Remexendo velhos papéis para encontrar o gancho urbano-ambiental
Quando Lynch(1), há cerca de trinta anos, escreveu um artigo intitulado "A Cidade como Meio Ambiente", nos fez um convite que soou como um exercício de futurologia: imaginar que o crescimento da população e a evolução da tecnologia tivessem urbanizado todo o globo e que uma única imensa cidade cobrisse a superfície da Terra. Apresentou essa perspectiva como um pesadelo pois tal cidade seria monótona, impessoal, abstrata e sem contato com a natureza. Mas ele não parou por aí. Pediu que supuséssemos, estar nas nossas mãos, planejar um setor da hipotética cidade mundial para melhorar suas condições de vida. Argumentou que tínhamos meios para produzir uma atmosfera agradável no local onde vivemos nosso cotidiano. Ao mesmo tempo, constatou que já estávamos conscientes da feiúra e do desconforto que o colosso urbano impingia a seus habitantes. Nas suas palavras:
"Os meios e a consciência devem entrelaçar-se... A enormidade, complexidade, diversidade de funções e estilos de vida do colosso urbano nos causam...dúvida sobre nossa capacidade de controlar a qualidade do meio ambiente...É fácil criticar a cidade. O que não é tão óbvio são suas potencialidades para nos trazer...prazer, potencialidades que surgem não apenas como decorrência do...meio íntimo - a casa e o bairro - mas da forma da cidade em toda sua grandeza."
Alexander(2), poucos anos depois, ao esboçar seu livro "O Meio Ambiente", também nos fez uma proposta intrigante. Começou com uma questão: qual é o problema fundamental do desenho do meio ambiente? Respondeu que consistia em se criar um meio ambiente que fosse real e total. A partir daí, afirmou que as obras de arquitetura moderna e as cidades contemporâneas, não eram suficientemente reais. Sucederam-se novas indagações:
"Que é algo real? Algo que se aceita...e está consubstanciado com sua própria natureza. ...Como se poderá fazer para que todo o meio ambiente e todos os lugares onde vivemos sejam...reais? Uma cidade só pode chegar a ser real, se todos seus milhões de cidadãos estiverem embuídos do conceito de realidade. Como podem cooperar milhões de atos individuais de edificação de maneira que o meio ambiente por eles criado seja total e real?O...meio ambiente total é aquele que permite a seus participantes chegar a ser pessoas totais por meio de seus próprios esforços...
Todo meio ambiente...sempre se estabelece a partir de um sistema combinatorial de imagens, que denomino de linguagem de padrões... Quando as linguagens de padrões usadas pelos construtores de meio ambientes são privadas e fragmentárias, como o são atualmente, é inevitável que gerem entornos fragmentários. ...pode-se construir uma linguagem de padrões compartilhada."
Que há de comum entre esses dois artigos? Não apenas a contemporaneidade da década de 60. Ambos nos convidam a sentir o pulsar da relação meio ambiente-meio urbano com um enfoque que vai da "fantasia do grande para o pequeno". Grandes são os desafios da cidade mundial e do meio ambiente total. Pequenos nos achamos nós perante eles. Ambos nos intimam a sermos todos construtores do meio ambiente no meio urbano e do meio urbano sobre o meio ambiente. Ambos nos puxam para dentro do texto e nos convocam a participar do seu imaginário, que é também o nosso (.....)
II
Duas perspectivas de análise da relação urbana-ambienta
Do início dos anos 80 até nossos dias a relação meio ambiente-meio urbano vem se consolidando a tal ponto que, por vezes, chegamos a não distinguir quando se está falando de um ou de outro dos temas remanescentes. De fato, acreditamos ter ocorrido uma ampliação desse relacionamento que, agora, passa a ser visto com enfoques múltiplos que extrapolam aquele mais visível da poluição urbana. Por esse motivo, não podemos admitir que chamem os anos 80 de "década perdida", expressão muito ao gosto dos analistas econômicos. Hoje é notório o aumento da conscientização mundial sobre o meio ambiente. Além disso, novos atores tem papel relevante nas decisões afetas à questão ambiental: os movimentos sociais e as organizações não governamentais proliferam.
Onde, senão nas cidades, vem acontecendo essa revolução ambiental? Nesse ponto é importante esclarecer que a cidade não é só o "palco" dessa revolução, pois a relação meio ambiente-meio urbano é sinérgica. O meio ambiente, nesse período, ultrapassa a fronteira local para ganhar a estrada cósmica-global e, com ele, o urbano também. A globalização é, fundamentalmente, urbana.
Com essas idéias referenciais fomos ler alguns autores que, nos anos recentes, tem dado contribuições sobre o assunto. Quando fechamos os livros, a sensação era que, durante as leituras, tínhamos estado como que "brincando com um caleidoscópio": uma infinita combinação de imagens coloridas ia aparecendo diante dos nossos olhos. Cada uma era como um fragmento do Cosmo, do Planeta e do Globo que se refletia no espelho da nossa mente.
Paralelamente, a essa sensação se juntou um sentimento, porque não dizer, de um certo desalento pois, no momento em que tudo é cósmico, planetário e global, tudo está longe e fora do alcance das nossas mãos. As soluções propostas pelos autores consultados, na sua maioria, são institucionais e dependem do esforço conjunto em organizações como a ONU, dos Estados-Nações se aliarem em blocos regionais, das ONGs e etc. A humanidade, a sociedade industrial capitalista, o homem em geral, o urbano e o rural, o do norte e o do sul, o pobre e o rico, todos são predadores da natureza. Todos ajudamos a criar "problemas do tamanho do mundo." Problemas que transcendem a nossa natureza como seres viventes.
Nesse momento, com o nosso caleidoscópio imaginário entre as mãos, num exercício de abstração, percebemos que as reflexões dos autores tem adotado duas perspectivas distintas mas coexistentes:
- uma primeira considera que o meio ambiente é mais abrangente e trata o meio urbano como uma de suas expressões, ou seja, como um dos seus sub-sistemas que deve estar em busca de um permanente equilíbrio com o sistema maior. Nessa perspectiva, o meio urbano está em conflito com o meio ambiente. Percebe-se a cidade como foco de externalidades negativas que devem ser corrigidas para cumprir, eficientemente, o papel que lhe cabe no modelo capitalista internacionalizado. Aqui, as cidades assumem características de cidades mundiais. Vamos denominar essa perspectiva de "global";
- uma outra privilegia o meio urbano como um espaço que possui uma dinâmica ambiental própria e única, resultante de uma interação entre o ambiente natural e ambiente construído, cuja harmonia é intrínseca e não extrínseca. Isso não lhe confere autonomia nem isolamento, mas apenas especificidade. Nessa perspectiva não há cidades ideais e sem problemas, mas há cidades e cidadãos buscando soluções condizentes com a sua estrutura ambiental. Em suma, a cidade tem uma personalidade e cada cidade tem a sua personalidade. Em contraposição à primeira perspectiva, chamaremos esta de "local".
Os nomes que escolhemos para batizar as duas perspectivas, "global e local", não tem a pretensão de reforçar ou retomar a discussão apaixonada que tem se travado entre as correntes dos localistas e globalistas. Ao contrário, pretendemos mostrar que as duas convivem e que nenhuma é mais nem menos correta. Aqui, tão somente usamos esses termos como uma necessidade de visualizar o tamanho da lente com que a relação meio ambiente-meio urbano tem sido focada. Embora essa afirmação, à primeira vista, pareça estranha, vamos observar que quase todos autores consultados abordam ambas perspectivas. Para demonstrar voltemo-nos, agora, para recortar fragmentos de seus escritos. Na seleção, apenas um critério: identificar, nos textos, maneiras como a global(ização) e a local(ização) podem contribuir para mudar a qualidade do relacionamento meio ambiente-meio urbano.
Em Aguiar(7) é clara a presença das duas perspectivas. Por um lado ele explicita a relação meio ambiente-meio urbano no seu conceito de meio ambiente total a partir de uma visão sistêmica. Por outro lado, nos mostra o cidadão - ser humano e o cidadão - planetário. Além disso, vê a cidade, simultaneamente, como foco de problemas e geradora de potencialidades ambientais. Assim:
"A luta pela convivência harmônica com o meio ambiente é...missão de todos cidadãos...O cidadão originário era um habitante da cidade. Hoje a cidadania atinge outra dimensão...transcende a internacionalização e invade a planetarização. O conceito de meio ambiente é totalizador. Embora possamos falar em meio ambiente marinho, terrestre, urbano...essas facetas são partes de um todo sistemicamente organizado onde as partes... dependem umas das outras...No meio urbano, onde há maior concentração de população, os problemas tendem a se radicalizar, pois...pobreza, doença, falta de higiene... contribuem para a agressão...ao meio ambiente. A cidade...é a representação máxima do distanciamento entre homem e natureza...mas é também o lugar de decisões...de poder... É a praça onde ...são urdidos acordos e radicalizados confrontos... É na cidade que aparecem os movimentos sociais..."
Ortiz(8), ao discorrer sobre a existência de uma "cultura internacional-popular", nos traz uma abordagem que parece remeter para a imposição do global perante o local. De fato, ele nos diz que o local não está em contradição com o global mas, ao contrário, estão interligados, pois a globalização se realiza através da diferenciação. Embora ele não explicite a relação meio ambiente-meio urbano, referindo-se, em separado, à ecologia planetária e ao anonimato das grandes cidades, nos deixa pistas para construirmos essa relação quando sugere que a sociedade deve inventar novas instâncias para integração das pessoas e propõe a mídia e as empresas como tais instâncias.
E aí nos perguntamos: não é a cidade o local privilegiado da ação de instâncias como essas e também sede dos movimentos sociais ecológicos? Vejamos:
"...movimento ecológico...uma espécie de movimento social da sociedade civil mundial...A preocupação ecológica não tem pátria, seu enraizamento é o planeta. ...mundialização percorre dois caminhos...a desterritorialização constituindo um tipo de espaço des-localizado. Porém...o espaço, categoria social...deve se localizar, preenchendo o vazio de sua existência com a presença de objetos mundializados. Com o advento da sociedade urbano-industrial, a noção de pessoa já não mais se encontra centrada na tradição. Os laços de solidariedade se rompem. O anonimato das grandes cidades e do capitalismo corporativo pulveriza relações sociais, deixando os indivíduos soltos na malha social. A sociedade deve inventar novas instâncias para a integração das pessoas. Uma cultura mundializada deixa raízes em todos os lugares...Sua totalidade transpassa os diversos espaços, embora...de maneira desigual."
Numa linha similar de abordagem, está Ribeiro(9) nos contando sua experiência com os denominados "bichos de obra", habitantes das pequenas aldeias do sistema mundial formadas nas cercanias canteiros de grandes obras, um ator social, segundo ele:
"...dominado por sua ocupação profissional, tendencialmente descarnado da especificidade e da profundidade de uma identidade cultural e étnica, e que vê a si mesmo como um cidadão do mundo, de um sistema mundial cada vez mais homogêneo..."
Ele conclui que há uma brecha para a reconstrução de uma nova identidade mesmo que seja às custas do que chamou de "interação-integração de segmentos populacionais heterogêneos."
Tomemos agora Santos que, numa entrevista recente(10), se declarou avesso às teorias que exaltam a globalização da sociedade moderna e partidário da riqueza da combinação urbana, com os seguintes argumentos:
"...o mundo inteiro é uma ficção. A...aldeia global não existe. ...desconfio de tudo que é apresentado como sendo global...falta sentido a esse conceito. Meu ponto de partida são os valores. Estes podem se tornar mundiais, mas o ponto de partida é local. ...o sentido verdadeiro das coisas é sempre produzido por valores locais que produzem cidadania...A cidade, ao contrário do campo, recusa o capital...Os homens são mais diversos e, portanto, a combinação urbana é mais rica. O futuro está aqui. ...a grande quantidade de gente pobre é uma fonte de sabedoria...O pobre é o agente menos acomodado que a classe média. O pobre se relaciona com a cidade como um lugar...que exige um deciframento permanente."
Aqui, as duas perspectivas estão presentes, por contraposição, na medida em que Santos usa o local para rechaçar o global. A relação meio ambiente-meio urbano aparece nas entrelinhas quando ele introduz na discussão as classes sociais e considera que a pobreza das cidades não é fonte de poluição, mas sim fonte de sabedoria.
Foi também num artigo de Santos(11) que encontramos uma frase das mais polêmicas sobre o assunto. Vamos a ela:
"...o lugar torna-se o mundo do veraz e da esperança e o global, mediatizado por uma organização perversa, o lugar da falsidade e do engodo. Se o lugar nos engana, é por conta do mundo. ..o que globaliza separa; é o local que permite a união."
Poderíamos nos contentar em reconhecer que, mais uma vez, Santos usou o local para contrapor o global ou dizer que, nessa frase, ele se mostrou o mais ardoroso defensor do local. Mas, seria pouco. Ficamos nos perguntando o significado do jogo de palavras entre o lugar e o mundo, o local e o global, o veraz e o falso, o que une e o que separa. Arriscamos dizer que representa a dialética de um processo uno e simultâneo, de global(ização) e de local(ização).
Dentre os autores que selecionamos, Sachs(12) reproduz com mais fidelidade o "mix" das nossas duas perspectivas, nos trazendo de volta algumas das posturas travestidas com roupagens novas, mas nos brindando com outras que introduzem mudanças qualitativas na relação meio ambiente-meio urbano.
Vejamos suas propostas para minimizar os conflitos meio ambiente-meio urbano baseadas na "novidade" do desenvolvimento sustentado. Ele nos diz que o planejamento do desenvolvimento deve considerar cinco dimensões de sustentabilidade: social, econômica, ecológica, cultural e espacial. Na última, destaca a necessidade de se obter:
"uma configuração rural-urbana mais equilibrada e uma melhor distribuição territorial dos assentamentos humanos e das atividades econômicas, com ênfase no que se segue: reduzir a concentração excessiva nas áreas metropolitanas; explorar o potencial da industrialização descentralizada..."
Ele também dedica uma parte do seu paper à outra "novidade", a explosão urbana, começando por frizar que:
"O tamanho da explosão urbana, aliada à lista de necessidades não atendidas, significa que a replicação no Sul de métodos utilizados no Norte aumentaria as desigualdades existentes, beneficiando uma minoria e marginalizando a maioria dos habitantes urbanos.
...a atual tendência...à transformação do nosso planeta em um arquipélago urbano deve ser considerada como uma fatalidade. O conceito de economias de aglomeração deve ser revisto à luz das oportunidades criadas para a especialização flexível e a industrialização descentralizada..."
Ao mesmo tempo, é também Sachs, com uma postura inovadora, quem mais enfatiza os avanços institucionais da sociedade civil e destaca a personalidade das cidades. Assim:
"O surgimento da sociedade civil como um terceiro sistema de poder, unindo-se ao Estado e aos poderes econômicos deve ser visto como um evento importante...Um dos desafios será reconhecer esta nova configuração política e trabalhar na institucionalização de uma democracia genuinamente participativa em todos os níveis: local(rural e urbano), nacional e global. As cidades são ecossistemas e, como tais, são fontes potenciais de recursos. ...As cidades são como pessoas: pertencem à espécie urbana, mas tem sua personalidade própria. A resposta ao desafio urbano deve levar em conta as configurações específicas dos fatores naturais, culturais e sócio-políticos, do passado histórico e das tradições de cada cidade. Em lugar de se propor soluções homogeneizadoras, a sua diversidade deve ser considerada como um valor cultural de grande importância.
Bibliografia
(1) Lynch, Kevin. The city as environment. In: Scientific American. september 1965, pp. 209-219
(2) Alexander, Christopher. El medio ambiente. Conferencia leída en el Second International Symposium on Regional Development, Tokyo, Sept 1968. Publicado in La Estructura del Medio Ambiente. Barcelona; Tusquets Editor, 1971
(7) Aguiar, Roberto A. Ramos de. Direito do meio ambiente e participação popular. Brasília, IBAMA, 1994, pp.20-54
(8) Ortiz, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1994, pp.7-219
(9) Ribeiro, Gustavo Lins. Bichos de Obra - fragmentação e reconstrução de identidades. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 18, fev de 1992
(10) Entrevista: Milton Almeida dos Santos. O Mundo não existe. Revista Veja, 16 de novembro, 1994
(11) Santos, Milton. A aceleração contemporânea :tempo mundo e espaço mundo. In: O Novo Mapa do Mundo - Fim de Século e Globalização. São Paulo. Ed. Hucitec - Anpur, 1993, pp.20-25
(12) Sachs, Ignacy. Estratégias de transição para o século XXI. In: Para pensar o desenvolvimento sustentável. Brasília, IBAMA/ENAP e São Paulo, Brasiliense, 1993, pp.38-41
(13) Douglas, Ian. The city as a ecossystem. In: Progress in Physical Geography, vol 5, number 3, september 1981