Acordo deve incluir a criação de um fundo para remunerar os serviços dos ecossistemas da Amazónia, o reconhecimento do clima estável como Património Comum da Humanidade e uma nova estratégia para cumprir os objetivos de Paris
Mais de 40 personalidades do Brasil e de Portugal subscrevem um manifesto que defende uma parceria estratégica entre a União Europeia, o Brasil e o Mercosul (Mercado Comum do Sul) para a defesa do clima estável como Património Comum da Humanidade. Entre os subscritores figuram conhecidos políticos, académicos, ativistas ambientais, dirigentes indígenas, escritores e artistas.
Esta parceria deverá basear-se em quatro prioridades: a defesa do ambiente e da biodiversidade como orientação estratégica das relações entre a UE, o Brasil e o Mercosul; a definição de uma nova estratégia para cumprir os objetivos do Acordo de Paris; a criação de um fundo para remunerar os serviços dos ecossistemas e contribuir para a preservação, recuperação e ampliação da floresta, nomeadamente na Amazónia; e o reconhecimento do clima estável como Património Comum da Humanidade. Os estados-membros do Mercado Comum do Sul são o Brasil, o Uruguai, o Paraguai e a Venezuela (suspensa desde 2016). E tem ainda como países associados o Chile, a Bolívia, o Equador, o Peru e a Colômbia.
Os subscritores incluem vários ex-ministros brasileiros, como Izabella Teixeira (Ambiente, hoje copresidente do Painel Internacional de Recursos do Programa da ONU para o Ambiente), Celso Lafer (Relações Exteriores, neste momento professor emérito da Universidade de São Paulo), Renato Janine Ribeiro (Educação) e Rubens Ricupero (Fazenda e Meio Ambiente). E ex-ministros portugueses, como Guilherme de Oliveira Martins (Educação, atual administrador executivo da Fundação Gulbenkian), Luís Braga de Cruz (Economia, agora presidente da Associação das Florestas de Portugal) e Maria João Rodrigues (Trabalho, hoje presidente da Fundação Europeia para os Estudos Progressistas).
De Portugal subscrevem também o manifesto o embaixador Francisco Seixas da Costa, Carlos Pimenta, ex-secretário de Estado do Ambiente e antigo eurodeputado, José Luís da Cruz Vilaça, ex-juiz do Tribunal de Justiça da UE, Alexandre Quintanilha, deputado e professor catedrático da Universidade do Porto (UP), Álvaro de Vasconcelos, fundador do Fórum Demos e ex-diretor do Instituto de Estudos de Segurança da UE. E académicos como Filipe Duarte Santos, professor catedrático da Universidade de Lisboa (UL) e presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, Luísa Schmidt, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da UL e colunista do Expresso, Paulo Magalhães, investigador do Centro de Investigação Jurídico-Económica da UP e presidente da Casa Comum da Humanidade, Francisco Ferreira, professor da Universidade Nova de Lisboa e presidente da ZERO, Fátima Vieira, professora e vice-reitora da UP, Teresa Andersen, professora da mesma universidade e membro da Comissão Permanente do Património Mundial da UNESCO, Viriato Soromenho-Marques, professor catedrático de Filosofia da UL, Helena Freitas, professora da Universidade de Coimbra e ex-deputada, e diversos académicos do Brasil, com destaque para Carlos Nobre, investigador sénior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, um dos cientistas brasileiros mais conhecidos do mundo devido à sua investigação pioneira das alterações climáticas (ver entrevista).
Regresso à Política Internacional
“A vitória de Lula da Silva e o regresso do Brasil ao seu lugar indispensável na política internacional criam condições favoráveis para, a partir da questão ambiental/climática, construir uma resposta capaz, com efeitos de cascata nas mais variadas áreas, assente num multilateralismo eficaz”, salienta o manifesto, intitulado “Clima Estável Património Comum da Humanidade”.
Esta convicção decorre do discurso do novo Presidente do Brasil, onde sublinhou “o seu compromisso com a agenda ecológica – ‘o Brasil e o planeta precisam de uma Amazónia viva’ – ao mesmo tempo que afirmava a sua vontade de retomar as relações com a União Europeia em novas bases”.
Estas afirmações, continua o manifesto, “convergem com a visão da UE, que tem afirmado que a Ecologia é uma questão estratégica, e que as mudanças climáticas são uma ameaça existencial”. Recorde-se que a política de desmatamento da Amazónia desenvolvida durante os últimos anos foi o argumento utilizado pelos governos europeus para travarem a ratificação do acordo UE-Mercosul, concluído em junho de 2019.
O manifesto propõe que, a partir da tomada de posse de Lula da Silva como Presidente, a 1 de janeiro de 2023, “se deveriam retomar as conversações entre a UE e o Brasil, com vista à formação de uma parceria estratégica por um ambiente sustentável, que deveria relançar também a renegociação do acordo UE-Mercosul, a partir das preocupações manifestadas dos dois lados do Atlântico”. Estas negociações são ainda mais importantes devido à ausência de resultados satisfatórios na COP27, a cimeira da ONU sobre alterações climáticas que se realizou recentemente no Egito, “que demonstraram até que ponto o ‘business as usual’ já não é a resposta adequada para enfrentar as ameaças ambientais e à biodiversidade, que põem em risco os sistemas de suporte à vida na Terra”.
Em todo o caso, o acordo alcançado na COP27 em matéria de perdas e danos, reivindicado pelos países em desenvolvimento há mais de 30 anos, “acabou por ser relevante para construção da justiça climática que pode ser um ponto de partida para um novo enquadramento das relações da UE com os países do Hemisfério Sul”, reconhece o manifesto. Assim, a ideia de uma parceria estratégica entre a UE e o Brasil, “tendo o espaço mais vasto do Mercosul como horizonte”, abre oportunidades “para um multilateralismo renovado que privilegie as relações inter-regionais”. O documento sublinha que “é absolutamente essencial” que esta renovação das relações multilaterais “seja eficaz e inclusiva e tenha em consideração o carácter policêntrico do sistema internacional”.
Acordo de 2019 não garante metas ambientais
O acordo UE-Mercosul de 2019 não oferece garantias suficientes de cumprimento das metas ambientais, assinala o manifesto. Por isso, a UE e o Brasil “deviam fazer do objetivo de cumprir os Acordos de Paris uma condicionalidade dos seus acordos bilaterais e das suas relações inter-regionais”. Essa nova orientação estratégica seria objeto de um anexo ao acordo, “fazendo-o evoluir de uma parceria essencialmente comercial para uma parceria que coloca o objetivo do clima estável no centro das relações inter-regionais”. O acordo UE-Mercosul seria assim ratificado juntamente com o anexo, que tornaria legalmente vinculativa a sua componente ambiental. Deste modo, as objeções europeias levantadas à ratificação do acordo “deixariam de fazer sentido político”.
Para que o Acordo de Paris seja cumprido “é preciso reconhecer os limites de uma estratégia que apenas pretende evitar/mitigar/neutralizar emissões, mantendo o mesmo modelo económico em que só através da destruição e extração de recursos se reconhece a criação de riqueza na sociedade, e que hoje cria mais problemas do que aqueles que consegue resolver”, enfatiza o documento. Por isso, “é urgente criar um sistema que compense os que contribuem para a remoção de CO2, assente numa economia capaz de cuidar/restaurar/regenerar/manter ativamente um clima estável”. E é necessário também criar um enquadramento legal, assente num sistema de contabilidade ambiental, “que permita avançar rapidamente para o objetivo de limpar a atmosfera, incentivando e compensando a realização de emissões negativas”.
Fundo UE-Mercosul para restaurar a floresta
Recuperar e manter um clima estável implica a manutenção dos ecossistemas ainda preservados e um investimento em larga escala no restauro e regeneração das áreas já degradadas, argumenta o manifesto. O objetivo é iniciar o processo de limpeza da atmosfera (emissões negativas) e de provisão de outros serviços dos ecossistemas da maior relevância para a manutenção de um clima estável, como é o caso das florestas tropicais, nomeadamente da Amazónia. Daí que seja proposta a criação de um fundo UE/Brasil/Mercosul, que teria como objetivo remunerar os serviços dos ecossistemas e contribuir para a preservação, recuperação e ampliação da floresta.
Por fim, um objetivo prioritário “deve ser o reconhecimento do clima estável como Património Comum da Humanidade, através de um tratado internacional envolvendo todos os membros da ONU e as organizações relevantes de cooperação regional e inter-regional”. Esse processo seria iniciado com a definição do clima estável a partir dos chamados Limites do Planeta, uma combinação de nove variáveis, incluindo o CO2, que descreve o bom funcionamento do Sistema Terrestre, aquilo a que os cientistas chamam “Espaço de Operação Segura para a Humanidade”. Com base neste instrumento “seria possível internalizar, não só os custos, mas também os benefícios, permitindo construir uma economia de restauro e manutenção do bem comum”, conclui o manifesto.
As negociações climáticas promovidas pela ONU deixariam, assim, de ser um jogo de soma negativa entre países poluidores, em que cada um tenta fazer menos emissões mantendo o mesmo conceito de criação de riqueza, para passar a ser uma cooperação positiva, garantindo as compensações devidas a todos aqueles que contribuem para o clima estável e garantem o bom funcionamento do Sistema Terrestre.
Brasil é uma superpotência no ambiente
Um dos promotores do “Manifesto Clima Estável Património Comum da Humanidade”, Álvaro de Vasconcelos, fundador do Fórum Demos e ex-diretor do Instituto de Estudos de Segurança da UE, afirma ao Expresso que o próximo governo de Lula da Silva, do ponto de vista da política internacional, vai ter duas grandes prioridades. A primeira é “afirmar-se a nível mundial, porque o novo Presidente do Brasil tem um enorme prestígio internacional e sempre procurou ter um papel global”. E o papel global que o Brasil pode hoje ter “é no domínio do ambiente, onde é uma espécie de superpotência”. Com efeito, “não foi por acaso que Lula da Silva foi à COP27 no Egito, porque é no domínio do ambiente que o Brasil terá impacto”. Aliás, no discurso de vitória das eleições presidenciais, “Lula começou logo por dizer que o Brasil ia parar com o desmatamento da Amazónia e fazer do ambiente uma grande prioridade”.
As relações comerciais externas são a segunda prioridade, “porque o Brasil é um país exportador, nomeadamente de cereais e de tudo o que está ligado agronegócio, e muda as safras de um ano para o outro, não tem só uma capacidade produtiva, mas também uma capacidade tecnológica enorme de acordo com a evolução do mercado”, destaca o fundador do Fórum Demos. O manifesto “pretende dizer ao governo de Lula da Silva que o Brasil tem uma oportunidade fortíssima para dar um salto nas relações com o seu principal parceiro comercial, a UE, nomeadamente no domínio das exportações de cereais, se der prioridade às questões ambientais”, isto é, se fizer um acordo ambiental com a União Europeia.
“Se o manifesto tiver eco no Brasil, e o governo Lula da Silva assumir que a dimensão ecológica das relações com a União Europeia é a chave para desbloquear o Acordo UE/Mercosul, o nosso objetivo será, numa segunda fase, influenciar também os decisores europeus, de modo a compreenderem que o Brasil é um parceiro importantíssimo para aquilo que a UE pode ter como política externa”. A União Europeia “precisa de parceiros para uma ordem multilateral em que o modelo europeu de integração tenha importância, a que chamamos de novo multilateralismo; por isso, o Mercosul é um parceiro importante”.
Quanto à questão do clima estável como Património Comum da Humanidade, a ideia de que o Brasil deve ser recompensado por um património comum que é a Amazónia “não é para que os outros países tenham direito de decidir o que deve ser a política ambiental brasileira, mas para que o Brasil receba recompensas pelo contributo significativo que dá ao ambiente global”, esclarece Álvaro de Vasconcelos. Se assim for, o Brasil vai ter um duplo papel: fazer do clima estável uma prioridade, mas ao mesmo tempo querer compensações financeiras significativas dos países ricos para o Sul Global, para que este assuma uma agenda de clima estável. “Daí a nossa proposta de criação de um fundo UE-Mercosul para a floresta, para que os europeus compreendam que esta opção vai ter um custo financeiro”. Obviamente que a questão do Património Comum da Humanidade não pode ser apenas resolvida pelo Brasil, UE ou Mercosul, mas antes a nível global, das Nações Unidas. “Claro que se houver um acordo entre o Brasil e a UE, temos dois dos principais atores mundiais no ambiente a pressionarem nesse sentido, apesar de terem situações geoestratégicas diferentes”.
Viriato Soromenho-Marques, outro signatário do manifesto, considera que “um aspeto fundamental na mudança do direito internacional público sobre o clima e, na verdade, sobre o Sistema-Terra como um todo, prende-se com a necessidade de as nossas ações se integrarem nas leis e limites do planeta que habitamos”. O professor catedrático de Filosofia da Universidade de Lisboa acrescenta que “compreender o clima estável como Património Comum da Humanidade”, tal como defende o manifesto, “significa tomar o único caminho para estar à altura do desafio de sobreviver em conjunto num padrão obrigatoriamente solidário de habitar a Terra”. Com efeito, “seguir pela estrada vigente, eticamente cobarde e intelectualmente medíocre, do clima como mera ‘Preocupação Comum’, implicará a certeza de que o caos ambiental e autodestruição bélica serão o abismo para onde convergirá, por exclusiva culpa própria, a história humana”.
Dar valor ao trabalho da Natureza
“Quando falamos no manifesto de pagamento dos serviços dos ecossistemas, de dar valor ao trabalho da Natureza, estamos a falar do Património Comum”, explica Paulo Magalhães, também signatário do documento, investigador do Centro de Investigação Jurídico-Económica da Universidade do Porto e presidente da Casa Comum da Humanidade (CCH). “A principal diferença entre o atual enquadramento jurídico das alterações climáticas do Acordo de Paris e das COP, as cimeiras anuais sobre alterações climáticas promovidas pela ONU, que as considera uma mera ‘Preocupação Comum’, e o enquadramento jurídico do Património Comum, isto é, de reconhecer o clima como um bem comum, faz toda a diferença, porque no cenário de reconhecermos o clima como um bem comum ele existe do ponto de vista jurídico, ou seja, vale a pena cuidar deste bem, porque os benefícios que se fazem a esse bem comum passam a existir do ponto de vista jurídico e, portanto, económico”. Quando se fala de serviços de ecossistemas que, por exemplo, a Amazónia presta a todo o planeta, “precisamos de um enquadramento jurídico para isso ser possível”, adianta o presidente da CCH. “Sem ele não há atividade humana. Assim, para cumprirmos os objetivos de dar uma vertente ecológica central ao acordo comercial entre o Mercosul e a UE, é preciso um enquadramento jurídico global, porque os benefícios produzidos no Brasil e em todos os países da Amazónia não ficam lá, espalham-se por todo o planeta”.
A discussão promovida pelo manifesto “vai começar pelo Brasil e por Portugal, onde queremos envolver todas as gerações, incluindo os jovens ativistas ambientais, mas depois pretendemos estendê-la aos outros países do Mercosul e aos países da UE, de modo a transformá-la numa discussão à escala mais global”. A adenda que o documento propõe ao Acordo UE-Mercosul tem como objetivo “transformar o Brasil num exportador de serviços ambientais, que podem valer mais para a sua economia do que a exportação de matérias-primas que hoje é feita, que tem custos ambientais e pesa na sua pegada ecológica”.
O que os signatários do manifesto querem nesta adenda é também “uma transformação do objeto do próprio Acordo UE-Mercosul, que pode permitir ao Brasil tornar-se num dos principais exportadores ou mesmo o principal exportador de serviços ambientais do mundo”. No fundo, o Brasil tem de fazer valer isso no cenário internacional. “Nós concordamos, sobretudo as novas gerações, que tem mais valor a Amazónia viva a prestar serviços do que o Brasil a exportar produtos eletrónicos ou matérias-primas. Numa economia verde, a exportação de serviços ambientais para o bem comum tem de ser compensada, porque beneficia toda a comunidade global”. Isso implica todo um enquadramento jurídico que capture esses benefícios ambientais que o Brasil exporta para todo o mundo, e um sistema de contabilidade que torne esses benefícios visíveis na economia.
Voltar ao mundo político
Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação do Brasil e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, igualmente signatário do manifesto, afirma que “o Brasil voltou ao mundo político, passámos quatro anos com um governo que não era apenas contra a democracia, mas também contra a política”. Este governo “adotou um objetivo importante, o combate à corrupção, mas fez dele um meio para retirar um governo progressista”. A recusa da política “é muito popular em qualquer país do mundo, fazer campanha contra os políticos atrai votos, porque são mal vistos, mas os políticos são um problema que só pode ser resolvido dentro da política”.
Numa altura “em que colocamos a importância da discussão do meio ambiente a nível global, porque está em causa a própria sobrevivência da espécie humana e da vida na Terra, estamos a apostar no diálogo internacional, que foi desqualificado pelo governo de Bolsonaro. Quando fazemos o manifesto, colocando a inclusão social e o meio ambiente na discussão, é porque acreditamos que vale a pena este diálogo e que o manifesto pode ser escutado pelas autoridades do Brasil e da Europa”.
Renato Janine Ribeiro considera “fundamental que os serviços dos ecossistemas do Brasil sejam pagos, porque beneficiam toda a Humanidade, e também é fundamental que as populações locais que são responsáveis por esses serviços, que cuidam da floresta, ganhem com isso, porque hoje vivem na miséria”. A proposta do manifesto de criação de um fundo UE-Brasil-Mercosul para remunerar esses serviços e contribuir para a preservação e restauração da floresta “tem um ponto decisivo: o fundo deve estar ligado à questão do trabalho das populações, não é um pagamento só pelo uso da Natureza, mas também pelo trabalho humano que proporciona esse uso”.
E tem de se garantir “que uma parte desse dinheiro vai para as populações locais, porque senão vai continuar a destruição da floresta amazónica, que foi o projeto de Bolsonaro”. O discurso de Bolsonaro “era ‘o Brasil está a manter a floresta sem receber nada, então vamos botar fogo, vamos retirar todo o dinheiro possível’, o que é uma estupidez, é um tiro no pé, é um suicídio, tem de haver uma alternativa”
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