segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Cronobiologia

A descrição escrita de ritmos biológicos data, pelo menos, da Antiguidade Clássica. As primeiras descrições dizem respeito a plantas, que ora levantam as folhas, ora as deixam cair, ora abrem a corola, ora a fecham, ora emitem odores, ora não, de acordo com as horas. Quanto aos animais, são seguramente muito antigas, também, as observações de ritmos de comportamento, sendo um dos mais evidentes a alternância sono/vigília, mas também a alternância de períodos férteis/inférteis e a migração em certas épocas do ano.

Estas e muitas outras constatações, incluindo dados da nossa própria experiência pessoal, eram altamente sugestivas da existência de relógios nos nossos organismos (relógios endógenos). A descoberta destes relógios, e conhecimento dos respectivos mecanismos, só pôde ser feita nas últimas décadas, com a disponibilidade das metodologias e conhecimento biológico adequados. Consistem, em geral, na oscilação na expressão de certos genes que, aumentando, leva ao aumento da concentração da respectiva proteína que, por sua vez, ao atingir determinado valor leva à frenação da actividade do gene; deixa de se sintetizar a proteína que, ao ser degradada, a certa altura permite, de novo, a actividade do gene. E repete-se o ciclo.

Assim, sabemos que temos efectivamente relógios endógenos, em vários tecidos do organismo, havendo um relógio central, que tenta manter a sintonia do conjunto, no sistema nervoso central (núcleo supraquiasmático, no hipotâlamo). Na realidade, todos os seres vivos na terra estão adaptados aos ciclos correspondentes aos movimentos da terra em torno do seu eixo, que marcam o dia de 24 horas, com a sucessão dia-noite (ritmos circadianos).

Outros fenómenos fisiológicos relacionam-se com o movimento da lua em torno da terra, que marca o mês lunar, e da terra em torno do sol, que marca as estações do ano. Os relógios endógenos permitem aos seres vivos anteciparem a necessidade de preparação para determinadas actividades, as que as condições do ambiente vão permitir. Este poder de antecipação tem também vantagens económicas, pois permite a activação de sistemas (enzímicos, celulares, organísmicos) quando vão ser necessários, restando num nível de actividade muito mais baixo fora desses períodos.

Um aspecto muito interessante e importante do funcionamento dos relógios biológicos é o que diz respeito ao seu acerto por sinais externos, um dos sinais mais importantes sendo a luz (solar, que indica o dia), mas também, por exemplo, a ingestão alimentar. Sem qualquer informação do ambiente (quando se põem as pessoas numa cave sem luz natural, sem relógios, e sem qualquer indicação do que se passa lá fora), a duração dos ciclos vai-se alongando: em cada dia as pessoas adormecem cerca de uma hora mais tarde, e a certa altura estão completamente fora do ciclo habitual. Ou seja, os relógios que marcam o ritmo circadiano (de circa diem – cerca de um dia) são diariamente acertados pelos sinais do ambiente.

Até há relativamente pouco tempo, o Homem, tal como ainda acontece com a generalidade dos seres vivos, teve o seu tempo em sincronia com o tempo natural: de noite dormia, pois não via o suficiente para trabalhar, e de dia andava lá fora (a procurar comida, parceiro, a passear). A conquista tecnológica foi criando condições para se sair desse ritmo natural.

Mas a organização social e, também, as opções das pessoas, levaram a que, neste momento, muita gente viva sem qualquer respeito pelas necessidades temporais biológicas. São exemplo disso as deslocações frequentes ao longo de vários fusos horários (provocando o que se designa por “jet-lag”), o trabalho por turnos oscilando frequentemente entre turnos diários e turnos nocturnos, a prática de horários completamente desadequados ao cronotipo de cada um (há, como todos sabemos, os madrugadores e os noctívagos). O cronotipo pode variar com a idade (os adolescentes raramente são madrugadores). E enquanto perturbações agudas dos ritmos causam mal-estar (tipo “jet-lag”: sono e cansaço quando se está a trabalhar, dificuldade em dormir quando se quer dormir), os efeitos deste tipo de práticas, ao longo do tempo, podem ser muito nocivos para a saúde.
*Directora do serviço de Bioquímica da Faculdade de Medicina e ex-vice-reitora da Universidade do Porto 

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