Vamos falar de double Irish, sanduíches holandesas e single malt. Graças à Iniciativa Liberal (IL) — partido que defende os paraísos fiscais — mergulhei no estranho mundo dos esquemas inventados pela Irlanda para as multinacionais americanas fugirem aos impostos.
Carlos Guimarães Pinto, fundador da IL, respondeu ao coffee break da semana passada (A Irlanda é um paraíso fiscal — sim, os números mentem), informando ser ele o autor do “autocolante” que recebi no WhatsApp a enaltecer a economia irlandesa. Agradeço o cuidado e a sobriedade do debate. Mas na sua carta Guimarães Pinto ignora a questão central: os paraísos fiscais não são um exemplo a seguir. Dito ao contrário: os paraísos fiscais são maus exemplos. Dito ainda de outra forma: até o actual governo irlandês reconheceu em Davos que “as empresas devem pagar os impostos que devem, na íntegra e onde são devidos”. Ou dito simplesmente assim: os paraísos fiscais são feitos de uma massa esquisita, que junta falta de ética, desfaçatez e egoísmo.
Caro leitor: se googlar dois minutos verá que não estou sozinha. Comigo estão muitos políticos de direita e de partidos democratas cristãos. Percebe-se: fugir aos impostos tem pouco de cristão. E fazer o pino para pagar menos do que os outros em iguais circunstâncias tem pouco de democrata.
Porque será que os líderes irlandeses passam a vida enredados em tecnicidades — nos media, nos fóruns internacionais e nos tribunais — a tentar desmentir o óbvio? Será vergonha?
Desde 1956 que a Irlanda tenta atrair investimento estrangeiro reduzindo os impostos, mas logo em 1956, Erskine Childers, ministro e depois Presidente do Fianna Fáil — de direita e democrata-cristão — pôs em causa a ética do novo regime fiscal, dizendo que era “de prever que um certo tipo de investimentos feitos aqui vai ser de carácter fugitivo”.
Já agora: há 65 anos que sucessivos governos irlandeses cortam impostos para atrair empresas estrangeiras, mas a curva de que os liberais gostam — o crescimento do PIB — só levantou voo em 1993, quando foi criado o mercado único europeu. Não tem nada a ver?
Não sei. O que sei é que quando pomos uma lupa em cima da Irlanda vemos 30 anos de “técnicas BEPS”. BEPS desdobra-se em “base erosion and profit shifting” que, como o nome diz, se refere à erosão dos impostos (como a erosão costeira) e à deslocação dos lucros (entre países). Na prática, as multinacionais “deslocam” o lucro do país onde faz o negócio para a Irlanda, onde os impostos “empresariais” são mais baixos. Com jeitinho e ajuda da Holanda, o lucro vai daí para um offshore e regressa a uma segunda empresa na Irlanda sem, no trânsito, pagar um cêntimo de impostos. O requinte da sanduíche holandesa — o Double Irish with a Dutch Sandwich — incluía aproveitar uma facilidade da lei holandesa sobre pagamento de direitos de propriedade intelectual a offshores.
Na Irlanda, o IRC é 12,5%. Só há 21 países ou regiões com um IRC menor. Desses, 10 têm um IRC abaixo de 10% (Madeira, Andorra, Gibraltar, Kosovo, Quirguistão, Mongólia, Paraguai, Quatar, Canárias e Virgin Islands americanas) e 11 têm um IRC de 0% (Virgin Islands britânicas, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Estónia, Jersey, Isle of Man, Bahamas, Bahrain, Barbados, Bermudas e Ilhas Cayman). No seu guia sobre impostos, a PwC lista 81 “países, territórios e regiões que oferecem um regime fiscal mais favorável”. A Irlanda não está incluída. Não sei se sempre foi assim, mas o contabilista a quem se atribui a invenção do double Irish é Feargal O’Rourke, partner da PwC Irlanda desde 1996 e seu presidente desde 2015.
O “duplo irlandês” é a técnica BEPS que ficou célebre quando a União Europeia acusou a Irlanda de ter dado “benefícios fiscais ilegais à Apple”, ordenando a empresa a pagar 13 mil milhões de euros, equivalente aos impostos que não pagara ao Estado irlandês entre 2004 e 2014. A Apple ganhou e Bruxelas recorreu. O caso continua aberto.
A Apple foi a cereja em cima do bolo. Durante 30 anos, o “duplo irlandês” explorou a diferente definição de “residência fiscal” das empresas que havia na Irlanda (era onde estava o controlo da empresa) e nos Estados Unidos (era onde estava a sede fiscal). Como funcionava? Explica o Financial Times: a propriedade intelectual ficava numa empresa cuja sede fiscal era na Irlanda, mas que era controlada nas Bermudas, onde o IRC é 0%. Qual era o problema? “As duplas estruturas irlandesas permitiram às multinacionais americanas ‘estacionar’ um bilião de dólares [milhão de milhão] em paraísos fiscais.”
A boa notícia: após ser investigada, a Irlanda desfez o vazio legal. Depois de 30 anos a passar pelos pingos da chuva, o double irish foi declarado morto a 1 de Janeiro de 2015. Com um asterisco: quem estivesse a usá-lo, teria até 2020 para corrigir o caminho.
A má notícia: mal o “duplo irlandês” foi enterrado, nasceu o single malt. Guimarães Pinto diz na sua carta que não incluiu 2015 nas contas do seu “autocolante” para “não enganar o leitor”. “Seria enganador incluir” o “milagre” de 2015 — o ano em que a Irlanda cresceu 26,5%. O fundador da IL explica que “é comum no caso da Irlanda olhar-se para o PNB”, “que corrige efeitos dos lucros das multinacionais que não ficam no país”. E faz as contas: se tivesse usado o PNB, mostraria Portugal a crescer 8,6% e a Irlanda 16,4%. Fico a pensar: se Guimarães Pinto sabe tão bem como os números da Irlanda estão cheios de ratoeiras, porque é que os usou? Ou porque não usou o PNB? Fico também a pensar que se tivesse incluído os 26,5%, o “autocolante” teria a Irlanda a crescer 51% e isso era demais, ninguém acreditaria, não é?
Segundo problema: 2016 foi um ano normal, mas os foguetes de 2015 continuaram a cair. Até hoje. Além disso, o single malt, que é quase igual ao double Irish, já terá sido usado por pelo menos três gigantes: a Microsoft (LinkedIn) e a Allergan em 2017, e a Teleflex em 2018.
Pus-me a imaginar um “autocolante” diferente, usando números oficiais:
— Desemprego em Novembro de 2019: Portugal 6,7% — Irlanda 4,7%
— Desemprego em Novembro de 2020: Portugal 7,2% — Irlanda 7,5%
— Índice Economia Global Verde ou PIB Verde: Portugal 16.º — Irlanda 33.º
Se o desemprego ou a sustentabilidade não eram a sua prioridade, Guimarães Pinto podia ter pelo menos referido que em Portugal só 56 empresas pagam os 31,5% de IRC que destaca no “autocolante”, o que representa 0,02% das empresas com lucros. Ou podia ter dito que na Irlanda só há dois escalões de IRS (20% e 40%), o que faz com que uma pessoa solteira e sem filhos que ganha por ano 35.301 euros — um cêntimo acima do ponto a partir do qual se sobe de escalão na Irlanda — paga 40% na Irlanda. Mas em Portugal pagaria 37%. Por isso não interessa.
Elogiar a economia da Irlanda sem reconhecer que a origem dos números vem da falta de ética da sua política fiscal é inútil para debater a Irlanda e, muito menos, o futuro de Portugal. E nem falámos de outra coisa óbvia: americanos e irlandeses falam a mesma língua. Inglês. Hoje há 33 milhões de americanos — 10% da população — que se identificam como irish. Isso é capaz de ajudar.
Podia ignorar a história, a cultura e a política dos últimos 100 anos e fazer um “autocolante” a dizer que Portugal é melhor do que a Suécia. Imaginem:
— Taxa de desemprego antes da pandemia: Portugal 6,7% — Suécia 6,8%
— Taxa de desemprego após a pandemia: Portugal 7,2% — Suécia 7,7%
— Crescimento do PIB em 2019: Portugal 2,2% — Suécia 1,3%
— Casos totais de covid-19: Portugal 636.190 — Suécia 556.289
— Mortes por covid-19: Portugal 10.469 — Suécia 11.247
Está a ver onde isto nos leva? A 28 de Janeiro, Portugal tinha mais 79.901 casos de covid, mas menos 778 mortos. O nosso SNS é melhor, viva! Ou será outra coisa? Talvez. No dia seguinte, era o contrário. E o que fazer com o 1.º lugar da Suécia no índice da economia verde? Afinal eles são bons?!
Os “autocolantes” de consumo rápido servem para quê, senão intoxicar?
Foi anunciado há dias que Guimarães Pinto é o presidente do Instituto +Liberdade, um novo think tank criado para, entre outras coisas, “fomentar a literacia económica e financeira”. Ideia magnífica. Esperam-se “autocolantes” à altura.
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