João Pinto Coelho
4 de dezembro às 21:14
4 de dezembro às 21:14
Começo por agradecer o alerta à Irene Pimentel – com quem continuo a aprender - e junto-me ao seu protesto.
A verdade é que perdi a conta aos livros que li, desde os já longínquos tempos da faculdade, sobre a perseguição aos judeus na Europa durante o séc. XX. Entre eles, apenas um romance – As Benevolentes, com que Jonathan Littell ganhou o Goncourt e o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa. Esta minha aversão pela ficção em torno de uma matéria tão sensível raia o paradoxo, já que foi o género que escolhi para falar do assunto nos três livros que escrevi. A explicação é simples: sempre receei a falta de rigor, mesmo tendo sido injusto com alguns ficcionistas que sabiam o que diziam. Até os livros académicos foram escolhidos a dedo, uma obsessão que se afirmava cada vez que conversava com algum sobrevivente. Quando me falavam da sua vida no campo, contavam que, ao acordarem – às 4h30, no verão; uma hora mais tarde, no inverno –, deparavam muitas vezes com mortos e quase mortos prostrados nos beliches, pois nem todos resistiam às noites geladas de Auschwitz em barracões com lareiras que nunca eram acesas. Se fossem a tempo, ainda se aproximavam do companheiro que agonizava, ajoelhavam-se e davam-lhe a mão para que não morresse só. Sobrassem forças para dizer alguma coisa, o moribundo despedia-se da vida com um pedido: as últimas palavras reservadas para implorar a sobrevivência de quem lhe segurava a mão. Para quê? Para que contasse o que se passava ali. Ninguém suportava morrer, permitindo que a mentira lhe sobrevivesse.
Eu disse pedido? Era mais do que isso: era uma sentença de testemunho. Então, e só então, soube o que me faltava para escrever sobre Auschwitz, Jedwabne ou qualquer aldeia toscana devassada pelos nazis. Alguém imagina que valor dá à Verdade quem ouve uma história destas?
E é também por isso que vos falo do Rodrigues dos Santos. Não dos livros – que não li -, mas da entrevista recentemente dada à RTP.
Cito-o:
«A minha ideia era transportar o leitor de Portugal, em 2020, para Auschwitz, em 1944. De tal maneira que as pessoas estão a ler o romance e a certa altura já não estão aqui, estão lá, naquele tempo. Estão a sentir os cheiros, as cores, a visão, as emoções, como se estivessem lá.»
Uma proeza para qualquer autor, mais ainda nunca lá tendo estado. Censuro-o por isso? Essa agora! Mas estranho como suportou não fazer essa visita.
Já eu não sosseguei enquanto não fiz a viagem. E mesmo tendo lá ido quatro vezes, de ter passado dias a fio a trabalhar nos antigos campos, de atravessar sem pressas a mata de bétulas de Birkenau, ou de caminhar, por vezes à noite e quase sempre sozinho, entre os barracões do Stammlager, nunca concebi os cheiros ou as emoções de quem lá sobreviveu ou fez tudo por isso. Muito menos tentei descrevê-los. Mas cada um faz o que pode e, sobre isso, nada a dizer.
Igualmente não censuro JRS por dizer que nenhum autor português escreveu sobre o assunto, muito menos que se esqueça das perguntas que me fez quando me entrevistou num Telejornal em outubro de 2017 - pelo que vejo agora, apenas quatro dias antes da epifania que o levou a escrever os dois romances sobre Auschwitz. Também não o critico pelas gafes – logo eu, que me espalho tantas vezes-, mesmo quando nos diz:
«Os nazis tinham 50 campos de concentração, que é uma coisa gigantesca, e os comunistas, na Rússia, tinham 500! Eram dez vezes mais.”
Classificar Auschwitz como um campo de concentração é uma imprecisão muito mais comum do que afirmar que os nazis tinham 50 campos. Infelizmente o número foi superior, dolorosamente superior: mais de 44.000, somados os campos de concentração e guetos, campos de trabalho, de trânsito, de extermínio, etc.
De regresso à entrevista, ouvimo-lo dizer o seguinte:
«A certa altura, há alguém que diz: - Eh, pá, estão nos guetos, estão a morrer de fome, não podemos alimentá-los. Se é para morrer, mais vale morrer de uma forma mais humana. E porque não com gás?»
Não sei até que ponto JRS está a par do debate académico sobre as origens do genocídio nazi, nem se conhece os conceitos de Funcionalismo e Intencionalismo que têm dividido os historiadores nas últimas décadas. De uma coisa tenho a certeza: não vai encontrar nenhum académico respeitado que alegue razões humanitárias para justificar os gaseamentos. A não ser, claro, que essas razões recaiam sobre os próprios alemães, membros dos einzatsgruppen que fuzilaram multidões de judeus durante a invasão da União Soviética e que apresentaram sinais compreensíveis de fadiga e distúrbio psicológico, após dispararem a eito sobre milhares de mulheres e crianças indefesas. Andava eu convencido de que os primeiros camiões de gás tinham surgido para agilizar as mortes e torná-las mais “limpas”; oiço agora que foi por piedade pelas vítimas.
Aberrante? Há mais e há pior. Atente-se:
«Nós vemos no livro que há ali uma máquina que está montada e que é quase como quem vai para o trabalho. Aquilo é um trabalho, portanto, eles vão lá fazer um trabalho. (…) Chegou ao ponto de terem um bordel no campo para os prisioneiros (…) tinham uma piscina para os prisioneiros, (…) tinham uma escola para as crianças judias no Familienlager, em Birkenau. Por outro lado, o ser humano tem uma enorme capacidade de se adaptar às situações.»
Adaptar a quê? A Auschwitz? Terá JRS lido Primo Levi? No lager, a única adaptação possível é a abreviatura da morte, os Muselmänner.
Não. Eles não vão lá fazer um trabalho, vão lá para morrer. Por cada transporte que chegava a Birkenau, a maior parte era imediatamente conduzida para as câmaras de gás. Os que ficavam trabalhavam como escravos até morrerem também. Não iam para a piscina e mesmo os bordéis criados nalguns campos para “premiar” os mais produtivos não passavam de um embuste, um lugar de humilhação para os prisioneiros, ou mais um exemplo do cinismo e crueldade dos nazis. Oiçam-se as vítimas, pela voz de uma de muitas - Jozef Szajna: «Os bordéis eram apenas mais uma forma de os SS atormentarem os prisioneiros. Todos os que pensam que o bloco 24 era uma espécie de prenda para os prisioneiros, não fazem a mínima ideia do que foi Auschwitz.»
O exemplo descontextualizado da escola do Familienlager, a extensão propagandística do campo/gueto de Theresienstadt situada em Birkenau, também é pernicioso. Essa escola destinava-se às crianças vindas de Terezin e, assim como as condições dadas aos restantes prisioneiros desse setor do campo – ligeiramente mais favoráveis do que as concedidas aos demais – mantinha o propósito ardiloso do campo de origem. É uma ilha irrisória nos 150 hectares de Auschwitz II e, sem ser o facto de menos de 1 em cada dez deportados ter sobrevivido, não representa o que se passou ao redor.
É esse o problema do discurso de JRS. Desdenha as obras de ficção que falam da Shoah por «suavizarem a realidade», mas doura a pílula e confunde tudo. Pior: sobram-lhe certezas onde falta a perplexidade; e só ficciona sobre Auschwitz quem desistir das respostas – sempre pequenas para tão grandes perguntas, como lembrou Raul Hilberg. Sem querer, cai naquilo que Deborah Lipstadt apelida de «soft core denial». Exagero? Então leiam:
«Os nazis acreditavam que faziam isto para um bem superior, que eles iam salvar a humanidade. Nós encontramos este raciocínio na Inquisição, quando está a queimar as bruxas, a matar os judeus, a torturar as pessoas, acreditando que aquilo é para as salvar, para que encontrem o caminho de Deus.»
Não comento. Apenas lamento esta entrevista. Lamento que JRS não usasse melhor os 23 minutos que o canal PÚBLICO onde trabalha lhe ofereceu para publicitar o romance. Mas também me lembro das horas que passei a falar destas coisas a muitos jovens deste país, mais de 100 sessões escolares em que pesei cada palavra para não dizer asneiras, ou mesmo dos 20 anos que esperei para me atrever a escrever sobre Auschwitz e o grande desastre humano.
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