segunda-feira, 9 de junho de 2025

Gabor Maté: “No Ocidente há um vazio profundo, que vem da falta de pertença, da perda de ligação”

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O corpo e a mente são inseparáveis e o modo de vida ocidental põe-nos doentes, diz este médico-pensador. Os seus livros são best-sellers. Um deles chama-se 'No Reino dos Fantasmas Famintos'.
Pedro Rios, Público, 2/05/2025

Ela tinha 27 anos. Era trabalhadora do sexo e tinha VIH. “A primeira vez que consumi heroína foi como um abraço quente e terno”, disse esta toxicodependente de Vancouver ao médico Gabor Maté, que então trabalhava com esta população.
No gueto das drogas de Vancouver, Maté ouviu muitas histórias idênticas. Como a de Nick, viciado em heroína e metanfetaminas, consumidor de drogas “para não sentir a porcaria dos sentimentos” que sentia quando não as consumia; a de Frank, “alma doce”, “solitário heroinómano”, que escreveu num poema que procurava “alívio para a dor”, mas só encontrou um “bilhete de ida num comboio para o inferno”; ou a de Serena, mulher indígena de pouco mais de 30 anos que encontrava nas drogas uma forma de esquecer os abusos sexuais que começou a sofrer aos 7 anos.
São histórias contadas por Gabor Maté em 'No Reino dos Fantasmas Famintos', finalmente publicado em Portugal. Disseram-lhe que o livro humaniza os toxicodependentes, um reconhecimento que “reflecte uma percepção errada fundamental e comum”, a de que os viciados em droga não são realmente humanos como os restantes. “O que impede tantas pessoas de verem isso?”
Com mestria de contador de histórias e apoiado por estudos e pela sua experiência como médico residente da Portland Hotel Society (uma organização sem fins lucrativos que apoia toxicodependentes, dando-lhes alojamento e cuidados médicos), Maté explica que as drogas são o fraco e sempre incompleto consolo de muitos humanos (como Nick, Frank e Serena), preenchendo vazios afectivos que remontam quase sempre à infância, tal como o trabalho, o jogo, a pornografia ou compras são respostas aos vazios de outros. “A nossa sociedade, com pessoas cada vez mais desesperadas para escapar ao isolamento e desânimo das suas vidas quotidianas, está repleta de todos os tipos de dependências, e cada vez surgem mais”, escreve o autor, que, em 2018, foi distinguido com a Ordem do Canadá.
Quando publicou este livro, em 2008, o húngaro-canadiano era já conhecido como especialista em temas como as dependências, o stress, o trauma, o desenvolvimento infantil e o défice de atenção. Os seus livros, as suas palestras e as suas entrevistas chegam a uma multidão de pessoas à procura de respostas num mundo agitado, nervoso, ansioso como elas. No livro que se seguiu, 'O Mito do Normal' (2022), interpreta várias epidemias no Ocidente (como a de obesidade ou de doenças mentais) como, em boa medida, manifestações de uma cultura “doente”, que negligencia que corpo e mente são indissociáveis, que varre para debaixo do tapete os traumas e o stress que carregamos nesse corpo-mente.
Ele que o diga. Conta com frequência que, aos 12 meses, foi temporariamente abandonado pela mãe. Na verdade, a mãe entregou o bebé Gabor a familiares para lhe salvar a vida (o episódio passou-se na Hungria sob o domínio nazi, em 1944, e os Maté são uma família judia). “Vivi aquele acontecimento da única forma como um bebé poderia viver: como abandono”, escreve no livro agora editado em Portugal. O “abandono” ficou como que inscrito nos circuitos cerebrais do médico. Encheu esse vácuo com o serviço a populações vulneráveis, mas também com uma compulsão de compras de CD de música clássica e um vício no trabalho, uma forma de mostrar o seu valor. Por isso, os toxicodependentes de Vancouver reconheciam nele outro “fantasma faminto”.
Trauma é a palavra grega para “ferida”. Escreve em 'O Mito do Normal': “As feridas psíquicas que sofremos são-nos frequentemente infligidas antes de o nosso cérebro ser capaz de formular qualquer tipo de narrativa verbal, como no meu próprio caso. Em segundo lugar, mesmo depois de nos tornarmos dotados de linguagem, algumas feridas são impressas em regiões do nosso sistema nervoso que não têm nada que ver com linguagem ou conceitos; isto inclui áreas do cérebro, claro, mas também o resto do corpo.”
“Por dentro, posso ser tão miserável, deprimido e com problemas como toda a gente, sabe?”, diz nesta entrevista ao Ípsilon por videochamada. “Mas tenho esta vocação. E tenho sorte: tenho 81 anos e posso viajar por todo o mundo a dizer a minha verdade. E as pessoas ouvem-me. É assim que eu me vejo.”

No 'Reino dos Fantasmas Famintos' foi publicado originalmente em 2008 e chega agora a Portugal. O que o levou a escrever este livro e como o vê hoje, 17 anos depois?
Pensei que seria interessante escrever sobre a experiência de trabalhar em Vancouver, numa zona de grande consumo de droga. Ao pesquisar, espantei-me: não havia um único livro que reunisse histórias de vida das pessoas, a ciência do trauma, a ciência do desenvolvimento do cérebro e da psicologia, e que olhasse para a sociedade. Toda a ciência e a experiência acumulada desde então só validam o que escrevi.
Muitas pessoas disseram-me que este livro lhes salvou a vida. Houve até pais cujos filhos morreram de overdose que vieram ter comigo para me agradecer. E isso também me surpreendeu porque digo no livro que os traumas de infância estão na base da toxicodependência. Esses pais agradecem-me porque compreendem que não os estou a culpar: [o trauma] é multigeracional.
Há vários cépticos da valorização que faz dos traumas infantis para comportamentos como as dependências. Dizem que exagera, que pode haver outras causas.
Em 'O Mito do Normal', voltei a olhar para a literatura [científica] mais recente e aconteceu a mesma coisa: mais provas, mais provas, mais provas. Os cépticos não têm em conta a forma como o cérebro é verdadeiramente programado ou influenciado no seu desenvolvimento pelas experiências emocionais das pessoas — até no útero. Não invento estas coisas. Para mim, nem sequer é controverso.

É muito interessante a forma subtil como passa das histórias de toxicodependentes de Vancouver para a sua própria história de viciado — em trabalho e em compras de CD de música clássica. Escreve que chegou a gastar dois mil dólares em apenas um mês e meio.
Outras pessoas pensam: como é que se pode comparar aos toxicodependentes? Eu respondo que as diferenças entre mim e eles são óbvias, mas as semelhanças é que são interessantes: o impulso, a impotência perante o impulso, a mentira, a batota, a desonestidade, o ignorar de outros aspectos da vida. E os circuitos cerebrais são os mesmos.
Quando contei aos meus pacientes toxicodependentes os meus hábitos, eles não disseram “Como é que te podes comparar?”, mas antes “És igual a todos nós, não és?”.
Onde quer que eu fale, digo às pessoas que as dependências podem ser de drogas, mas também de sexo, jogo, alimentação, compras, trabalho, pornografia, bulimia ou automutilação. Quando perante 8000 pessoas, como aconteceu em Sydney, em Fevereiro, peço que quem tem uma dependência que levante a mão, 7999 levantam. É muito importante que as pessoas percebam que os toxicodependentes não são assim tão diferentes. Apenas sofreram mais, só isso.

As dependências são respostas aos vazios que carregamos?
Quando perguntamos às pessoas não o que está errado com a dependência, mas o que está certo, o que é que ela faz por elas a curto prazo, dizem: “entorpece a minha dor”, “diminui o meu stress”, “faz-me sentir mais vivo”, “dá-me prazer”, “relaxa-me”. São coisas boas. A dependência não é o problema principal, o problema principal é o sofrimento e a dor emocionais, a falta de tranquilidade e paz, o isolamento, a perda de vitalidade. É esse o vazio de que estou a falar. Ele vem primeiro e as dependências vêm depois. E isso remonta sempre à infância.

Nesta edição de 'No Reino dos Fantasmas Famintos', dá Portugal, onde a posse de drogas para uso pessoal foi despenalizada, como raro bom exemplo nesta matéria. A tendência vai em que sentido?
O que vejo a nível internacional são países a caminhar na direcção oposta. São duros perante o crime e as drogas — como na Hungria, o meu país natal, onde acabaram de aprovar uma série de leis duras [contra a droga], sem estratégia de redução de danos. Nos Estados Unidos e no Canadá, há uma pressão no mesmo sentido.

Do trabalho aos smartphones, porque é que parece haver tantas dependências no Ocidente?
Para sermos justos, temos de dizer que as dependências já existem há muito tempo, muito antes do surgimento da sociedade ocidental. Mas pioraram. É uma questão de necessidades das pessoas. Quando as necessidades de amor, aceitação e pertença são satisfeitas, as pessoas não precisam de se viciar. Nos Estados Unidos, morrem de overdose o dobro das pessoas que morreram nas guerras do Vietname, do Afeganistão e do Iraque juntas, todos os anos. O dobro! O que aconteceu? Nos centros industriais dos Estados Unidos, os empregos foram deslocados para o estrangeiro. Sem empregos, as pessoas perderam um sentido, especialmente os homens da classe trabalhadora, e o seu sentimento de pertença e de propósito. Esta sociedade diz-nos que o nosso significado, o nosso propósito e o nosso valor dependem da nossa contribuição económica ou das nossas posses.
Se olharmos para as culturas indígenas, percebemos que a forma como evoluímos ao longo de centenas de milhares de anos prevê um sentimento de pertença, de comunidade, de carinho, de ligação. Já a sociedade ocidental diz que os seres humanos são individualistas, egoístas, agressivos e interessados em bens materiais. Numa cultura assim, as necessidades das pessoas não são satisfeitas e há um vazio profundo e real, que vem do sentimento de falta de pertença, da perda de ligação.
Isso remonta à infância. As crianças deviam estar com os pais durante anos e anos e anos. [Em sociedades antigas] ficavam com os pais até à adolescência — não apenas com os pais, mas também com a tribo ou o clã. Hoje em dia, os pais têm de abandonar os filhos para ir trabalhar, deixando-os com estranhos. Há uma sensação geral de isolamento, solidão e desconexão, e as crianças não têm o ambiente propício para um desenvolvimento saudável.
E não é só isso. Há indústrias inteiras que se baseiam em dizer-nos que não somos suficientemente bons ou felizes a menos que compremos alguma coisa. Continuam a fomentar este vazio em nós para poderem vender os seus produtos.
Sou pai. Ouvi com frequência que devemos deixar os bebés dormir sozinhos, mesmo que chorem, porque isso dá-lhes “independência”, “maturidade”.
Diga a uma mãe macaca para ignorar o seu bebé. Nesta sociedade, os peritos dizem-lhe para ignorar os seus instintos. Qual é o seu instinto quando o seu bebé está a chorar?

Confortá-lo, abraçá-lo.
Exactamente. Não espanta que as pessoas tenham problemas.

Pais e filhos, corpo e mente e “a destruição das relações tradicionais, da família alargada, do clã, da tribo e da aldeia” (No 'Reino dos Fantasmas Famintos') devido às mudanças económicas e sociais. O seu pensamento denuncia um mundo que promove, de várias formas, a separação. Um neurocientista português, António Damásio, que o Gabor costuma citar, falou no “erro de Descartes”, a separação do corpo e da mente. Ainda estamos nesse mundo cartesiano?
Estamos. Todos os meus livros são sobre isso. Há toda uma ciência que mostra a unidade corpo-mente, ela é evidente, mas nas faculdades de Medicina ensinam-nos que o corpo e a mente são coisas separadas. O médico médio não recebe uma única palestra sobre trauma, apesar de o trauma ser uma influência tão grande na vida e no desenvolvimento das pessoas. Há um fosso entre a ciência e a prática. A prática ainda está presa a essa divisão cartesiana.
E há razões para isso. Se reconhecêssemos, como sociedade, que as emoções das pessoas e a sua fisiologia são inseparáveis, trataríamos as pessoas da mesma forma? Iríamos controlá-las, oprimi-las e manipulá-las? O capitalismo olha para o corpo como uma unidade de produção ou como uma unidade de consumo: está interessado em nós enquanto estivermos a produzir ou a consumir.

Em "O Mito do Normal" dá vários exemplos de atitudes e realidades consideradas normais nas sociedades ocidentais, mas que, segundo diz, criam doenças e disfunções. Pode dar exemplos?
Há certos limites fisiológicos que são normais. Se a sua tensão arterial estiver num intervalo normal, está saudável. “Normal” significa saudável e natural, mas tem outro significado, que é o que quer que seja que costumamos fazer. Numa determinada altura, era normal bater nas crianças — e em muitos países ainda é assim, lá é normal porque muita gente o faz. Mas será que é saudável e natural? Não. É traumatizante para a criança, em todos os casos. É normal nas sociedades ocidentais deixar os bebés chorar e não pegar neles. É normal porque toda a gente o faz. É saudável e natural? Pelo contrário. É normal nas sociedades ocidentais que se diga às pessoas que os seres humanos são egoístas e agressivos. Isso é saudável e natural? Não, não é. É normal ter de fazer um trabalho de que não se gosta? É alienante. É normal no sentido em que se espera que as pessoas o façam. É saudável e natural? Não, é mau para a saúde.

A série televisiva 'Adolescência' levou para o mainstream fenómenos como a cultura incel (“celibatários involuntários” que não conseguem ter relações amorosas com mulheres e que, muitas vezes, as culpam por isso ou as odeiam). Ficou surpreendido com o conteúdo de Adolescência?
É uma série muito poderosa, incrivelmente bem feita. Esses miúdos estão totalmente perdidos no seu próprio mundo e estão desligados dos adultos. E os resultados são desastrosos. Foi por isso que escrevemos este livro [mostra Hold On To Your Kids, co-escrito com o psicólogo Gordon Neufeld], há 20 anos. Faz parte da “normalidade” do mundo moderno o facto de as crianças estarem desligadas dos adultos. Para o desenvolvimento infantil, é um desastre.

Vivemos numa era de “homens fortes” e que desvalorizam ou desprezam a empatia: Donald Trump, Viktor Orbán, Elon Musk… A sua teoria da dependência aplica-se a eles?
Um académico [Robert Hare] que estudou personalidades psicopáticas disse [em 2002]: “Nem todos os psicopatas estão na prisão, alguns estão na sala de reuniões.” Olhemos para algo como o clima. Desde 1970 que tem havido todo o tipo de provas científicas sobre o que estamos a fazer ao clima e as suas consequências. As companhias petrolíferas sabiam-no. Ignoraram a ciência, contrataram cientistas falsos para a negar e políticos para lhes permitirem continuar a destruir a Terra. Bem, isso é sociopatia. [A crise climática] já matou dezenas de milhares de pessoas.
Trump foi uma criança muito traumatizada. Uma vez, ele disse que o mundo é um lugar horrível, onde todos estão contra nós, salve-se quem puder; os teus amigos querem a tua casa, a tua riqueza, a tua mulher. Bem, se é nisso em que acreditamos, quem é que temos de ser? Temos de ser grandiosos, agressivos, manipuladores e egoístas só para nos protegermos. Esta foi a defesa [de Trump].
Nesta sociedade louca, essas pessoas são recompensadas com sucesso. E as pessoas pensam que são fortes e que, por isso, são bons líderes. Mas não são fortes, são apenas agressivos.

Vê vias de fuga para este quadro global?
A história do mundo, incluindo a de Portugal, passa por ciclos. Portugal teve a sua história de repressão e ditadura.
Os judeus, o meu povo, sofreram terrivelmente em vários momentos da História, sobretudo na Europa dos anos 30 e 40. O que é que eles estão a fazer agora? A assassinar os palestinianos! Assassinam-nos! Crianças! É a pior coisa que já vi em toda a minha vida.
A história funciona por ciclos. Penso que estamos a passar por um desses ciclos. O sistema está em dissolução, está em apuros, é cada vez menos capaz de satisfazer as necessidades das pessoas, e, por isso, elas estão desesperadas por algum tipo de solução, por alguém forte. Projectam as suas necessidades nesses líderes, que são viciados em poder.
Estamos longe dos “fantasmas famintos”, mas é a mesma coisa. O sistema está sempre com fome. Nunca tem o suficiente. Tem de continuar a crescer, a crescer e a crescer. E não importa qual seja o custo. Se precisarmos destruir a Terra, destruiremos a Terra.

Porque é que conta tantas vezes, nos seus livros e nas suas palestras e entrevistas, a história de como foi temporariamente entregue pela sua mãe a alguém que para si, então um bebé de 12 meses, era uma perfeita desconhecida? Isto no contexto da Hungria sob o jugo nazi.
Conto essa história porque é muito comum algum tipo de abandono, talvez não tão dramático como o que me aconteceu. Tantas crianças experimentam a perda de ligação, a perda de carinho, a perda de serem vistas, também de serem compreendidas, a perda de serem abraçadas emocionalmente. Conto a minha história porque quero que as pessoas se sintam normais. Quero que compreendam que somos todos iguais e que o que aconteceu há 80 anos ainda pode aparecer na minha vida. Utilizo essa história para ilustrar o poder ou o impacto da experiência precoce.
É visto como o oposto de Jordan Peterson — curiosamente, também canadiano. Ele vê as coisas de forma diferente. Advoga que castigar crianças é benéfico para elas. Sublinha a importância da ordem e da disciplina férrea. O pensamento de Peterson é hoje particularmente sedutor para homens adolescentes ou adultos.
Peterson fala da raiva que as pessoas têm — e as pessoas estão mesmo zangadas. As pessoas estão zangadas quando estão frustradas — e estão frustradas quando as suas necessidades não estão satisfeitas. Há uma escassez de empregos e de amor neste mundo. E Jordan Peterson aparece a dizer “tens todo o direito de estar zangado porque o problema são estas mulheres que não te amam” ou “o problema são estas pessoas trans que estão a tentar destruir a tua masculinidade”. Ele identifica a raiva — e, quando o ouvimos, notamos que ele está cheio de raiva, a sufocar de raiva — e dá aos seus seguidores um alvo para a raiva. Isso valida-os. Ele não é um psicólogo. É um propagandista político e a direita adora-o.

A raiva é poderosa. Dá-nos uma gratificação, mesmo que temporária. Como as dependências de que fala em No 'Reino dos Fantasmas Famintos'?
Absolutamente. Quando estamos zangados, estamos a gerar poder. É um substituto para a falta de poder que temos na nossa vida. Há uma coisa que ele diz que é verdade: as pessoas devem assumir responsabilidade por si próprias. Mas só se pode assumir responsabilidade quando se compreende realmente o que se está a passar. É isso que tento transmitir.

Foi sionista, mas hoje é um sonoro crítico da política seguida por Israel, antes e depois do 7 de Outubro de 2023, o dia do ataque do Hamas. Haverá poucos sítios mais traumatizados no mundo do que a Palestina. Onde já esteve…
Foi em 1992. Chorei todos os dias. Também estive lá em 2023, seis meses antes do 7 de Outubro, na Cisjordânia, para trabalhar com mulheres que tinham sido torturadas em prisões israelitas.

Que imagens, impressões, sentimentos trouxe de lá?
As pessoas no Ocidente não fazem ideia da crueldade, da opressão, da escuridão, da agressão e da brutalidade da ocupação israelita. Estou a falar de antes do 7 de Outubro. Já dura há décadas e piora todos os anos. É inacreditável! É a pior situação em todo o mundo — há muitas situações más no mundo, de Myanmar [Birmânia] ao Sudão, mas esta está a acontecer com o apoio e a cumplicidade do mundo “civilizado” e “democrático”. E as mentiras, a hipocrisia e a incapacidade de dizer a verdade ou de informar sobre o que se está a passar.

Vê uma saída?
Como se chama o vosso grande escritor? José Saramago?

Sim.
Li o seu livro sobre Jesus [O Evangelho segundo Jesus Cristo], um belo livro, no ano passado. Portugal pode produzir um Salazar, mas pode também produzir um Saramago, cheio de humanidade e justiça social. E o ser humano é assim. Portanto, eu acredito. Tenho uma certa confiança na verdade. Eu não fazia ideia do impacto que 'Fantasmas Famintos' ia ter, mas ando por todo o mundo e as pessoas dizem-me que o livro salvou as suas vidas. É ensinado nas universidades. Há algo de muito poderoso em dizer as coisas como elas são, em dizer a verdade tal como a entendemos.
Penso que as pessoas têm capacidade para se curar. Penso que as sociedades têm capacidade para se curar. Envolve muito trabalho, muito desânimo, muito sofrimento, mas acho que, no final, é possível. É isso que me faz continuar. Não é uma fé religiosa. É apenas uma espécie de confiança…

É uma fé não religiosa.
É uma fé não religiosa.

Dá entrevistas e palestras, escreve livros. Parece incansável. Dizer o que pensa sobre desenvolvimento infantil, dependências, saúde, a forma como vivemos é uma missão?
[Pega num conjunto de papéis] Isto é um livro de memórias dactilografado que a minha prima escreveu. Ela era psicóloga. E cuidou de mim quando me separei da minha mãe. Foi a família dela que cuidou de mim durante seis semanas. Eu estava muito doente.
Encontrei as memórias dela recentemente, vou traduzi-las do húngaro para si. Quando isto estava a acontecer, em 1944, ela tinha 11 ou 12 anos. E tomou conta de mim com a sua família. E ela diz: “A tosse do Gabor não passava, estava a ficar mais espasmódica e ele com mais cãibras. (...) Não conseguia respirar. Por isso, o meu pai teve de procurar um médico que estivesse disposto a pôr em risco a sua vida.” Porque os médicos estavam proibidos de tratar judeus na Hungria sob o jugo nazi. Isto passa-se em 1944, Janeiro. E ela encontrou um jovem médico, um pediatra. Como é possível que este médico cristão tenha ido ver um bebé judeu? No final, acariciou o meu corpo e disse-me: “Não te preocupes, meu querido. Mais tarde vais pagar-lhes.”
Não conhecia essa história até há pouco tempo. Mas é isso que tenho estado a fazer toda a minha vida: tenho estado a pagar ao mundo. Porque, apesar de toda a tragédia que está nessa história, apesar de toda a tristeza, veja todo o amor que há nela. Imagine a minha mãe a passar-me a um estranho. Quanto amor foi necessário! Imagine uma mulher cristã desconhecida a acolher este bebé judeu. Imagine os meus familiares. Imagine este médico.
A dependência não é o problema principal, é o sofrimento e a dor, a falta de tranquilidade e paz, o isolamento. É esse o vazio.
Tenho de ser como toda a gente. Acontece que eu sou articulado. E consigo ver coisas e ligações, e isso é bom. Mas, por dentro, posso ser tão miserável, deprimido e com problemas como toda a gente, sabe? Mas tenho esta vocação. E tenho sorte: tenho 81 anos e posso viajar por todo o mundo a dizer a minha verdade. E as pessoas ouvem-me. É assim que eu me vejo.
Suspeito que veja a natureza humana como intrinsecamente positiva. Mais Rousseau do que Hobbes.
Se pegarmos numa semente de qualquer planta e não lhe dermos sol, nutrição ou irrigação suficientes, como é que a planta vai ficar?

Frágil, como morta.
Pode dizer que é a sua natureza ser assim, mas não é. E se a puser num chão fértil com muitos minerais, luz do sol, água? Eu prefiro não falar da natureza humana, mas de potencial humano e sobre que condições são favoráveis a esse potencial. Sabemos que quando as crianças são bem tratadas, amadas, nutridas, vão ficar bem. Deixe-me fazer-lhe uma pergunta: já foi invejoso ou agressivo?

Sim.
E como se sentiu?
Como se estivesse em piloto automático, sem pensar no que estava a fazer.
E depois disso, o que sentiu?
Uma espécie de ressaca. Remorsos.
E já foi generoso e gentil?
Sim.
E como se sentiu?
Bem.

É a sua natureza, de facto. A questão é que condições a podem fazer florescer.
As primeiras palavras de 'O Mito do Normal': “Na sociedade mais obcecada pela saúde de sempre, nem tudo está bem. A saúde e o bem-estar tornaram-se uma fixação moderna.” Descreve o “dilúvio diário” de notícias ou conteúdos virais a promover modos de “auto-aperfeiçoamento”. “Tomamos suplementos, inscrevemo-nos em estúdios de ioga, mudamos de dieta em série, pagamos testes genéticos, estratégias para prevenir o cancro ou a demência, e procuramos aconselhamento médico ou terapias alternativas para doenças do corpo, da psique e da alma. E, no entanto, a nossa saúde colectiva está a deteriorar-se.” A que se deve este aparente paradoxo?
Quanto mais doente for uma sociedade, quanto mais desesperadas estiverem as pessoas, mais elas querem ser saudáveis. 70% dos adultos americanos tomam um medicamento. Comem lixo! A cultura vende-lhes lixo para comer! E o stress aumenta por causa dessa comida. Claro que as pessoas estão desesperadas por serem saudáveis. Mas não estão à procura das causas, estão só a ver os efeitos.
O mesmo sistema que promove produtos prejudiciais vende produtos para contrariar os seus efeitos?
É um sistema brilhante.

Disse há instantes que o “sistema está em dissolução”, “em apuros”. Mas ele parece particularmente resistente.
É extraordinariamente resistente — mas a que custo? À custa do ambiente, pondo em perigo a existência humana. À custa do sofrimento que impõe em todo o mundo, à custa de deixar o povo doente. O sistema só quer sobreviver, como uma fera. A razão pela qual não só os meus livros, mas outros livros sobre trauma e outros temas, são tão lidos hoje em dia é precisamente porque as pessoas estão à procura de respostas."

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