domingo, 9 de fevereiro de 2020

Em vez de uma economia que controla a política, temos de ter uma política que controle a economia

Para Viriato Soromenho-Marques, vive-se hoje “numa tensão entre uma inteligência artificial crescente e uma estupidez natural também crescente”. Defensor das causas ambientais, é uma das vozes que há mais tempo vem alertando para as alterações climáticas. 
Patrícia Carvalho, Vítor Belanciano (texto) e Rui Gaudêncio (fotografia) 9 de Fevereiro de 2020 

Catedrático de Filosofia da Universidade de Lisboa, Viriato Soromenho Marques é uma das vozes mais autorizadas, em Portugal e no estrangeiro, quando se pensa em questões ambientais e alterações climáticas nas últimas décadas. Ao longo dos anos foi uma voz de alerta permanente — em diferentes papéis, da academia a fóruns e organizações internacionais, passando pelo activismo ambiental — no sentido da tomada de consciência para os complexos problemas que aí viriam. Mas nem ele, confessa nesta entrevista, conseguiu evitar a surpresa pelo facto de as alterações climáticas terem sido muito mais rápidas do que previra. Hoje preocupa-o o que podem fazer as universidades para enfrentar ou minimizar estas intricadas questões sem paralelo na história da humanidade, afirma, ao mesmo tempo que proclama que a economia e a política são vectores absolutamente indissociáveis para as tentar resolver. Sobre o Governo português, refere que existem aspectos positivos na sua actuação, mas também negativos, com o aeroporto do Montijo no centro das críticas. Em plena época do Antropoceno, preocupa-o tanto os cenários de urgência climática como a possibilidade de conflitos políticomilitares. “Está tudo ligado”, garante. 

P: Escreveu que a partir do século XIX, em todas as esferas da existência social, dominou essa ideia de que a natureza se deveria submeter aos imperativos tecnológicos, sem que se tenham delineado os eventuais danos dessa filosofia. Essa fé ou optimismo tecnológico, mesmo nesta época do Antropoceno, não continua muito presente? 
VS-M: Sim. A tecnologia não é coisa que possamos dispensar. Mas não podemos, como até aqui, ir atrás dela cegamente. Vive-se numa tensão entre uma inteligência artificial crescente e uma estupidez natural também crescente. Quem disser que temos metodologias para controlar os perigos da inteligência artificial está a mentir, ou é ignorante. Mas, é verdade, há muitas pessoas ignorantes em posições bem colocadas. É preciso recuar à revolução científica, que depois se tornou tecnológica, para percebermos a actualidade. O que nos define é uma confiança na possibilidade de construir um futuro que realiza a nossa vontade. Ou seja, a possibilidade de adaptarmos a realidade aos nossos desejos. Isto tem a ver com o pensamento utópico. A utopia clássica era uma utopia educativa, pedagógica, política e ética. A partir do século XVI, com a Modernidade e com a revolução científica, criámos uma nova utopia, em que mais do que mudar a identidade, a relação connosco, o que tínhamos de fazer era mudar a relação com o mundo. A tecnologia transferiu para o nosso apoderamento do mundo físico, uma agenda que antes da revolução tecnológica, tentávamos resolver uns com os outros. O próprio conhecimento mudou. Na antiga Grécia, “teoria” significava contemplação. Procurava-se compreender. Perceber como é que se funcionava. Uma espécie de o verdadeiro é também o belo. A ideia de que a Natureza tem uma estrutura bela, porque corresponde a ideias que são harmoniosas e são adaptadas ao nosso conhecimento. Enquanto a ideia da ciência moderna é transformativa. Aquilo que Descartes procura é uma ciência que nos permita sermos os senhores e possuidores da Natureza. Isso nunca mais parou. Assim, temos uma ciência voltada não tanto para a verdade, mas para a utilidade, para o que nos é útil. 

Agimos desde há muito sem essa noção de que estávamos a afectar a Natureza. Mas essa falta de consciência foi-se atenuando ou não? 
Uma das coisas mais surpreendentes na nossa sociedade — e não é só de agora — é o efeito de inércia. Temos uma ordem das coisas que está montada. Há um comboio, apercebemo-nos de que há algures na linha um ponto de colisão, mas caminhamos aceleradamente para lá. Agora ficámos conscientes do problema, e até temos datas para a colisão. Agora parece que é 2030. É uma história antiga, a dos dez anos que faltam. A questão é: como é que travamos? 

E qual é a sua resposta a essa questão? 
Prende-se com a própria universidade. O que referi sobre a utopia moderna, como uma utopia tecnológica, necessita de um complemento. Podemos perguntar: qual é o problema de retirar da natureza alguma coisa que torne a nossa vida mais satisfatória? No século XIX, Auguste Comte dizia que tínhamos de olhar para a história da Humanidade de forma diferente. Até aí, estivemos na idade da conquista. Vinha aí a idade da produção. Antes aumentava-se a riqueza através da violência militar e da conquista. A partir daí, dizia ele, poderíamos unir-nos — era europeísta — e não seria necessário fazer guerras com os outros. Retiraríamos da Natureza o que ela nos pudesse dar. O problema é o da justa medida, a questão dos limites. Não nos preparámos para a ideia de que poderia existir um limite intransponível. Se olharmos para o horizonte das produções intelectuais, continuamos nessa ideia de que a tecnologia vai resolver todos os problemas. Os alicerces da cultura moderna são pouco sensíveis à questão dos limites. Há uma espécie de cegueira programada. Hoje muitas universidades criam cegueiras programadas nos seus alunos. A Economia e a Gestão são disciplinas de cegueira programada, que significa olhar só em frente. A visão lateral é totalmente proibida. Significa que perdemos a sensibilidade, por exemplo, para as outras criaturas. A forma como dominamos o reino natural e vegetal, como consideramos isso recursos, é exemplo disso. Mas também não temos sensibilidade para a visão do grande equilíbrio, para essa ideia de que habitamos um sistema altamente complexo. Somos um elefante numa loja de porcelanas e não construímos mecanismos de humildade cognitiva. Não nos prevenimos e agora estamos em dificuldades. Existe consciência do problema, que se torna mais patente quando a opinião pública se manifesta. O fenómeno Greta Thunberg ou o Extinction Rebellion, que são transversais e globais, provoca um processo adaptativo do sistema político. Mas depois verificamos que não tem sustentação. O Green New Deal, proposto a 11 de Dezembro pela comissão de Ursula von der Leyen, não tem base orçamental para poder ter sucesso — a ideia de conseguirmos chegar a 2030 com menos 55% das emissões em relação ao ano de referência de 1990 é uma coisa titânica. Não digo que a senhora Von der Leyen não deve ser apoiada, mas é preciso dizer que essa promessa esconde obstáculos muito sérios. 

O obstáculo é apenas o pacote financeiro ou alguns países, como a Polónia, nem sequer se terem comprometido com as metas previstas? 
Aí temos de perceber como funciona a União Europeia (UE), com uma deficiência estrutural, que poderia ter sido corrigida depois da crise financeira de 2008. Porque é que não temos condições para realizar o Green New Deal? O orçamento da UE é 1% do Produto Interno Bruto (PIB) da União. Temos uma moeda comum, um Banco Central e um orçamento de 1%. Em contrapartida, os orçamentos nacionais são 46% [do PIB europeu total]. Não é só o orçamento que é insuficiente. Há outro dado importante. O plano plurianual para 2021-2027 que está a ser discutido prevê um ligeiro aumento para 1,11% do PIB europeu, mas continua a ser uma coisa irrisória. Os chamados países contribuintes líquidos, com a Alemanha à cabeça, são os principais adversários de uma mudança que seria absolutamente coperniciana no processo de construção europeia, que seria criar um orçamento a partir dos cidadãos. Ou seja, criar um orçamento a partir do IRS e do IRC. Uma parte desses impostos iria para o tesouro europeu. Isto criava um vínculo directo entre o cidadão e Bruxelas e criava, no fundo, um vínculo fundamental de cidadania. A cidadania faz-se através das pessoas a quem confiamos o nosso dinheiro. 

Mas tem consciência das resistências que isso também iria criar... 
Sim, mas a questão fundamental aqui é: porque é que os Governos não gostam de partilhar poder? 
A regra do federalismo no seu início é a elite. Não se pode ser governante em Bruxelas sem se ser poliglota, sem ter lido romances e conhecer outros países. Este é o grande problema que nós temos. Não é só o orçamento. E quando falo de orçamento, é numa perspectiva de mais fundos, de uma consciência política de que somos um conjunto, em vez de sermos uma união monetária de baixo custo. Evidentemente que é preciso dar dinheiro à Polónia. No ponto em que estão, não há outra maneira. Outra coisa seria dar um sinal de que estamos mesmo embarcados num projecto de União, que é um projecto orçamental, o que significa político. O orçamento deveria ser visto como etapa de um processo de contrato político para o futuro. Assim, temos uma moeda comum, uma união monetária e uma espécie de governo tribal que é o Conselho Europeu, onde todos são iguais, mas onde há sempre um que é mais igual do que os outros. Quando acontece qualquer abalo, temos a noção de que estamos juntos pelo euro. Mas é uma coesão negativa. É uma coesão feita não na base daquilo que podemos ganhar em conjunto, mas naquilo que vamos perder se nos separarmos. Há uma diferença fundamental nisto. É que se tivermos esse orçamento e o BCE com capacidade de, por exemplo, privilegiar as empresas nas áreas das renováveis e tudo o que tenha a ver com a agricultura sustentável, com mobilidade eléctrica, com modos de vida mais modestos, etc., juntamente com o Banco Europeu de Investimento, vamos ter acesso a uma coisa fundamental, que é o mercado financeiro. 

Na Academia, parece existir agora algum consenso — apesar de teses diversas sobre o assunto, claro — sobre o momento de urgência ambiental que estamos a viver. Mas tem vindo a sustentar que deveria haver uma posição crítica mais radical da parte da Academia. É correcto? 
O problema com a utopia moderna tecnológica é que o próprio conhecimento e a própria universidade se foram adaptando, digamos assim, à exigência de boas notícias. Além do mais, o modelo que nós temos de mercado — vivemos numa sociedade de hipermercado — acaba por ser o mais importante. Neste hipermercado em que nos encontramos, o conhecimento científico passou a ser também uma mercadoria. Por isso é que há rankings, diferenças de propinas ou cursos que são mais e menos cotados. Chegámos a uma altura em que já temos o conceito de universidade-empresa, ou seja, que tem de se viabilizar a si própria. E uma universidade não se viabiliza a si própria se não entrar nas regras do jogo da tal inércia, de que falava, em que estamos envolvidos. 

É essa mercantilização que não permite a tal crítica mais radical? 
Isso inibe os reitores e as lideranças das universidades. Partindo do princípio de que essas pessoas têm consciência do que se passa e concordam com esta narrativa (do que tenho dúvidas), inibe-as porque podem colocar em risco os financiamentos das universidades. Dou o exemplo de Rachel Carson, uma heroína da causa ambiental moderna. No livro The Silent Spring, de 1962, começou a fazer uma investigação sobre o combate às pragas na agricultura e chegou à conclusão de que 98% dos departamentos de agricultura que tinham áreas de investigação de combate a pragas, eram financiados pela indústria química. Só 2% é que estavam a investigar o controlo natural das pragas. Porquê? Não acrescenta um dólar ao orçamento do investigador, porque é feito com meios naturais. Em contrapartida, os outros projectos de investigação traziam dinheiro para os departamentos e investigadores. Existe um condicionamento modelado pelo mercado. E depois a universidade é fragmentada, não somos todos iguais. Há uma barreira que continua a existir, que é a barreira das “duas culturas”… 

Precisamos de uma visão mais transversal, no sentido de as diferentes disciplinas partilharem mais conhecimento entre si? 
Sem dúvida. A Academia tem de ser reorganizada. Temos de ter um Francis Bacon 2.0 que seja capaz de promover esse diálogo. Temos exemplos de projectos interdisciplinares. Faço parte de uma equipa em Lisboa, que há 11 anos tem um doutoramento em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. Que, coisa rara, começou por envolver três universidades públicas diferentes. Temos geógrafos, filósofos, sociólogos, físicos, químicos, engenheiros hídricos, biólogos, tudo isso. É um projecto interessante. Outro projecto global, tendente a vencer a barreira das “duas culturas” que têm dificuldade em comunicar, é o do surgimento de um cluster de ciências, de nome Ciências da Terra, que foi um esforço feito no sentido de criar equipas de trabalho que sejam capazes de transportar os diferentes saberes. Grande parte do que sabemos hoje de mais profundo sobre alterações climáticas e sobre crise ambiental vem de cientistas, equipas e centros de investigação que assumem claramente essa bandeira das Ciências da Terra. Onde estão pessoas da História, da Filosofia, mas também da Matemática pura e de outras áreas. Foi um esforço difícil. Muitas vezes isto é feito com custos para o investigador, porque a universidade é também um espaço de poder, é uma estrutura muito hierárquica, uma espécie de exército que tem tudo menos as baionetas e espingardas. Por vezes, a liberdade de espírito provoca ondas de choque. Julgo que neste momento a universidade tem de ter um sobressalto. 

Há pouco, dizia que os fundamentos da UE são mais económicos do que políticos. Será possível os modelos económicos actuais, onde a exploração dos recursos naturais vai prevalecendo, serem reenquadrados, acabando por falar a mesma língua da ecologia? Como é possível conciliar as duas coisas e criar algum tipo de equilíbrio? 
Essa é a questão que está contida desde o início da conversa. A questão do modelo económico. A economia é essencial. Somos criaturas que consumimos, que precisamos de um emprego, de descansar, de uma relação orgânica com o planeta. Como vamos reinventar uma economia que seja capaz de satisfazer as nossas necessidades, para termos aquilo que chamamos padrões de dignidade, e ao mesmo tempo não continuarmos com este modelo que semeia o deserto? É impressionante. Quando comecei a trabalhar nestas questões, nos anos 70, nunca pensei que chegássemos aqui. Nunca pensei que as alterações climáticas fossem tão rápidas. Nem eu nem ninguém. Pensava-se que a criosfera era mais resiliente, tal como a sensibilidade aos gases de estufa.  Na minha leitura modesta, temos de trabalhar com aquilo que sabemos e procurar caminhos que não conhecemos. Não vamos é por caminhos que já conhecemos e não levam a parte nenhuma. Haveria uma resposta clássica que foi tentada com as revoluções soviéticas. Seria dizer que o problema é o capitalismo e nacionalizava-se ou colectivizava-se todo o processo produtivo. Fizemos isso, em vários países, e o resultado foi desastroso. Mais dramático do que um Governo que não governa, é tornar-se totalitário e esmagar as liberdades e os direitos dos cidadãos. Se damos o máximo poder a um grupo de indivíduos, esse grupo de indivíduos age como máfia. Ou pior do que uma máfia, porque uma máfia move-se num ambiente onde há uma autoridade legal, onde há polícias e tribunais. 

Em alturas de grandes transformações, a tentação é regressar a uma espécie de passado idealizado, adquira ele formas neo-socialistas ou fascistas, como se tem constatado. É uma forma de distracção do verdadeiro problema? Ou impotência em criar verdadeiras alternativas? 
As duas coisas. É o retorno do recalcado, em termos psicanalíticos. Temos uma situação de tensão crescente. Quem procura ver a cortina do tempo, o que vê? Um mundo cada vez mais complexo, que precisa de coordenação. Um mundo politicamente e socialmente cada vez mais descoordenado. Quando falamos do clima e do ambiente, fala-se muito nos tipping points para a criosfera, quando é que se torna irreversível o degelo, etc., mas também existem tipping points políticos e sociais. Aqui está a questão central. Este retorno do recalcado fere a possibilidade de nos encontrarmos e de criarmos uma resposta adequada. Será que podemos criar um modelo de uma economia simbiótica? Uma economia que se integre no habitat de forma duradoura. O que defendo consiste em retomar um pouco o fio à meada e recordarmo-nos daquilo que aconteceu nos anos 1930, com o primeiro Deal [o New Deal de F D. Roosevelt]. A experiência americana foi importante e tem enorme actualidade, criando limites à possibilidade da prepotência política, do despotismo, da tirania. Precisamos de criar medidas constitucionais para impedir a tirania económica das grandes corporações. Isto é fundamental. Se as grandes corporações não forem limitadas, controlam os Governos. No Congresso americano, cada senador que lá está, cada membro da Câmara dos Representantes — com algumas excepções —, nós sabemos quem paga as suas campanhas. Eles próprios o declaram. Estão ao serviço não tanto de um Estado, de uma circunscrição eleitoral, mas de companhias, de empresas, que lhes fazem as leis que eles depois defendem, não é? 

Como se sai daí? 
Na Europa não é diferente. Sabemos como é que as grandes empresas controlam parte do processo legislativo português através dos escritórios de advogados, que são os testas-de-ferro dessas empresas. Como é que se sai daqui? Em vez de uma luta para acabar com o capitalismo, temos de tentar ter o controlo político da política económica, esta é que é a questão. Em vez de termos uma economia que controla a política, temos de ter uma política que controle a economia. É importante que a democracia se torne mais robusta e que as rédeas da política económica sejam recuperadas pelos programas e decisões que são tomadas nos debates políticos que levam à formação de Governos. Ou seja, é preciso mais consistência entre as palavras e as medidas concretas por parte dos Governos, utilizando a mola fundamental do capitalismo que temos hoje — e que é o capitalismo financeiro (os fundos de investimento, os fundos de pensões, os fundos nacionais e de capital de risco), que é uma criatura que corresponde aos animal spirits, um sector absolutamente voraz, porque precisa de se reproduzir, mas está na estratosfera. Não está ligado a nenhum sector económico de preferência, porque estamos a falar de reservas de capital, através de poupanças de países. No fundo, o que estou a dizer é que não há nenhum caminho real ou uma solução “eureka!”, mas sabemos por onde é que não devemos ir. Não devemos ir para uma situação em que o capital, os sectores industriais e o capital financeiro continuam a manipular Governos. A questão da integridade dos dirigentes políticos é um aspecto fundamental, o combate à corrupção deveria ser prioridade, e a imprensa tem um papel fundamental nisso. Um político corrupto não é aceitável. A partir do momento em que um político aceita fazer um favor a uma empresa, essa pessoa nunca mais vai fazer nada na política. 

Diz que as questões ambientais são muito políticas. Às vezes fica-se com a ideia de que os activistas ambientais resistem à política mais clássica. Ou seja, é como se recusassem um papel que têm de ocupar se quiserem operar as tais mudanças... 
Na génese do que chamamos o movimento ambientalista temos o convívio entre duas tendências, que não são forçosamente inimigas. Por exemplo, na Alemanha, independentemente da existência de grandes associações de defesa do Ambiente não-partidárias, temos o partido Os Verdes, que em 1983 entra no Bundestag. Consegue passar a barreira do direito eleitoral e constitucional dos 5% e, desde aí, com excepção de uma legislatura, tem tido sempre [representação] e neste momento aparece potencialmente como o segundo partido mais votado. E é um partido que continua a manter no centro nevrálgico da sua política um programa ambiental. Se algum dia forem Governo federal, temos aí uma hipótese de fazer uma reforma na união monetária no sentido que eu disse. Não porque exista um grande consenso na liderança dos Verdes alemães, mas no sentido que a realidade vai obrigar a isso. Ou eles fazem essa mudança ou então mudam de programa. Em Portugal, sempre defendi que as questões ambientais traziam uma novidade tão grande que seria muito importante que o movimento fosse, do ponto de vista político, mais transversal. Devíamos criar uma espécie de consenso ambiental. Apresentar as questões ambientais como prévias, como condições de possibilidade para a política. Se vamos partidarizar estas questões, estamos a perder tempo. E a aposta que fiz no final dos anos 70, e nos anos 80, foi dar uma orientação mais abrangente e eficiente. Não no sentido de ser contra os partidos. Mas no sentido de que os conhecimentos que é preciso partilhar não podem ser impedidos de fluir porque chegamos ao pé um do outro já com um 8 carimbo competitivo. Trocávamos a possibilidade de transmitir a mensagem pela possibilidade de partilhar lugares no Parlamento. Hoje a política é um instrumento frágil. Mas é o que temos. Se alguém tiver outro, que o diga, porque nós precisamos dele. Agora precisamos da política e de cidadãos activos. Precisamos da vigilância da cidadania. O que é difícil. 

Consegue nomear um político que incorpore os valores que tem referenciado ao longo da conversa? 
Já não estão no activo, o Carlos Pimenta e o Jorge Moreira da Silva. Curiosamente da mesma área política, do centro-direita. Ambos podiam estar aqui a conversar sobre estes temas com conhecimento de causa. O Jorge Moreira da Silva até chegou a ser ministro num Governo esquisito, mas, pronto, ninguém é perfeito. Não concordamos em tudo. Ele tem um calendário mais dilatado. Acha que a situação é grave, mas está também muito ligado às questões do combate à pobreza, que é importante, e ele tem razão, isto está tudo ligado. 

Temos estado a falar da Europa, mas como ultrapassamos a resistência de alguns países, quando vemos um Trump negacionista ou a China a planear minas de carvão, e quando se sabe que a emergência ambiental só pode ter uma solução global? 
Estamos de facto numa crise climática estrutural e duradoura. No caso dos EUA, tivemos o Obama antes do Trump e, na minha perspectiva, o pouco que se conseguiu neste domínio no tempo do Obama talvez me preocupe mais do que o que não se está a conseguir com Trump. Porque mostra a profundidade de resistência do sistema político-económico. Obama sabia o que tínhamos pela frente. Achava que era a grande questão. E a sua falta de progresso, apesar de tudo o que fez, mostra que, mesmo quando Trump se for embora, temos ali, de facto, um problema. A América tem a seu favor o sistema constitucional, mas as mudanças também se poderão fazer através da sociedade civil, do movimento associativo, e através das empresas que percebem que se a crise ambiental se agravar, o mercado entra em colapso. Se a UE fosse capaz de assumir uma posição de liderança, pressionando e forjando uma aliança táctica com a China para conseguir concessões dos EUA em matéria climática, seria uma boa estratégica. 

Mas a China faz parte do problema, ainda que de maneira diferente... 
É, de facto, diferente. As emissões actuais da China já incluem uma décalage. São menores porque foi tomado um conjunto de medidas, que passam pela política energética. Por exemplo, na tecnologia fotovoltaica, ou em centrais eólicas. E não têm feito mais porque há questões de propriedade intelectual, de transferência de tecnologia, que implicam direitos e tudo isso. E também têm essas emissões porque se tornaram a fábrica do mundo. Queixamo-nos do risco de investimento chinês, mas ignoramos que o investimento americano e europeu na China é, segundo dados do ano passado, dez vezes o investimento respectivo da China nos EUA e na Europa. Fizemos um processo de 9 deslocalização para a China. Uma parte importante desses 23% de emissões a menos na Europa [em relação a 1990] não se devem a melhorias de eficiência energética, deve-se à deslocalização empresarial. Continuamos a consumir esses produtos, mas as emissões são registadas lá, porque transferimos para a China [a produção] desses produtos. Desde há muito que o Governo chinês tem consciência do carácter politicamente disruptivo da crise ambiental. O que mais custa — e mostra como a ideologia cega as pessoas — é não se perceber como muito antes de um colapso ambiental e climático nós teremos um colapso societal e político. É mais provável termos uma guerra de grandes proporções do que assistirmos, ainda como sociedade organizada, a uma subida do nível médio do mar de dois metros. Antes do mar subir dois metros, que subirá, poderemos ter um processo de implosão. 

No curto prazo? Porque, como ainda há pouco dizia, os cenários sobre os quais falamos é sempre de dez ou 20 anos. E são já aqui à porta... 
Pois. A questão é que, por exemplo, se os dados da criosfera confirmarem que podemos chegar ao final deste século com dois metros [acima do nível médio do mar], vamos ter problemas humanitários. Não há capacidade instalada nem sequer nos países desenvolvidos... 

Como é que alguém que olha para esta questão na forma de transformações tão colossais olha para o discurso de responsabilização individual? É possível os cidadãos, através de pequenas mudanças, fazerem a diferença? 
A mudança dos padrões de consumo ou de estilos de vida é importante do ponto de vista ético. Estamos a falar de uma crise que é política, mas também é uma crise de identidade. Perante a ideia do colapso, a responsabilidade das gerações às quais pertencemos, [elas] vão ter de defender o futuro das próximas gerações, mas também o passado. Numa sociedade que entra em colapso, também desaparece a memória. Já disse num artigo que estamos a defender a poesia clássica, Homero. Numa sociedade de colapso ambiental e climático, ao fim de dois anos já ninguém sabe quem foi Homero. Neste presente estamos a defender a possibilidade de futuro e de um futuro que tenha memória para o passado. E isso implica termos a capacidade de olhar para nós e perguntarmos o que é que queremos da vida, aonde é que vamos buscar felicidade. A pergunta tem outra resposta também. O cientista Michael Mann, numa entrevista que deu há uns meses, dizia que o negacionismo estava também a encontrar um caminho de desvio para a eticização das questões ambientais. Isso acontece quando dizemos que os nossos comportamentos individuais são a causa fundamental e desviamos a questão das políticas de fundo. Quando dizemos a alguém: “Tem de andar menos de avião”, porque não dizer: “Temos de acabar com as isenções e subsídios fiscais à aviação”? É por aí? Então os instrumentos de mercado não funcionam para isso? Por exemplo — e isto é um dado pavoroso —, em 2017 a UE deu subsídios aos combustíveis fósseis que correspondem a quase 2% do PIB europeu. Isto é um escândalo. 

E continuam a faltar medidas concretas para acabar com esses subsídios... 
Não se acaba com isso. Como é que é possível o orçamento de uma união monetária ser inferior aos subsídios aos combustíveis fósseis? E ainda por cima temos os mercenários dos combustíveis fósseis nos jornais, a escrever artigos e a criticar os subsídios às renováveis. 

Que avaliação faz de como Portugal está a reagir a esta crise climática? Como é que enquadra, por exemplo, a questão do aeroporto do Montijo nessa reacção? 
Há um processo assimétrico. Do ponto de vista da diplomacia ambiental, aparecemos sempre do lado certo. Por outro lado, as opções que foram tomadas no passado, nomeadamente no Governo Sócrates — o que mostra como a realidade é complexa, uma figura que causou tanto dano ao país — fez com que se avançasse nestes domínios. Já o Governo da troika colocou as questões ambientais completamente de lado, basta analisar o programa de aumento das explorações extractivas mineiras. É claramente uma política de terceiro-mundo, abrir o sector primário do país às formas mais extractivistas de capitalismo. As autorizações para explorar combustíveis fósseis em Portugal só estão a diminuir por causa da sociedade civil. Como no caso de Aljezur. Aquelas empresas perceberam que havia um risco reputacional e saíram de campo. Agora, penso que há falta de coerência. Há dois ou três casos. Um é o aeroporto do Montijo, que é uma situação complicada porque o problema no fundo é também a Portela. Com isto vamos continuar a ser uma das poucas capitais europeias com um aeroporto no centro da cidade com todos os inconvenientes e riscos que isso tem. Depois existem todas as razões ambientais e de segurança que militam contra a opção firmada. Vamos ter um grande investimento que vai aumentar as emissões e não aproveitamos outros equipamentos aeroportuários que o país tem, provavelmente porque a empresa que controla os aeroportos portugueses é poderosa e trata-se de uma negociação difícil. Talvez o Governo tenha uma margem de manobra negocial limitada. Depois outro projecto de dilapidação de recursos públicos e fortes impactos ambientais são as dragagens que estão a acontecer no estuário do Sado, que não têm qualquer justificação económica. E também a questão do lítio. É a utilização de um argumento de mobilidade eléctrica para não respeitar um conjunto de regras e de ordenamentos do território, nomeadamente de protecção dos solos aráveis. Portanto, aquilo que há a fazer é saudar os aspectos positivos do Governo e criticar os negativos. Agora, não daria uma nota muito alta. A coerência é importante. E sobretudo mostra que o horizonte de governação é de curto prazo. Não é só o Governo, a oposição também. O debate sobre [o preço] a electricidade é um exemplo típico. Do ponto de vista da sociedade civil, penso que também não estamos muito sintonizados. Do ponto de vista das associações ambientais, estou muito triste por ver que a associação que dirigi durante três anos [a Quercus] está envolvida em escândalos. É uma tristeza ver que uma associação ambiental tem o Ministério Público a investigar a possível má gestão de fundos pelo presidente que foi 11 para lá em 2015. Não bastava termos corrupção onde o poder puro e duro existe, agora também numa associação que devia ser exemplo de generosidade cívica. 

Entre o seu pessimismo e optimismo, fica a dúvida. Acredita que vamos ser capazes de ultrapassar a emergência actual ou a tarefa é demasiado grande e são demasiados os obstáculos? 
Terminava com o triângulo, que é uma pequena teoria que me custou a construir e que acho serena. A questão do futuro, do optimismo e pessimismo joga-se em três tabuleiros. Um é o do conhecimento. Tudo o que conhecemos hoje aponta no sentido da dificuldade. Se apenas dependêssemos do conhecimento, seria pessimista. Outra coisa é o que nós não conhecemos. O que nós não conhecemos não é só a ignorância, não depende só da nossa finitude e imperfeição. Depende também da riqueza e complexidade do mundo. O mundo pode ter surpresas. Depois temos o terceiro tabuleiro e aí só depende de nós, que é aquilo que podemos fazer. Qual o lugar e posição que temos neste drama existencial. Ao mesmo tempo é uma época extraordinária, todos nós podemos ter significado. É uma época em que não há razões para tédio. Estamos todos envolvidos nestes desafios gigantescos. Não há qualquer justificação para não fazermos o que tem de ser feito. Diria que quanto mais um tabuleiro é pessimista mais o outro tem de ser reforçado. Mas acredito muito neste [o que pode ser feito]. Em 1985 publiquei um livro chamado Europa: o Risco de Futuro que era sobre a possibilidade de uma guerra nuclear na Europa. Tínhamos uma situação análoga. Com o que conhecíamos da História, o cenário de uma guerra nuclear era provável. Há uma altura em que um dos lados fica mais fraco, neste caso a União Soviética, e pensou-se que poderia acontecer aí. E aconteceu o Gorbatchov, uma coisa miraculosa, que não estava no programa. Pouco tempo depois, África do Sul. Desafio-vos a procurar artigos optimistas sobre o futuro da África do Sul. O consenso académico era: “cai o Governo do apartheid e temos uma guerra civil racial”, com quatro milhões de brancos, que são africanos, contra 21 milhões de negros que foram escravizados e que vão lutar para deixarem de o ser. Vai ser um massacre. E apareceu o Nelson Mandela. Claro, isto não é bem a mesma coisa, mas a verdade é que vale sempre a pena lutar.

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