Em 1989, sob a chancela da Quetzal Editores e apoio do Instituto de Promoção Turística era dada à estampa uma edição com grafismo irrepreensível intitulada Portugal, texto de José Mattoso e fotografia de Nicolas Sapieha.
O elenco de imagens do malogrado fotógrafo norte-americano ainda hoje satisfaz a exigências dos mais exigentes, independentemente dos aspetos da datação. O texto do historiador José Mattoso é, em meu entender, uma daquelas peças que se podem alinhar ao lado das de Eduardo Lourenço, António Sérgio, Jorge Dias ou Orlando Ribeiro sobre a identidade dos portugueses. São parágrafos sublimes, podiam facilmente circular no sistema educativo reportados à educação cívica.
Oiçamo-lo falando da consciência de ser português:
“Creio que é o secular contacto dos portugueses com outros povos, sobretudo não europeus, aquilo que mais lhes tem dado ocasião de tomarem consciência da sua própria identidade nacional. Mas a prevalência desta situação torna a experiência da identidade demasiado dependente do contexto da ausência e da distância – portanto, da imaginação de uma realidade que se tenta reconstituir pela memória (…) Os Lusíadas voltam a repetir-se todos os dias. Os portugueses só se consideram como tais para darem alguma resposta aos novos reis de Melinde que sem cessar os interrogam. Então são capazes, até, de contarem o que aprenderam na escola – histórias de batalhas e de reis, aventuras de antepassados heroicos como se fossem suas, glórias dos chefes que tomam como próprias, fidelidades meritórias que só foram de vassalos interesseiros e eles transformam em virtudes aglutinadoras de todo um pouco. Assumem uma alma coletiva que só existe nos livros de escola e cujos feitos eles aprenderam a custo para obterem o diploma que dava acesso ao emprego”.
E o historiador recorda as estruturadas assimetrias entre os letrados e os analfabetos, as problemáticas que só ganham sentido nas elites intelectuais para concluir que a consciência da identidade portuguesa parece forjar-se sobretudo na confrontação com outros povos, tanto pode ser a luta contra a moirama como as conquistas e navegações que se seguiram, não excluindo a travessia dos sertões brasileiros. É desse contágio e permuta de experiências que o português toma consciência do que é perante os outros povos e se reconhece como irmão do seu compatriota e súbito do mesmo rei.
Até ao romantismo, nada mais havia a perguntar ou a saber, havia a história oficial que servia para basear a história coletiva. As interrogações chegam a partir do momento em que se procura a ligação da cultura, da língua e da nação com a Natureza. Então, o confronto faz-nos hesitar entre as glórias passadas e aquela decadência que se passou a viver desde o século XVII em diante. E com a independência do Brasil falava-se constantemente na decadência, no declínio, então abriu-se a porta de África, reacendia-se o desafio coletivo.
Com o Estado Novo e a sua ideologia nacionalista recriou-se a ilusão de que a decadência tinha terminado e era possível recuperar o vigor primitivo. Mas a questão matricial permanecia: onde está o espírito da Nação? O que é ser português? Quais são as suas características comuns? O que explica a sua história? A intelectualidade portuguesa andou mais de um século a caminhar por becos sem saída, nem Fernando Pessoa escapou.
O fim formal do Império, em 1974, criou as condições para que os portugueses procurem compreender-se a si próprios de maneira mais realista. Diz José Mattoso que a Revolução dos Cravos repetiu, de alguma maneira, situações comparáveis a 1910, 1640 ou 1383:
“Constitui o ponto de apoio histórico para que a memória nacional recorde a capacidade coletiva de reagir a uma situação de crise. É uma condição importante para criar ou fortalecer uma consciência de identidade que não se baseie exclusivamente em dados ilusórios. As revoluções, na medida em que necessita do concurso de uma grande multidão de indivíduos para triunfarem, possuem, como acontecimentos reais que são, e justamente por serem reais, a virtude própria de simbolizar melhor do que quaisquer outros a capacidade que todo o indivíduo tem de participar no destino da Nação”.
Não devemos a identidade à geografia embora esta seja um ponto de partida na certeza de que não há nisso qualquer espécie de determinismo mecanicista. Um olhar mais sustentado merece o poder político, se acaso este entre em sintonia com os comportamentos generalizados dos cidadãos e os ajuda a melhorar, respondendo às alterações que são expectáveis. Há as críticas que há séculos lançam sobre os portugueses sobre uma alegada incapacidade de planeamento e de organização, aliada a um jeito especial para a improvisação. E José Mattoso pronuncia-se sobre a saudade e o lirismo, a improvisação e o chamado sentimento universalista. Quanto à saudade e o lirismo, questiona se não resultará do facto de nos vermos impelidos a emigrar, o que é uma constante da História portuguesa, foi o que aconteceu desde o século XI com os de Entre Douro e Minho e que procuravam o Sul, e mais adiante o constante fluxo para a África, Índia, Insulíndia ou Brasil, até chegarmos a caminhar para França, Alemanha, Suíça, Luxemburgo ou Canadá.
“Quem lutava contra a penúria, a fome ou a exploração, tinha de colocar a esperança no além, num amanhã, não próximo, mas incerto, situado noutro lugar, noutro espaço, noutro tempo (…) Ora esta experiência comum de tantos portugueses, repetidamente renovada ao longo dos séculos foi, sobretudo pelos que iam ficando, sublimada em poesia, romance ou ensaio, tornou-se um tema quase obsessivo da literatura portuguesa. Resta saber, porém, se o fenómeno pode ser, de facto, generalizado. Para o saber será preciso averiguar, por exemplo, se se encontra com a mesma intensidade na literatura popular. Se não será resultado das condições de vida de uma minoria escolarizada capaz de escrever, de uma minoria que pode até dispor de algumas vantagens no país, mas demasiado magras para serem preferíveis aos riscos da emigração”.
Falando agora da improvisação, recorda o estado concentracionário que existe desde Afonso III, o que poderá levar à convicção da inutilidade das previsões, à impossibilidade de responsabilização e da participação nas decisões. Se tudo é decidido por uma pequena minoria, a malta desenrasca-se.
Quanto ao universalismo, é verdade que entramos facilmente em contacto com outras civilizações, e o historiador tece uma observação admirável:
“Desenraizado, o português sente-se irmão de todos os homens, espera deles a luta ou o braço, não tem preconceitos contra nada ou ninguém, integra-se facilmente. Não só o português – todo o homem desenraizado. Só que isso tem acontecido a muitos portugueses desde há séculos.”
José Mattoso relembra o papel da intelectualidade no chamado período da decadência e releva a figura de Gonçalo Mendes Ramires, da Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós, por ir buscar em África as virtudes dos antepassados. Esse quadro ilusório simplesmente já não existe.
E agora? Agora adaptamo-nos a ser portugueses. Pode muito bem acontecer que venhamos substancialmente a mudar a opinião que temos de nós próprios. “Pelo menos daqueles que se consideravam vítimas de uma irremediável decadência coletiva”.
Não conheço melhor síntese sobre a questão de ser português nesta nossa modernidade.
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