“Está vendo aquelas pessoas lá embaixo? Assim que você os tiver na mira, atire. Atire! Vai, fogo!”. Essa é uma conversa entre dois membros do esquadrão norte-americano na Guerra do Iraque apresentada pelo documentário “A guerra que você não vê”, ou The war you don’t see, em inglês. As pessoas “lá embaixo”, na mira da metralhadora, são civis em Bagdá. Vale constatar que, a despeito do avanço tecnológico, as mortes de civis em guerras têm crescido. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), 15% dos mortos eram civis; na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a quantidade foi de 65%. E durante os conflitos ocorridos na África e Oriente Médio, entre os anos 1990 e 2000, o número de pessoas mortas e não envolvidas diretamente na guerra foi de 90%.
Segundo dados do Iraq Body Count, entidade com sede na Grã Bretanha, dos 174 mil mortos na Guerra do Iraque, 112 mil eram civis. Quase oito entre dez mortos desde que a invasão capitaneada pelos Estados Unidos começou no ano de 2003.
O documentário se concentra no papel que os principais canais dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha exerceram para influenciar a opinião pública em relação à Guerra do Iraque. Destaque para entrevistas com representantes de Cable News Network (CNN) e British Broadcasting Corporation (BBC). Qual é o papel da mídia nessas guerras? De que forma a cobertura midiática muda ou não a opinião das pessoas sobre eventos assim? Como os crimes de guerra foram reportados? Como foi a participação dos iraquianos na cobertura jornalística? E de que forma eles eram representados?
Essas questões foram levantadas pelo jornalista nascido na Austrália e radicado em Londres, John Pilger, de 71 anos. John Pilger já foi correspondente de guerras em países como Vietnam, Camboja, Egito, Índia e Bangladesh. Diversas cenas e diálogos apresentados pelo filme provam que o Iraque não tinha armas nucleares como alegavam os Estados Unidos. A suposta presença de armas foi o estopim para que a guerra começasse. Depois de milhares de mortes – de civis e de soldados – e de milhões de dólares investidos, verificou-se que não havia perigo naquele país. Ou seja: a justificativa dada para que a guerra começasse não procedia. No fundo, a causa da guerra que matou milhares de pessoas era o controle do petróleo.
Outro tema abordado pelo documentário é o papel das relações públicas dentro das guerras. É retomada a “primeira estrutura de propaganda moderna”. O então presidente norte-americano, Woodrow Wilson, criou e instituiu uma forte máquina de propaganda com a ajuda de Edward Bernays. O documentário o cita como um dos responsáveis por convencer a população americana de que a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) era benéfica. Esse conflito tirou a vida de mais de 16 milhões de pessoas e feriu outros tantos. Mesmo assim, a estrutura de propaganda dirigida por Bernays fez com que os pontos positivos desse conflito se concretizassem na memória americana. Ele “vendeu” a guerra ao povo. Na época, um ministro inglês chegou a declarar, conforme mostra o filme: “se as pessoas soubessem o real motivo da guerra, ela acabaria amanhã”.
Quando Bernays faleceu, o jornal New York Times colocou em seu obituário que morria o “pai das relações públicas”. O texto diz que Bernays foi um dos primeiros a expandir os mecanismos de ‘criação da opinião’ (opinion making) e mudanças comportamentais. “Relações públicas, usadas efetivamente, ajudam a validar o princípio oculto da nossa sociedade: competição no mercado das ideias e das coisas”, escreveu Bernays em 1971.
Uma das situações abordadas pelo filme é o caso dos embedded journalists, ou seja, os jornalistas “embutidos”. Recebem esse nome porque vão junto com as forças do exército para os confrontos. Apesar de terem mais segurança trabalhando dessa forma, isso se mostra como um problema para a cobertura investigativa. Em troca dessa segurança, diz o documentário, os jornalistas só podem ir a locais permitidos pelo governo, o que influencia totalmente a cobertura, já que presenciar as situações que o governo não deseja mostrar seria fundamental para registrar com mais fidelidade os fatos.
O documentário apresenta cenas e depoimentos fortes das guerras, revelando coisas jamais televisionadas, como o caso de uma mulher que aponta o lugar de sua casa onde um familiar seu foi metralhado. Ou cenas de crianças chorando contra a brutalidade dos soldados com armas. As imagens demonstram a violência sofrida pelos civis em suas próprias casas, humanizando aquele povo que não conhecemos e, por isso, não nos solidarizamos com ele.
O jornalista Dan Rather, da CBS News, afirma no documentário que acredita que as chances de os Estados Unidos entrarem em guerra com o Iraque seriam menores se os jornalistas tivessem realizado um trabalho mais duro, de questionar, ao invés de somente “ouvir e reportar as notícias oficiais”.
A ideia que o permeia todo o filme é que essa cobertura dos embedded journalists faz com que a imagem do conflito seja diferente para quem o vive, nos países afetados, e para quem os acompanha pelas grandes redes de comunicação. Há um abismo entre a informação recebida pelo público ocidental e as pessoas comuns que têm seu espaço invadido e suas vidas destruídas.
O documentário cita que foram mais de 700 embedded journalists para a cobertura da guerra no Iraque, número superior ao de muitas redações. Em algumas ocasiões, por exemplo, forjaram imagens. Mudavam os ângulos para criar situações irreais. Tudo isso com profissionais que atuaram na época. A rede Al Jazeera tentou fazer oposição a essa situação. Mostrou o outro lado, o descontentamento dos iraquianos. E seus escritórios no Iraque foram alvos de atentados. Destaque para a entrevista com Julian Assange, fundador do Wikileaks, que revelou diversos documentos contrários à guerra.
Portanto, A guerra que você não vê é um filme indicado para que as pessoas possam enxergar um lado diferente daquele mostrado com frequência. Para pararmos de acreditar totalmente em tudo que vemos ou lemos. Para questionar.
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