voluntariado, e tinha até há pouco tempo o uso fruto duma carrinha da Junta de Freguesia que chegou ao fim. Agora, para que possam fazer o seu trabalho que tem toques de magia humana, acreditem em mim que já fiz uma ronda com eles, precisam de comprar uma carrinha em segunda mão… e já há semanas que não saem à rua, o que quer dizer que há muitos dos nossos irmãos mais pobres a sofrer ainda mais, por falta desta pequena, mas enorme ajuda e com incontáveis casos de enorme sucesso.
Se fosse fácil por certo já estaria feito. É preciso ouvir, sentir, dar e receber, criar laços, vincar a confiança, para que num momento... naquele momento certo, se consiga abrir a porta de saída para uma ajuda técnica e especializada que possa tratar as questões de fundo, e encaminhar para a tão desejada independência económica que lhes permita voltar a ser visíveis por todos nós. “Des-desumanizá-los”!
Cada um de nós vale pelo tamanho dos seus sonhos, e como sociedade apenas temos a força do nosso elo mais fraco. Só ficaremos mais fortes se fortalecermos os mais vulneráveis. É um facto. Somos um tecido humano, em que a fragilidade de uma peça, é o desequilíbrio de todos nós.
Nunca duvidem que podia ser qualquer um de nós, a “tropeçar” numa situação de sem-abrigo. Há dois anos, descobri que tinha um amigo de infância nessa situação, e foi a SABER COMPREENDER que tanto me ajudou, mas a minha admiração já vinha de antes ao ponto que lhes ofereço os lucros dum dos meus livros.
E por isso, vos peço a vossa ajuda (link a baixo), com o que entenderem poder dar, para que se consiga uma carrinha para que a humanidade não perca esta pequena gota de água de humanidade, mas que encharca de amor centenas e centenas de pessoas.
Contribuam, e partilhem se acreditam que vale a pena lutar por um mundo melhor!
Muita gente vos ficará grata por salvarem as suas vidas, e acredito que as memórias do Papa Francisco também vos agradecerão, tal como ele diz na sua carta de despedida revelada após a sua morte: “Se alguma vez as minhas palavras vos tocaram, não as guardem. Transformem-nas em ação. Abracem quem está sozinho.”
Ajudem a provar que Elon Musk está errado! Doar Aqui
IG 


Charles Bukowski


A solidão que frequentemente acompanha a inteligência e a sensibilidade. Ser inteligente não significa apenas saber mais — significa perceber o que muitos ignoram, enxergar contradições, mentiras, superficialidades e dores que passam despercebidas aos olhos comuns.
Quem entende demais sente demais. E essa consciência profunda pode isolar, porque nem sempre há com quem compartilhar esse peso de forma honesta. A lucidez, muitas vezes, é um caminho solitário.
O mundo parece barulhento, raso, repetitivo — e quanto mais se compreende, menos se pertence.

Charles Bukowski

O discurso da infâmia

[num domingo à noite, febril, deitado de lado, com o coração aos gritos e a televisão ligada no volume errado]
Ontem à noite, o país sentou-se a ver o circo. Um circo de uma só figura, de um homem só, de um espectáculo monológico onde o palhaço também era domador, director, macaco amestrado, leão faminto e criança perdida que grita da plateia para que olhem para ele, só para ele, sempre para ele. André Ventura falou. Falou como quem cospe. Falou como quem bate. Falou como quem quer ser amado mas só sabe odiar. E parte do país, a parte do país fatigado de esperar por Deus, ouviu. Ouviu como se ouve o padre numa missa a que se vai por obrigação, como se ouve a mulher que já não se ama ou o pai que já não se respeita. Ouviu com raiva, com cansaço, com culpa.

Disse que acabara o bipartidarismo. Disse-o como quem anuncia a queda de Roma, o fim dos tempos, a libertação do povo escolhido. E ali estava ele, o Moisés do populismo, de microfone à frente e a azia no bolso como quem esconde a vergonha, prometendo terra prometida a quem nunca teve jardim. Disse que a história tinha mudado, que agora o país era outro, um país dele, feito por ele, para ele, com ele ao leme e os outros calados, de joelhos, em silêncio. Ventura quer o país em silêncio. O país de joelhos. O país em medo. Ventura não quer governar. Ventura quer mandar. E o que há de mais grave é que há quem deseje ser mandado. Há quem precise.

O Chega não é um partido. É uma carência. Um sintoma. É o vómito do país que nunca curou a sua tristeza. Que finge que é alegre no São João, no Santo António, nas bifanas do domingo, nos copos do sábado, nas sardinhas do Junho. Mas que sangra por dentro. Que odeia por dentro. Que tem raiva de si, de tudo, de todos. Ventura oferece isso: um inimigo. Um sentido. Um alvo. Se há um culpado, já não sou eu. Já não é o meu fracasso, o meu salário, a minha solidão. É o cigano, o negro, o comunista, o assistente social, o jornalista, o juiz, o reformado, o artista, o pobre, o estranho. Ventura dá um nome à frustração. E isso consola. E isso vicia. E isso mata.

O seu discurso foi uma lista de cadáveres simbólicos. “Matei o partido de Álvaro Cunhal”, disse, como se estivesse a caçar fantasmas no sótão. “Varreram o Bloco de Esquerda do mapa”, gritou, com o orgulho de quem limpa sangue do chão e chama a isso arrumação. Para Ventura, política é isso: uma limpeza. Uma desinfecção. Uma purga. Como se o país estivesse sujo e só ele, com a sua verdade puríssima, o pudesse lavar. E lavar com quê? Com insultos. Com medo. Com castigos. Com prisões perpétuas. Com castrações químicas. Com multas. Com violência.

E depois, claro, o momento cómico, se a comédia ainda tivesse graça. Atacou as sondagens. Sempre as sondagens. Sempre o mesmo coro: que o queriam calar, que o queriam derrubar, que lhe mentem, que lhe fazem armadilhas. Ventura não percebe que as pessoas votaram no seu partido com vergonha de o fazer, de o dizer às sondagens. Ventura é o miúdo que jogava mal à bola e que ninguém quis na equipa e passou o resto da vida a sonhar ser capitão. E agora que lhe deram um apito, anda a expulsar todos os que correram mais depressa do que ele. Ventura não acredita em instituições. Acredita em si. Ventura não acredita em regras. Acredita no seu instinto. Ventura não acredita no país. Acredita no seu espelho.
E depois aquela frase. Aquela frase que soa a taverna com vinho barato e gritaria ao fundo. “A mama vai mesmo acabar.” Disse-o com o orgulho de quem faz justiça, mas com o tom de quem está habituado a mentir e a justificar-se com o cansaço. A mama vai acabar. A mama, quer dizer, o Estado. Os apoios. Os direitos. A solidariedade. Os serviços. A dignidade. Ventura quer um país onde só os fortes sobrevivem. Onde quem não consegue, morre. Onde quem chora, se cala. Onde quem precisa, se esconde. Porque, para ele, a vida é uma luta de cães. E ele é o dono da trela.

Mas Ventura não quer que a mama acabe. Ventura quer ser ele a mamar. Quer o lugar do outro. Quer mandar nos subsídios. Quer mandar na televisão. Quer mandar na escola. Ventura quer mandar. Ventura quer mandar. Ventura quer mandar. E o país, esse país magoado, esse país velho que já não acredita em ninguém, esse país que se esqueceu como é que se luta, esse país votou nele como quem diz: “toma, faz tu melhor.” E ele fará. Mas não será melhor. Será só mais triste. Mais cruel. Mais pequeno.

O que me espanta não é Ventura. Ventura é uma personagem de novela das seis: previsível, mal escrita, exagerada. O que me espanta é o silêncio. O silêncio dos outros. O silêncio dos bons. O silêncio dos sérios. Dos que deviam estar ali, naquele exacto momento, a dizer: basta. Mas estavam calados. Com medo de perder votos. Com medo de serem insultados. Com medo de não parecerem “populares”. E assim se mata uma democracia: não com balas. Com medos. Com cobardias. Com silêncios.

Este discurso, o de 18 de ontem, não foi um discurso. Foi uma bofetada. Foi uma noite de gritos num quarto fechado. Foi o início de qualquer coisa escura. E se não gritarmos agora, se não dissermos agora, alto e claro, que isto não é normal, que isto não é aceitável, que isto não é o país que queremos, amanhã já não poderemos falar. E depois? Depois virá o silêncio. O grande silêncio. O silêncio dos cemitérios. E Ventura sorrirá. Porque não há nada mais cómodo para quem quer mandar do que um povo sem voz. E nós estamos perigosamente perto disso. Perto de calar. Perto de baixar a cabeça. Perto de desistir.
E quando isso acontecer, será tarde. Será sempre tarde.
Maio 2025
Nuno Morna

P.S: Estarei sempre do outro lado da barricada. Com todos os que são, efectivamente, pessoas de bem, não os que se dizem, mas os que o demonstram, com os que amam a liberdade sem adjectivos e a democracia sem asteriscos. No combate a todos os radicalismos, venham eles mascarados de justiça ou de ordem, de povo ou de nação. No combate aos que aparecem para dividir, para semear o ódio, para apagar a pluralidade, para transformar o medo em política. No combate, sempre, à intolerância, a intolerância dos gritos e a dos silêncios cúmplices. 
Quero viver com a noção de que "Combati o bom combate", 2 Timóteo 4:7-8. 
Da minha parte, não esperem outra coisa. Nem agora, nem nunca.

domingo, 18 de maio de 2025

45 anos sem Ian Curtis


A última foto de Ian Curtis, tirada na manhã de 15 de Maio de 1980, para o passaporte daquela que iria ser a primeira digressão americana dos Joy Division. Como se sabe Curtis nunca chegou a fazer essa viagem porque, dias depois, há 45 anos, pôs fim à vida. Os Joy Division, como uma vez disse Peter Hook foram “profissionais” apenas durante os 6 meses anteriores à morte de Curtis, porque todos eles tinham ocupações profissionais antes. Se pensarmos bem provavelmente nunca existiu outra banda tão influente nos desenvolvimentos da música popular, ainda hoje com um legado muito potente, tendo sido “profissional” apenas seis meses.

Na noite do dia 17 de maio, dias antes do início da primeira turnê do Joy Division nos Estados Unidos, Ian assistiu a um de seus filmes favoritos, Stroszek, de Werner Herzog, enquanto ouvia Weeping, momentos antes de se enforcar, falou por telefone com Genesis P-Orridge. E nas primeiras horas da manhã do dia 18 de maio, Ian enforcou-se em sua cozinha, utilizando uma corda que sustentava o varal de roupas, segundo se conta, ouvindo o disco The Idiot, primeiro lançamento do cantor norte-americano Iggy Pop. Os pontos de vista e as preferências de Ian Curtis continuam a gerar especulações sobre as reais razões pelas quais ele resolveu tirar a própria vida. Alguns dizem que ele simplesmente desejou morrer jovem. Mas o fato é que Ian já era conturbado na sua adolescência, com pensamentos e ideologias de contracultura, uma mente provavelmente já farta do mundo ao seu redor.


Bruno Stroszek (Bruno S.), um músico de rua alcoólatra, acaba de sair da prisão. Sem esperanças, ele conta apenas com um glockenspiel e um acordeon. Logo conhece a prostituta Eva (Eva Mattes) e, em companhia de Scheitz (Clemens Scheitz), excêntrico vizinho de Bruno, decidem ir para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor.

Carolyn Steel - Desafios da Sitopia para alimentação nas grandes cidades hoje


E se o caminho para transformar o planeta e torná-lo sustentável dependesse de algo tão cotidiano e de primeira necessidade como a comida? Este é o argumento defendido pela arquiteta, professora e escritora britânica Carolyn Steel, em seu livro Sitopía (Capitán Swing, 2022).

Sitopia é um termo inventado por Steel a partir das palavras gregas sitos (alimento) e topos (lugar), e significa, literalmente, lugar de alimentos. Com isso, pretendia dar um nome à nossa sociedade, um mundo conformado pela comida.

Steel reflete sobre como a forma como nos alimentamos moldou nossas cidades. Conforme os mercados tradicionais vão desaparecendo e o valor que atribuímos à comida é cada vez menor, também vamos perdendo a coesão social, a saúde e até a nossa própria identidade cultural. Por dependermos de alimentos cada vez mais baratos e produzidos de modo intensivo, entramos em um modo de vida menos sustentável. Ainda temos tempo para mudar?

A entrevista é de Mariángeles García, publicada por Yorokobu, 22-03-2023. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.

A filosofia está muito presente em seu livro. O fato desta disciplina estar desaparecendo dos planos de estudo (ao menos na Espanha) nos torna, como cidadãos, mais vulneráveis a ideologias que nos desumanizam?
Sim! De fato, acredito que estamos perdendo a capacidade de pensar por nós mesmos e de nos fazer grandes perguntas, o que realmente me preocupa. Penso que a internet criou uma espécie de supermercado das ideias, no qual as pessoas vão às compras até encontrar conceitos pré-fabricados que as atraem. Então, elas os adotam por atacado, como se tivessem sido pensados por elas próprias.

Isto me preocupa muito, porque essas ideias, muitas vezes, tornam-se ideologias irremovíveis. Também nos expõe a acreditar em teorias da conspiração e a ser incapazes de examinar o que realmente pensamos desde a base e, portanto, de estabelecer um debate fundamentado. Como vimos com a recente invação ao Capitólio dos Estados Unidos e agora ao Congresso brasileiro, este fenômeno ameaça a própria democracia.

Qual é a relação entre filosofia e alimentação, e como isso afeta nossa cultura alimentar?
Bem, existem poucos atos tão significativos como o de comer: levanta questões muito profundas como o que é a vida, o que significa compartilhar com justiça, qual é a nossa relação com a natureza e como é uma boa vida.

Por exemplo, só pelo fato de comer, nós nos autorizamos a considerar nossa vida mais importante do que a de, por exemplo, um frango ou uma batata. Mais do que isso, penso que ver o mundo pelo prisma da comida pode nos ajudar a nos tornarmos filósofos, o que significa que pode nos habilitar a fazer grandes e importantes perguntas. E isso, conforme eu dizia antes, é extremamente importante. De fato, se eu tivesse que redesenhar o plano de estudos, colocaria a alimentação e a filosofia entre as disciplinas mais importantes.

Por isso, inventei a palavra sitopia, porque vivemos em um mundo moldado pela comida. Sendo assim, pensar a partir dela pode nos ajudar a olhar ao nosso redor, questionar nosso lugar no mundo e voltar a nos fazer essas grandes perguntas.

O urbanismo das cidades costumava gravitar em torno de seus mercados: eram os centros de reuniões sociais e quase políticas. Como o urbanismo mudou, desde que a nossa alimentação piorou?
O mercado era o centro da cidade pré-industrial, não só fisicamente, mas social, econômica, simbólica e politicamente. Antes que a industrialização destruísse a o vínculo geográfico entre os alimentos e as cidades, os mercados eram os únicos lugares onde as pessoas podiam comprar alimentos frescos, então, todos recorriam a eles, não só para comprar comida, mas para uma socialização, para saber das últimas notícias e tagarelar.

Basta ler as descrições da ágora ateniense, os relatos de Zola sobre Les Halles, em Paris, e os de Samuel Pepys sobre Covent Garden para perceber como esses espaços públicos eram vibrantes. De fato, os supermercados foram projetados especificamente para eliminar os encontros sociais que outrora caracterizavam os mercados, o que significa uma grande perda.

O que essas mudanças implicam?
Como arquiteta, tenho muito interesse na importância da esfera pública, ou seja, a presença de um espaço aberto, inclusivo e heterogêneo no qual se é livre para atuar e se encontrar face a face com seus concidadãos. De fato, isso está diretamente relacionado ao debate anterior, sobre como as pessoas estão perdendo a capacidade de debater e pensar por si mesmas, porque grande parte dessa atividade agora é realizada on-line. E isto está longe de ser um verdadeiro espaço público, já que, como sabemos, é muito manipulado.

As implicações são enormes, uma vez que limitam nossa experiência do outro e nossas oportunidades de sentir o que temos em comum (apesar de nossas diferenças). E, por sua vez, ameaça nosso compromisso político e, de fato, nossa capacidade de participar como cidadãos em uma democracia que funcione.

Qual é a primeira coisa que você faz quando viaja para uma nova cidade? 
No meu caso, e penso que no de muitos de nós, é procurar pela comida local e tradicional, seja em mercados, comércios locais, cafés e restaurantes. É de longe a maneira mais rápida (e prazerosa!) de entender o que faz um lugar funcionar, como as pessoas se relacionam, como são a paisagem e a cultura local.

Uma cidade como Barcelona, por exemplo, que protege e investe em seus mercados e promulga leis para protegê-los do desenvolvimento dos supermercados, seria uma dessas cidades. E, claro, muitas cidades do sul permanecem organizadas de forma espetacular em torno de suas culturas alimentares tradicionais, porque a marcha inexorável do McDonald's et al ainda não as alcançou.

Penso que a mensagem mais poderosa que podemos enviar a esses lugares é que, a todo custo, se apeguem a suas culturas alimentares locais: uma vez perdidas, é muito difícil recuperá-las (como qualquer pessoa no Reino Unido pode dizer!) e delas depende, em grande medida, a coesão social e política de um povo.