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No modelo que rejeita o crescimento contínuo, menos é mais. Os activistas do decrescimento propõem cortar no consumo e nas horas de trabalho para proteger o ambiente e alcançar maior bem-estar.
Uma vez por mês, no Atlas Hostel, em Leiria, as conversas Eco Descomplicar orientadas por Joana Cordeiro partilham dicas sobre reaproveitamento, reutilização e redução do desperdício que suportam decisões mais conscientes, inteligentes e sustentáveis, das compras de supermercado aos produtos de limpeza e higiene, do vestuário às festas de aniversário.
Ela sabe do que fala: simplificou a vida de todos os dias – “entreguei 10 sacos de roupa e da roupa com que fiquei mesmo assim não uso tudo” – e tornou- se auto-suficiente, ou quase, com uma alimentação vegetariana à base de produtos que cultiva na sua própria horta de agricultura biológica.
As escolhas de Joana Cordeiro, apesar de individuais, encaixam num movimento internacional em expansão, que, como alternativa ao modelo dominante, propõe o decrescimento – isto é, o regresso às origens através do emagrecimento da economia.
Com propostas que passam por cortar nas horas de trabalho, aprovar um rendimento básico incondicional, prolongar as férias, antecipar a idade da reforma, partilhar bens e infraestruturas, abandonar o automóvel, criar moedas locais e limitar a publicidade em espaços públicos.
Os grupos de trabalho, investigação e activismo espalhados pela Europa e resto do mundo, incluindo em Portugal, desde há um ano, na Rede para o Decrescimento, argumentam que o caminho político que tem como prioridade o crescimento contínuo e o aumento do Produto Interno Bruto (PIB) é incompatível com os recursos materiais, que são finitos.
E garantem que a ambição de chegar mais longe, mais alto e mais rápido é a causa de graves problemas ambientais e sociais. Não há planeta B, mas há plano B: decrescer. Ou seja, diminuir a produção e o consumo, com o objectivo de alcançar maior bem-estar e igualdade entre seres humanos, em melhores condições ecológicas.
Desperdício zero
Duas vezes por semana, a carrinha da Horta da Joaninha estaciona na Quinta do Taborda, em Leiria, para entregar os cabazes de hortaliças (e morangos) encomendados pelos clientes. O projecto de agricultura biológica dinamizado por Joana Cordeiro utiliza um terreno com meio hectare que estava abandonado e nasce da vontade de não depender de terceiros, nem de importações, para comer.
“Produzir para mim e vender o excesso, como se fazia antigamente”. A mudança na rotina de uma vegetariana “por razões ambientais” e de “ética”, mas sem fundamentalismos, fruto de “um despertar que foi acontecendo ao longo do tempo”, chega a todos os cantos do quotidiano, que é agora menos consumista e mais amigo do ambiente.
“Quando comecei, a primeira coisa que fiz foi contar os sacos plásticos que tinha em casa. E só daqueles pequenos para a fruta tinha 100”. Não frequenta centros comerciais porque não concorda com o trabalho ao fim- -de-semana, sempre que possível compra comida a granel ou não embalada, leva recipientes para trazer o queijo da mercearia, lava a louça com sabão azul e branco dissolvido e coseu o seu próprio esfregão, com corda de sisal.
Depois de ler dois clássicos do minimalismo – Desperdício Zero, de Bea Johnson, e Arrume a Sua Casa, Arrume a Sua Vida, de Marie Kondo – e perceber que acumulava tabuleiros de servir, varinhas mágicas e máquinas de sumos, entre outros objectos repetidos ou sem uso, pôs finalmente travão ao excesso. “Estão dentro de caixas no sótão, nós não precisámos daquilo e não comprámos novo”. E com vantagens: “Libertar-nos das coisas também liberta a nossa vida”.
Viciados em dívida
A funcionar desde o ano passado, em Portugal, a Rede para o Decrescimento “é um grupo informal” que procura colocar o tema no “espaço público”, explica um dos coordenadores, Álvaro Fonseca, enquanto rejeita “a dependência de um parâmetro, que é o PIB, para medir a performance da economia”.
A crítica está relacionada com “os limites ecológicos” e com “os sintomas” da insustentabilidade, que “já estão à vista”, tal como “o aumento das desigualdades”, considera o antigo professor universitário. “A ideia dos recursos finitos não é uma coisa nova. Durante o século XX criou-se a ilusão de que havia a possibilidade de continuarmos a crescer porque a nossa capacidade de inovação iria superar todos os desafios, só que os modelos económicos dominantes externalizaram todas as consequências”.
Álvaro Fonseca cita textos do Papa Francisco para estabelecer a ligação entre a crise ambiental e o modelo de desenvolvimento. “Não se trata de uma crise ideológica, trata-se de enfrentar uma realidade que está a ser camuflada por interesses políticos e económicos que beneficiam”.
Ao mesmo tempo que reconhece as “claras melhorias” na qualidade de vida das populações, ao longo das últimas décadas, lembra os impactos negativos e o “consenso na comunidade científica internacional relativamente a todas as consequências”.
Por um lado, “o crescimento à custa de combustíveis fósseis” e de “energia barata”, um contexto ultrapassado, que gera poluição e destruição de recursos. Por outro, “a riqueza muito desigualmente distribuída”. Se as necessidades básicas, para a maioria dos habitantes no chamado primeiro mundo, estão satisfeitas, outras necessidades são criadas todos os dias.
“Os bens são produzidos com tempo de vida curto para que sejam substituídos e haja necessidade de comprar coisas novas”, lembra o dirigente da Rede para o Decrescimento, apontando o papel da moda, do marketing e da publicidade na construção de tendências. E entretanto, acrescenta, “as pessoas estão a consumir com dinheiro que nem sequer têm”, numa economia “toda baseada em dívida” e em que parte do dinheiro criado “é fictício porque não está ligado a nada real”.
Álvaro Fonseca acredita que há uma “crise ambiental, social, cultural e psicológica” provocada pelo desejo de crescimento contínuo, que se traduz numa “insatisfação muito grande” e em doenças do primeiro mundo que vão da obesidade à depressão.
Por onde começar?
Para os activistas do decrescimento, o mais importante é garantir bem-estar e sustentabilidade. E também justiça intergeracional. “É uma questão fundamental e estamos a esquecê- la”, diz Álvaro Fonseca. Admite que “se vamos produzir menos", a economia “começa a entrar em colapso, em recessão” e são inevitáveis “impactos como o desemprego”.
Por isso propõe um processo faseado “em que há uma redução das horas de trabalho” e “o trabalho é redistribuído”.Na prática, um corte no nível de vida, aceite por todos, em contraste com medidas de austeridade impostas de cima para baixo.
Os desafios “são muito grandes”, reconhece, porque se trata de “um problema de vício” e “desintoxicação”. Mas necessários. “Todo este processo requer sacrifício, um bocadinho nesse sentido em que um toxicodependente precisa de passar por momentos de dificuldade para atingir algum bem-estar”.
O coordenador da Rede para o Decrescimento condena o “materialismo excessivo” e a aceleração que tira capacidade às pessoas “para pararem e pensarem o que é que as torna verdadeiramente felizes”. E, rejeitando acusações de alarmismo, catastrofismo ou miserabilismo, avisa: “Se continuamos só com o curto prazo a coisa vai correr mal”.
Fazer a própria roupa
Já lá vai o tempo em que a olhavam de lado por andar às compras com sacos de pano, para evitar o plástico, mas há outras opções que mantêm Ângela Quaresma numa espécie de compartimento à parte: faz o seu próprio desodorizante, livre de químicos, grande parte da roupa que usa é em segunda mão e dá prioridade ao comércio local. Tudo escolhas que têm por base a defesa do planeta e da comunidade que habita.
A investigadora do Instituto Politécnico de Leiria acredita que a mudança “realmente significativa”não vai acontecer “se não houver medidas ao nível global”, principalmente por parte “das grandes indústrias”, mas não abdica de contribuir, a uma escala individual. Designadamente, continuando a preferir a mercearia mais próxima. “Normalmente, produtos frescos, nem sempre biológicos, porque nem tudo o que é biológico é bom para o ambiente. Se vem de longe tem todo o transporte associado”.
Se entre tarefas e agendas carregadas faltam momentos para reflectir, Ângela Quaresma não esquece que “a economia têxtil é das que mais polui o planeta”, além de estar assente em salários baixos, o que a leva a evitar shoppings e multinacionais do pronto-a-vestir.
“Já compro roupa em segunda mão há muitos anos. Ou faço eu. Tenho peças desde o ensino secundário que ainda estão boas”. Cada compra “tem de fazer sentido” e o apoio ao comércio local significa “dar dinheiro a pequenos negócios”, logo, “é mais sustentável para as pessoas que nos rodeiam e para a região”.
Uma alternativa urgente
Jorge Leandro Rosa, outro dos coordenadores da Rede para o Decrescimento, explica que a meta da estrutura criada em 2018 é ir somando grupos locais, além dos que actualmente estão activos no Porto e em Lisboa. Diz que “as nossas sociedades estão viciadas no crescimento a todo o custo”, portanto, “como em toda a dependência, quando o crescimento falha, quando não é tão pujante como em épocas anteriores, as sociedade entram em crise não apenas económica mas social e política”.
Para este investigador da Universidade do Porto, o decrescimento é urgente “por razões estruturais”, de que a energia e as matérias-primas são os principais factores. “O decrescimento vai ser uma realidade a muito breve trecho e não sou eu apenas que o digo”, assegura.
“A nossa economia tornou-se abstracta e pensa o crescimento como uma realidade independente do mundo material. A economia virtual, as novas tecnologias, são muitas vezes vistas como factores sem base material, o que é um absurdo, evidentemente”.
Para Jorge Leandro Rosa, a decisão “é entre um decrescimento sofrido, passivamente, reactivamente, que tende sempre a transformar-se em austeridade” e “um decrescimento em que as sociedades têm consciência das situações e escolhem os caminhos”.
Neste sentido, a Rede para o Decrescimento pretende colocar a discussão na agenda mediática porque actualmente o debate “quase parece inconcebível dentro do quadro mental e de referenciação em que a vida política decorre”. Visa também “a criação de apoio mútuo e de esclarecimento entre pessoas que se aperceberam da importâncias destes conceitos e destas práticas”. Finalmente, quer ajudar “projectos que surjam na sociedade portuguesa e que tenham o cunho do decrescimento”, seja nas cidades ou no campo.
Os pensadores do decrescimento defendem formas de governação que o ensaísta e académico diz serem “mais participativas, mais descentralizadas”, em que o poder local, por exemplo, tende a ser “o nível superior de representatividade”, uma vez que “falar de uma sociedade em decrescimento é falar de uma sociedade descentralizada porque as energias e os recursos estão mais orientados para o local”.
Além da autosuficiência alimentar, Jorge Leandro Rosa idealiza comunidades com moedas locais, já experimentadas “em vários pontos da Europa”, como meio para “reforçar a vida do bairro” e defender o comércio de proximidade.
Ainda nas cidades, “o automóvel tornou-se uma praga”, conclui o dirigente da Rede para o Decrescimento, que alerta para a necessidade de explorar a tecnologia com mais inteligência, numa perspectiva de partilha, por oposição à propriedade. “A mim parece-me que a solução não está na publicidade constante da indústria, que nos diz que faz carros menos poluentes, a solução é repensar a nossa mobilidade”.
Inspirado pela Natureza
Para Jaime Páramo, um galego a viver no concelho de Alcobaça, especialista em agricultura regenerativa, o decrescimento, a que chama desconstrução, “passa por desmontar uma imposição social e um marketing extremamente agressivo”, que se aproveita “de vazios que existem dentro do ser humano" para montar “uma máquina doentia de consumo”.
Com consequências: egoísmo, competição, individualismo, conflito. Diz que vive em sentido contrário e serve-se da agricultura como exemplo: “Somos um ser vivo parte da Natureza, temos de ter em conta os outros intervenientes, tudo se resume a essa relação”. E se nada se perde, antes se transforma, também tudo o que vem da Natureza a ela tem de regressar, o que o leva a defender as teses da economia circular e da reciclagem.
Enquanto consumidor, as escolhas de Jaime Páramo pesam sempre que cada acção produz um resultado. “Consumir o essencial para a nossa satisfação pessoal, que parte de ter a barriga cheia, uma alimentação saudável, boa para mim e para o meio ambiente”.
E, tão importante como aquilo que comemos, a origem. “Como é que esse alimento veio parar ao meu prato”. É local? É da época? É embalado? Depois, seja um telemóvel, um carro ou uma ferramenta, procurar “bens de qualidade” e “duráveis”, para poupar recursos e energia. Mais uma vez, a inspiração está à nossa volta.
Jaime Páramo afirma que, numa floresta, “o saldo energético é positivo”, faltando “a compreensão e o entendimento por parte do consumidor e da sociedade em conjunto que o nosso saldo tem”, também, “de ser positivo”.
Em Portugal, nota “um grande egoísmo social quanto aos transportes públicos” e lamenta a escassez de serviços que permitam aluguer de bens, em vez de os adquirir. “Falta uma consciência de colectividade, de conjunto, de compreensão que todos estamos no mesmo planeta, podemos viver bem e em abundância”.
A partilha é um dos pilares do decrescimento e o agricultor nascido na Galiza dá como exemplo a casa que habita, que é de um amigo, a quem paga uma renda justa e amistosa numa ocupação com benefícios para ambos. “O que em biologia chamamos simbiose”.
Mais participação
No Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade (Cense) da Universidade Nova de Lisboa, a investigadora Inês Cosme tem dedicado tempo a estudar ideias e experiências alinhadas com o decrescimento, o que lhe permitiu identificar 385 iniciativas em bases de dados nacionais e internacionais.
Quis “perceber se em Portugal pequenas iniciativas de sustentabilidade já estariam ou não a contribuir para a transição para o decrescimento” e concluiu que, mesmo quando não usam o conceito como chapéu, em muitos casos partilham o mesmo espírito. Que “tem a ver com redução do consumo, criar estruturas mais democráticas, mais horizontais, voltar ao espírito de comunidade, tornar os territórios mais resilientes e não tão dependentes do sistema”, explica.
“No fundo são tudo iniciativas criadas para tentar experimentar um tipo de actividade económica que respeite as pessoas e o planeta, não só virada para o lucro”. Por exemplo, cooperativas, eco-aldeias, lojas de produtos biológicos, cafés onde voluntários ensinam os clientes a reparar pequenos electrodomésticos. Neste cenário, a partilha é crucial. “Não é tão importante ter, é importante ter acesso aos recursos. A ideia de não termos todos um berbequim em casa e só alugarmos quando é preciso”.
Os estudos de Inês Cosme mostram que a maioria dos envolvidos procura autonomia e auto-suficiência. Demonstram “motivações ecológicas e também outro tipo de motivações, como querer estar mais de acordo com os seus valores”, além da “resistência ao modelo económico actual, por ser pouco inclusivo”.
A investigadora afirma que “as iniciativas” já identificadas revelam “que é possível mudar muitas coisas”, precisamente porque “não precisamos de ter tantas coisas como temos” e porque “a partir de um certo nível de conforto económico, a felicidade das pessoas não aumenta”.
Mas, dado a complexidade do sistema social, político e económico, impõe-se uma abordagem mais extensa. “Nenhuma medida pode ser posta em prática sozinha, tem de se pensar estruturalmente num pacote de medidas”, realça a especialista da Universidade Nova de Lisboa.
Ou seja, “a redução das horas de trabalho”, uma das bandeiras do decrescimento, “é uma medida importante mas teria de ser acompanhada de outras medidas que incentivassem as pessoas a participar mais na vida comum em sociedade, em vez de transformarem esse tempo livre em consumo”.
Inês Cosme defende medidas para “regular melhor a publicidade”e “encorajar modelos de negócio mais horizontais”, como as cooperativas, porque ajudam “na redistribuição da riqueza”. Objectivos? Voltarmos a sentir que somos autónomos, que temos responsabilidade face ao que acontece nas nossas cidades e regiões de residência, não sermos definidos só pelo trabalho, abraçar outras dimensões de vida.
A investigadora divide as propostas para o decrescimento em três grupos: redução dos impactes ambientais das actividades humanas, redistribuição do rendimento e riqueza dentro e entre países, transição de uma sociedade materialista para uma sociedade convivial e participativa.
E identifica três meios de transformação para o decrescimento: activismo oposicional (directamente feito pela sociedade, por exemplo, com protestos e boicotes), criação de alternativas (ou seja, as iniciativas de sustentabilidade que experimentam formas diferentes de nos relacionarmos com o sistema económico e com a sociedade); e o reformismo (reformas graduais das instituições existentes para divergirem para uma lógica de decrescimento).
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