segunda-feira, 6 de junho de 2022

Eis a “equação do Antropocénico”, que calcula o impacto humano no sistema terrestre



Orfeu Bertolami criou a “equação do Antropocénico”, que mede o efeito da actividade humana no sistema terrestre. O físico da Universidade do Porto defende ainda criação de um “contrato digital” que remunere com criptomoedas quem provar que restaurou um ecossistema.

A chamada “equação do Antropocénico”, que o físico Orfeu Bertolami (da Universidade do Porto) criou em 2018, consegue medir o efeito da actividade humana no sistema terrestre, um dado essencial para compreender as alterações climáticas. “Acordei a meio da noite, em Fevereiro de 2018, desci e escrevi num pedaço de papel a equação do Antropocénico. Parece maluco, mas foi isso”, conta à agência Lusa.

Na comunidade científica, o entendimento geral é o de que o planeta entrou, na década de 1950, no Antropocénico, uma nova época geológica influenciada pela actividade humana, saindo do Holocénico, “uma época muito especial, em que o clima estava muito estabilizado”, descreve o cientista brasileiro, que vive há décadas em Portugal.

“O que a actividade humana fez foi tirar o sistema terrestre desse estado de equilíbrio e empurrá-lo para uma nova fase, que chamamos Terra Quente e em que a temperatura média é muitíssimo maior”, explica.

A equação, que Orfeu Bertolami desenvolveu com outros colegas e foi publicada em 2019, permite “demonstrar que, quaisquer que sejam as condições iniciais do Holoceno, o sistema terrestre está, dada a tendência da actividade humana como ela existe, a ser empurrado para um novo estado em que a temperatura média é muito mais alta”. Quão mais alta? “Depende da actividade humana. Agora tem de se quantificar a actividade humana. Isso não é nada fácil.”

Mas também não é impossível, diz o físico, que para fazer essa quantificação tem de considerar, por exemplo, “a variação da temperatura, a acidez do oceano”, a quantidade de azoto presente da estratosfera e alterações na quantidade de azoto ou fósforo, “que têm que ver com a actividade biológica, com actividade vulcânica e tectónica”.

Apesar de se saber há muito que estamos a mudar o planeta, a equação do Antropocénico continua a trazer novos dados para a compreensão do impacto da actividade humana no sistema terrestre. O estudo mais recente de Orfeu Bertolami, que data de Abril, prova que “o sistema terrestre pode, devido ao impacto das actividades humanas, comportar-se de forma caótica”.

O cientista lembra que “a física que rege o clima e que permite fazer previsões, em particular previsões das alterações climáticas, já existe há muito tempo”. Nesta matéria, frisa, “nunca houve dissensão entre os cientistas”, mas antes “interesses económicos” que criaram essa narrativa.

“O sistema terrestre é uma coisa muito complicada. A radiação solar atravessa a atmosfera, a atmosfera absorve parte da radiação — por causa da presença de gases com efeito de estufa —, depois a radiação é reflectida por causa das superfícies claras e volta, parcialmente, para a atmosfera. Quando volta, é novamente absorvida pelos gases com efeito de estufa e uma parte sai para o espaço”, explica o físico.

Todo este processo “tende a aumentar a temperatura do planeta” e “isso é bem-vindo, porque, se não fossem os gases com efeito de estufa, a temperatura média da Terra seria de dez graus Celsius negativos, não seria de 15 graus Celsius”.

Orfeu Bertolami alerta, porém, para os riscos de um aquecimento excessivo: “Se a temperatura subir três graus, praticamente não temos nenhuma protecção. Quando chegar aí, acabou. O planeta continua, mas não há como sustentar a humanidade nestes termos.”

O físico refere que, apesar de ter chegado à equação do Antropocénico, ainda há trabalho por fazer. “Já tenho a equação. A questão é agora quais os parâmetros que ponho. O que conseguimos demonstrar agora é que os parâmetros falam uns com os outros. Isso é completamente novo.”

“São nove parâmetros a conversar com nove parâmetros — são 81 números. Nós estimámos um. Agora, temos de saber como é que eles falam entre si. É complicado”, prossegue, dizendo que precisa de tempo e de recursos. “Propus à Fundação para a Ciência e a Tecnologia um estudante de doutoramento que fizesse isso para Portugal. Zero euros. Nem uma bolsa conseguimos”, lamenta.

Criptomoedas para quem restaurar um ecossistema?

Além desta equação, o físico defende também a criação de um “contrato digital” que remunere com criptomoedas quem provar que restaurou um ecossistema. Este modelo surge em alternativa às taxas de carbono e ao mercado de emissões, cujas receitas vão para os Estados — que, diz Orfeu Bertolami, podem investir como quiserem. E não necessariamente em medidas que beneficiem o ambiente, argumenta.

O físico propõe assim a criação de uma resilient social tax (taxa social resiliente, em tradução livre), que deveria ser colocada em todo o tipo de consumo nos países ricos. Se consumiu, tem de pagar. E [a receita] tem de ser utilizada para restaurar ecossistemas ou capturar dióxido de carbono (CO2). Só para essas duas coisas.”

“A minha ideia é criar uma nova criptomoeda, chamada Planetary Boundary Cryptocoin. As pessoas aderem a esse contrato digital, por tecnologia blockchain, recebem capital — que pode ser, inicialmente, capital a sério — e restauram ecossistemas. O proof of work (protocolo de segurança) que tem de se levar a cabo para receber criptomoeda é provar que o trabalho de restauro foi feito”, esclarece.

Questionado sobre o esforço energético que é necessário para gerar uma criptomoeda, o físico sugere que a simplicidade do protocolo de segurança resolve essa questão.

Esta ideia surgiu-lhe “naturalmente”, porque a criptomoeda “foi inventada para evitar a inflação, a especulação” — no caso da pioneira bitcoin, há uma quantidade fixa de moedas. “O que propomos é uma coisa ainda mais material. O valor da moeda está ajustado segundo os parâmetros terrestres. Não posso criar mais moeda do que os recursos do planeta — é mesmo muito físico”, diz Bertolami, que acredita: “Se criarmos essa dinâmica, não precisamos mais dos governos, podem ir passear.”

“Queremos o melhor para os portuguesas, os italianos, os indianos e assim sucessivamente, mas isso não tem nada que ver com o sistema terrestre, que é para todos. Essa divisão geográfica, política, dos países, é completamente incompatível com a lógica do problema que temos em mãos, que é global. As alterações climáticas não vão parar na fronteira. Essa é a maior dificuldade”, afirma.

Para o cientista, “o principal responsável pela situação a que chegámos é essa ideologia económica de crescer continuamente e consumir continuamente”. “É um planeta finito. Os recursos são limitados e isso tem consequências socioeconómicas muito claras”, destaca Orfeu Bertolami, referindo que, “entre os anos 1500 e 2000, a população cresceu 14 vezes”. “Nesse mesmo período, a riqueza cresceu 250 vezes. Há riqueza para todos.”

“O problema das alterações climáticas é o mesmo da desigualdade social. Não consigo resolver um sem resolver o outro”, frisa o cientista, que diz ser “extremamente positivo que a sociedade se esteja a mobilizar para” colocar o problema das alterações climáticas num contexto que permita “a sua solução”. “E esse contexto, para mim, é claríssimo. O problema das alterações climáticas é a sociedade de consumo, a economia de mercado, o capitalismo. Não vamos aqui dourar a pílula”, diz.

Orfeu Bertolami reconhece a importância dos movimentos ambientalistas, mas considera-os “um bocado incipientes”. “São necessários, [mas] ainda não atingiram a maturidade necessária para serem verdadeiras alternativas — e, como se sabe, há muitas iniciativas nesse sentido. Eu mesmo fiz parte de uma, chamada Casa Comum da Humanidade, para promover o sistema terrestre [e um clima estável] como bem jurídico. É conversa. Eu não tenho interesse em conversas, tenho interesse em fornecer ideias para testar.”

O físico aponta para o facto de, “No norte de África, uma dúzia de países, dos mais pobres do planeta”, ter criado um corredor verde de “15 quilómetros por oito mil quilómetros”. “São esses projectos que defendo. Podem ser levados a cabo pelas comunidades — e acho uma vergonha não estarmos a dar dinheiro para plantar oito mil por 30 [quilómetros], e assim sucessivamente.”

O cientista acredita que medidas destas mitigarão a pobreza, tendo “um impacto positivo na vida daquelas pessoas, que, depois, não vão emigrar para a Europa, envolver-se em problemas sociais nos seus países”. “Temos de ajudar esses países para nos ajudarmos também”, remata.

Natural de São Paulo, no Brasil, Orfeu Bertolami é doutorado pela Universidade de Oxford (Reino Unido), trabalhou no Instituto de Física Teórica (Heidelberg, Alemanha), no Instituto de Física e Matemática (Lisboa), no Instituto Nacional de Física Nuclear (Turim, Itália), no Departamento de Física do Instituto Superior Técnico (Lisboa) e na Universidade de Nova Iorque. É actualmente professor catedrático no Departamento de Física e Astronomia da Universidade do Porto.

Como físico teórico, trabalha questões relacionadas com cosmologia, gravitação clássica e quântica e ciência do sistema terrestre. Tem trabalhado as alterações climáticas, do ponto de vista físico, mas também, em colaboração com a socióloga Cármen Diego Gonçalves, a relação entre as alterações climáticas e a pandemia.

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