quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Raquel Varela, o modelo sueco e o debate público


Por Maria João Marques, Público, 23/12/2020

Há dias encontrei um exemplo de pomposidade e arrogância académica. Daqueles próprios de um país que se deslumbra mais facilmente com argumentos de autoridade, tons professorais e estatuto do mensageiro que com o conteúdo da mensagem.
Via-o na resposta de Raquel Varela a Carmen Garcia, à volta das políticas para a pandemia defendidas pela académica. E refiro este texto não para defender Carmen Garcia (não precisa), mas para ilustrar tantos vícios bafientos que persistem no debate público em Portugal. E que o encurtam e empobrecem.
Logo para começar, Raquel Varela preocupa-se em (re)estabelecer uma hierarquia, alardear galões e menorizar a interlocutora. Descrita como mera “blogger sobre o ‘quotidiano da maternidade’ e enfermeira”. A quem Varela não pode devolver o apreço intelectual, porque desconhece “a sua produção intelectual e publicações sobre os temas”. Além disso, assevera, Carmen Garcia desconhece o país, bem como as causas estruturais e conjunturais da situação atual e apresenta o maior feito de ter ventilado doentes.
Já Raquel Varela tem várias décadas de produção intelectual sobre muitas coisas, entre elas a história das pandemias. Subtexto: como é que uma enfermeirazita, que põe umas algálias e só porque sabe mexer em ventiladores, ousa questionar a esplendorosa sapiência de uma pessoa que produz maravilhas intelectuais há duas décadas? (Com curiosidade, fui procurar as publicações de Varela sobre a história das pandemias e as consequências económicas das respostas políticas. Não encontrei. Estarão certamente offline.) O debate público desaparece, portanto, porque a académica não reconhece a enfermeira e blogger como interveniente com contributos relevantes para a discussão.
Esta mentalidade de castas não tem somente consequências para anular debates, mas para a tomada de decisões. É o desprezo pelas experiências de quem está no terreno, na tal linha da frente (seja da covid, da violência doméstica ou nas salas de aula), que tantas vezes produz legislação e regulamentos impraticáveis ou contraproducentes, se não mesmo calamitosos (mas na teoria impecáveis). Desconfio muito do anti-intelectualismo. Porém, desacredito igualmente nos teóricos que se encantam com as suas soberbas construções intelectuais completamente desligadas dos factos, da prática e da natureza humana.
E esse é outro vício do debate em Portugal: nunca aceitar ser avaliado pela adesão aos factos. As ideias são tão boas quanto os galões de cada um, mas é indiferente se navegam numa realidade alternativa.
Ora já temos factos – medidos – que podemos avaliar. A Suécia, com o seu modelo alternativo, errou em tudo. Pretendiam alcançar imunidade de grupo deixando o contágio correr. Não alcançaram. Garantiam não vir a ter segunda vaga de covid – e estão nela neste momento. Um dos países mais ricos do mundo tem os hospitais perto de colapsar. Não colapsaram na primeira vaga porque os idosos dos lares (que caíram como tordos), nem sequer foram para lá encaminhados. A Suécia, comparativamente aos vizinhos nórdicos, tem simultaneamente mais mortes por covid por milhão de habitantes e maior contração económica.
Diferentemente, os países que apostaram na supressão do contágio de covid puderam mais depressa regressar à vida normal. As relações pessoais e os prazeres retomaram-se. As crianças regressaram calmamente às escolas. Seja China, Taiwan ou Nova Zelândia. E, no entanto, a China vai crescer em 2020. Taiwan também. A Nova Zelândia tem uma robusta recuperação económica em V. É um facto que as melhores performances económicas vêm dos países que contiveram com sucesso o contágio, e as piores dos países com mais mortalidade.
É bastante presunçoso pretender que décadas de produção intelectual, ou outros pergaminhos, contem mais que a capacidade de olhar para os factos. Mas é parte do debate público português. A desconexão com a realidade consegue ser total. Pretender, como Raquel Varela, que uma doença pandémica não é primeiramente problema de política de saúde é só tontice. Porque não adianta analisar se a macroestrutura económica e social facilitadora da pandemia é criticável. É o que temos e no momento importa salvar vidas e evitar contágios (e sequelas). Calmamente escrever papers sobre ordenamento das cidades, remuneração e direitos dos trabalhadores dos serviços essenciais, capitalismo selvagem e afins, e daqui por uma década implementar mudanças, bem, não me parece a mais ajuizada forma de responder a uma doença contagiosa e mortal agora.
Donde, os debates públicos não são para ficar em circuito fechado na universidade (alguma dela desligada do mundo). Os académicos têm, claro, obrigação de participar no debate. Os técnicos também. Desde logo porque, como se vê a propósito da covid, debates frequentemente redundam de valores e de quadros civilizacionais preferenciais.
Raquel Varela, pelas suas razões, considera a sociedade sueca mais adulta e democrática no pós-covid. Pela minha parte, considero sociedade adulta e respirável uma que não deixe morrer a eito idosos e imunocomprometidos. Uma sociedade que percebe que há ocasiões na história más em si mesmas. E que todas as respostas terão custos, restando tentar escolher a que tem menos.
Prefiro uma sociedade que adote um contrato social que proteja os mais fracos – seja de saúde ou economicamente – a uma sociedade que não prescinde de ir de férias para o Mediterrâneo ou manter uma vida social movimentada, mesmo que tal continuação de normalidade resulte em milhões de mortos. (E em economias arrasadas e em traumas coletivos.)
Não peço confinamentos para esta segunda vaga, nem estratégias de supressão do contágio (essa oportunidade já se perdeu de vez na Europa). Sou muito sensível a questões de saúde mental durante a pandemia e às necessidades de escape. Mas a uma política darwinista para a covid, como a sueca, reputo-a de egoísta e corrosiva da lealdade de cada um para com a comunidade. Porque se fica a saber que essa comunidade, com toda a descontração, deita os mais fracos para debaixo do comboio.
Quando Mao Zedong viajou para Moscovo, em 1957, proclamou que não fazia mal que metade da população mundial morresse se o mundo sobrevivente se tornasse comunista. Até os duros corações soviéticos que o ouviram se escandalizaram com a tirada. Tenho no oposto disto um princípio de vida: morrer muita gente para se alcançar uma boa sociedade, ou adulta e democrática, não é bom caminho

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