sexta-feira, 2 de julho de 2004

Entrevista: Grande Nuno Grande


Nuno Grande numa entrevista na 'a Página'- Imaginem este texto data de 1998 e que Grande actualidade e que Grande visionário. No entanto, contra todos os seus avisos há tanto Estrago na Educação!! Transcrevo na íntegra porque esta entrevista é UMA AULA VIVA

A ESCOLA DEVE AFIRMAR-SE COMO UM CONTRA-PODER

NA ESCOLA NADA DEVE SER PREVISTO

A DOCÊNCIA É ACTIVIDADE SOCIALMENTE SUBESTIMADA


Nuno Grande dispensa apresentações. Figura emblemática do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), pró-reitor da Universidade do Porto e membro da Associação Europeia de Educação Médica, entre tantas outras referências, o convidado de 'a Página' é um comunicador por excelência, como se pode confirmar no relato de uma conversa que se pretendia orientada pela temática da educação.

Partindo do princípio que as sociedades atravessam uma fase de globalização, nomeadamente pela mundialização das comunicações e da economia, e que, paralelamente, se levantam novos problemas (ambientais, laborais, etc.) e se registam notáveis progressos científicos, pondo em causa valores e princípios civilizacionais, em que medida é que esta situação se implica nas questões da educação?

NG - É óbvio e evidente que tudo tem que ver com tudo. Tudo o que se passa à nossa volta acaba por nos influenciar, modelar e, de certa maneira, educar. Eu penso que o processo educativo é um processo permanente - nunca ninguém está completamente educado, nem completamente formado; até ao último momento da existência, há sempre coisas a fazer, a aprender, a modificar.
No sentido positivo, o que me impressiona na sociedade moderna é já não haver limites do ponto de vista dos temas que a sociedade debate. Sou suficientemente velho para me lembrar que havia temas apenas discutidos por certas elites, ou que só elas tinham acesso à informação necessária para os discutir. Hoje, essa barreira está ultrapassada. Com a globalização de que falava, não há temas exclusivos de elites, de pessoas especiais; toda a gente tem acesso a todas as formas de informação. A mundialização da informação vai (e está a faze-lo) modificar radicalmente as relações sociais e, consequentemente, as relações educativas.
Mas eu penso que isto tem, também, uma parte negativa. Se relacionarmos o saber com o poder, quem hoje tem mais poder continuam a ser as sociedades em que o saber é formulado e desenvolvido - o saber técnico especialmente. Lembro-me que uma das afirmações mais importantes na Constituição americana foi proferida por Thomas Jefferson: só é livre um povo que constrói o seu próprio saber. Isto tem uma implicação - com a tal mundialização do saber, nós absorvemos muita coisa que vem de outras culturas, sem criticar e sem procurar saber se a nossa cultura não teria alguma coisa a dizer em relação a esses saberes.
Eu creio que isto vai passar, que é um momento de transição e vamos ver que um grande número de culturas que hoje estão aparentemente uniformizadas vão começar a identificar-se, a tornar-se obviamente diferentes, criando os seus próprios saberes e, portanto, os seus próprios poderes. É um processo muito dinâmico. Sem nos darmos conta, vivemos uma autêntica revolução educativa permanente. Tudo está em mudança, dos hábitos aos valores, e, consequentemente, penso que este momento é uma espécie de laboratório cultural para alguém que está ligado à educação e quer contribuir para essa mudança.

Essa perspectiva da relação saber-poder recorda-me uma intervenção de Bruto da Costa, aquando de uma Presidência Aberta de Mário Soares em Setúbal, segundo o qual, ser pobre é estar destituído de poder, de poder de participação, de poder de decisão...

NG - Estou absolutamente de acordo. Há bastantes anos atrás, escrevi uma coisa - que na altura causou alguma controvérsia - no sentido de que só há uma forma de subdesenvolvimento, que é o subdesenvolvimento educativo. Os povos, por mais naturalmente ricos que sejam, serão sempre subdesenvolvidos se não forem capazes de utilizar essa riqueza natural em favor da promoção do Homem e do cidadão.
De facto, o pobre é sempre um inculto - no sentido da cultura técnica - e nós temos que lutar contra isso, porque não contribui para o equilíbrio da humanidade haver povos educativamente desiguais, profundamente desiguais como acontece hoje. Porque os que elaboram o saber estabelecido e o saber oficial são os que comandam, segundo interesses muito restritos e orientações que nada têm que ver com a paz e com a justiça social.

E é verdade, também, que arquitectam o edifício do saber à sua própria imagem, numa espécie de 'etnocentrismo cultural'...

NG - Neste caso, mais de etnocentrismo educativo. Porque as culturas acabam por se impor nem que seja marginalmente, em pequenos nichos que, muitas vezes, se manifestam contra o pensamento dominante e não conseguem sair da sua marginalidade. Ainda que haja algumas expressões dessas culturas muito fortes e que são capazes de vir a criar zonas de atrito e de tensão, mais do que de conflito. Mas eu acredito, volto a dizer, que estamos numa época de transição. Que estamos a assistir a uma grande mudança, no sentido da recuperação de alguns valores e referências que fizeram a civilização a que pertencemos.
Há dias, ouvi ao professor Daniel Sampaio uma coisa que me agradou muito. Ele dizia que já tinha visto o 'Titanic' três vezes, para tentar perceber porque é que o filme teve tanto êxito entre os adolescentes e concluiu que é por contar uma história de amor romântico, que se sobrepõe ao desagregar de uma estrutura inteira que vai afundar-se. Bom, eu ainda não vi o filme, mas acho que este êxito tem que ver com isso; acho que hoje há um regresso a valores educativos, uma necessidade de nos sobrepormos a interesses que têm o lucro como dimensão e que não olham a meios para atingir os seus fins. O processo educativo tem que remar contra essa maré, contra esse poder.

E como é que a Escola pode responder a esse desafio? Acha que ela está a dar conta do recado?

NG - A Escola só tem sentido se se afirmar como contra-poder. A Escola tem que ser alguma coisa que vá à frente das ambições do poder, e não a reboque. E o que tem acontecido é que tem andado a reboque. Quer dizer, a Escola é sempre a tal resposta bem arquitectada de quem tem o poder e o quer conservar.
Não é de agora, tem sido sempre assim. E quando consegue sair dessa postura e tornar-se, de facto, um fórum de elaboração de pensamento, de discussão de ideias, de regresso a referências de outro tipo, a Escola torna-se revolucionária no verdadeiro sentido do termo. Por isso os poderes constituídos não querem essa Escola, e nós vemos que, normalmente, quando a Escola aparece a reivindicar correctamente novas orientações, o faz à margem do sistema estabelecido; são escolas consideradas marginais por isso, gente estranha que defende coisas que não as que estão na lei ou no pensamento de quem domina.

Essa atitude revolucionária e essa mudança paradigmática implicam, para além de alguma vontade política, uma consciencialização dos profissionais que estão na docência, talvez mesmo uma outra profissionalidade docente...

NG - Exactamente, e eu acredito que os agentes sociais de todos os grupos, e de modo particular os professores, vêm assumindo a consciência de que têm um poder que até agora não sabiam que tinham.
É muito curioso assistir à evolução de algumas ideias. Por exemplo, hoje fala-se cada vez mais na necessidade da democracia participativa como processo de desenvolvimento. Em 1986, estive envolvido no movimento de apoio à candidatura presidencial da engenheira Pintasilgo e um dos padrões por que lutávamos era esse - fomos acusados de basismo, isto é, aquilo que era um apelo à participação dos cidadãos no seu próprio processo de desenvolvimento foi entendido como basismo no sentido negativo da palavra; hoje, já não há ninguém que lhe chame assim, todas as pessoas acham que se a democracia não for verdadeiramente participativa não existe.
Bom, eu acredito que alguma coisa de novo vai acontecer num prazo de não sei quanto tempo, mas que será breve. Os intervenientes neste processo (alunos e professores) vão ter que se tornar cúmplices, e vão faze-lo na busca de soluções para os problemas com que se vão defrontar enquanto pessoas e enquanto cidadãos. Enquanto não for assim, enquanto o professor estiver de um lado e os alunos do outro e esta cumplicidade não for conseguida, o poder estabelecido continuará a dominar a Escola.

Quando refere a cumplicidade entre professores e alunos, estende-a às famílias?

NG - Também, porque quando houver essa cumplicidade, ela traduzirá a consciência de que do outro lado está um sistema que habitualmente não tem referências personalizadas, que é cada vez menos personalizado - são as multinacionais, os programas internacionais...
Nós vivemos uma crise de líderes. O líder apareceu numa altura em que o poder se podia centrar numa pessoa (os hitlers, os salazares), mas hoje essas figuras deixaram de ser possíveis. Porquê? Porque o Poder está diluído nas máquinas de poder, que têm pessoas, mas que não têm cara própria. Ora, quando nós, cidadãos comuns, tomarmos consciência disso, vamos criar elos de cumplicidade que vão caracterizar o sistema educativo.
Há aqui uma coisa que a gente sabe hoje, é que nós já recebemos os alunos tarde, relativamente ao seu processo formativo. A partir dos 3 anos de idade, a criança tem todos os elementos para se definir enquanto personalidade, e, se assim é, recebê-los aos 5 ou 6 anos já significa um atraso. Ora, a cumplicidade tem de começar no seio da família. Da Família, que não é esta, mas de outro tipo, pelo seio da qual, muito provavelmente, passarão outros agentes sociais que com ela colaboram.

Defende, portanto, a existência de um currículo pré-Pré-Escolar, a desenvolver no seio da própria família...

NG - Exacto, na família e muito cedo. A instrução poderá começar a partir dos 5 anos, mas até aí há valores, atitudes e relações que a criança vai aprendendo e que têm de ser modeladas de alguma forma. Ela vai descobri-las sozinha, mas nós temos de ter um padrão de referência em que acreditemos todos, para que ela seja capaz de distinguir o que é bem e o que é mal, o que é verdade e o que é mentira; enfim, os valores que são intemporais e universais e sem os quais a civilização não tinha chagado onde chegou.
Eu acho que esse processo se deve passar na Família, mas é pedir demais a uma família em que pai e mãe trabalham até tarde, chegam a casa cansados e com problemas de toda a ordem e que têm de labutar para manter o equilíbrio mínimo no interior deste conjunto, que tenha, ainda, preocupação e tempo para mostrar a uma criança a diferença entre o bem e o mal, entre a verdade e a mentira. E isto tem de começar aos 3 anos!
Estes valores civilizacionais têm que voltar a ser ensinados na Família, no dia-a-dia; naturalmente, porque não precisam de cartilha nenhuma, basta a relação entre as pessoas ser nesse sentido.

Neste processo, há outra componente que parece estar hoje muito desajustada e que é a prática dos afectos no seio da família...

NG - Tudo passa por aí. Creio que foi o John Eckles, nos anos 20, que chamou a atenção para a importância dos afectos na formação, mesmo em termos de neurobiologia. Recentemente, o nosso António Damásio voltou a pegar na questão, mas na altura em que o Eckles encontrou o Karpov eles mostraram a importância que a relação humana tem na formação de cada um e nos conceitos que cada um tem de si próprio e do mundo que o rodeia. Mas o que todos pensávamos é que isso podia ser modelado a partir da idade escolar, e hoje sabemos que não, que aí já vamos encontrar valores estabelecidos, referências assumidas. Se não tivermos essa percepção, somos capazes de confundir mais uma criança, habituada a que determinado valor tem uma determinada referência que agora pode ser contrariada; a criança fica sem saber onde é que está a razão.
Por exemplo, houve o período em que o chamado castigo corporal era evitado para não traumatizar a criança. Hoje, sabemos que a traumatizamos muito mais porque ela esperava um castigo - evidentemente que não esperava uma violência, esperava um castigo; como não lhe era atribuído esse castigo, ela deixava de perceber o que é que estava certo e o que é que estava incorrecto; quando devia ter levado uma sapatada não levou, e depois, passados três dias, levou pela mesma razão. Este tipo de pequenas coisas, que constituem o quotidiano das famílias, tem hoje uma importância perfeitamente estabelecida relativamente à formação de cada um.

Referiu que se assiste a uma assimilação quase acrítica de informações provenientes de outras culturas, sem termos o cuidado de perceber se a nossa cultura tem algo a dizer em relação a esses saberes, periféricos ou mesmo longínquos. E que, nesta perspectiva, cabe à Escola fazer uma filtragem dessas culturas. A ser assim, não estaremos a pôr em risco o reconhecimento e o respeito pela diversidade?

NG - Pois, isso é o que tem sido feito até agora. O que tem sido feito é assumir os valores culturais de quem elabora os saberes, de quem tem a força e o poder...
Por acaso, estou a ler uma tese que vou ter de argumentar e que tem um título muito interessante - 'Da sardinha ao hamburger'. É um trabalho feito no sentido de pegar nas preferências gastronómicas de uma comunidade e, a partir delas, verificar que diferenças há entre os bisavós e as crianças de hoje relativamente à alimentação. E aí, felizmente, não mudamos muito. Mas o que vemos é que, progressivamente, os hábitos alimentares, e outros, de países que dominam a informação e a forma de publicitar os seus próprios hábitos e valores, começam a invadir a nossa cultura.
Aqui, a Escola tem o papel de dizer: 'Alto lá!, isto tem este sentido e isto tem aquele sentido'. Porque nós, enquanto educadores, não podemos assumir-nos como tendo a verdade absoluta na nossa mão. Como professor, fiz sempre um esforço de dizer aos outros aquilo que eu penso, afirmando que é aquilo que eu penso. Quando os alunos me perguntam que livro aconselho, eu digo sempre: 'A realidade e a natureza. O livro pode ser qualquer um, desde que te sirva apenas de instrumento para tu criticares o que vês. A educação é um processo de descoberta permanente, tu é que vais ver se isto é verdade ou é mentira; aquilo que eu digo na aula pode ser o meu ponto de vista e, por isso, ter muitas limitações'.

A meu ver, a Escola devia ter esta postura de abrir caminhos, de proporcionar descobertas. E, portanto, ao adquirir valores de outras culturas, confronta-los com os valores que assumimos e procurar estabelecer a tal diversidade, mostrando que isto é diverso daquilo, por isto ou por aquilo; que isto tem esta fundamentação e aquilo tem outra fundamentação.


Essa perspectiva remete, de novo, para a questão da ética profissional docente e, por extensão, para a formação de professores e para a sua (auto-)avaliação. Quer comentar?

NG - Aquilo que eu pressinto e percebo é que a docência é, mais do que nunca, uma actividade socialmente subestimada - vai para professor quem não sabe fazer mais nada; com raríssimas excepções, a maioria das pessoas quer um curso técnico e, não o tendo, ou não acedendo ao mercado de trabalho, vai para professor. Isto é uma completa inversão das coisas, porque o professor é o grande obreiro da estrutura do futuro.
Uma vez, visitava uma universidade americana e cá fora havia um pensamento do Emerson [Ralph] que dizia mais ou menos isto: o professor é o único profissional que se aproxima do divino, porque influencia tantas pessoas e gerações que ele próprio não é capaz de controlar. Eu percebi isto e fiquei um bocado aflito, porque aquilo que a gente faz e diz - o nosso exemplo - tem, de facto, uma importância enorme.
Ora, para se assumir esta responsabilidade tem que se gostar de ser professor e abraçar a docência com paixão. Mas é evidente que isto não se ensina; as pessoas vão para a docência por vocação e aprendem um certo número de estratégias para desenvolver a sua função. O que não é verdadeiramente certo é que isto se consiga contra a vontade, e como muitos professores o são contra a vontade não vão desempenhar bem a sua função; depois, estão metidos numa carreira que vão ter de cumprir exclusivamente com o objectivo de melhorarem a sua situação económica. Quero dizer, a carreira dos docentes, mesmo dos universitários, nunca é consequente a uma evolução pessoal; é sempre uma carreira para o grau imediato, em que se ganha mais e se tem mais poder - eu creio que isto é o retrato da formação dos docentes em quase todas as sociedades do mundo ocidental; é a competição que promove o desenvolvimento e não o desenvolvimento que leva à melhoria das condições.
Por mim, e tenho feito algum esforço nesse sentido, acho que vale a pena questionar permanentemente se aquilo que estou a fazer como professor ainda tem algum sentido, ou se já estou a mais. Como é que eu consigo avaliar isso? Testando as próprias relações com os meus alunos; em cada ano, procuro ver qual o grau de aproximação que consigo ter com eles, e por aí avalio se aquilo que estou a dizer, a postura que assumo, aquilo que sou, ainda tem algum sentido.
Não é este o sistema habitual de avaliação dos professores, e nós vemos alguns que atingem graus muito elevados na carreira e que nunca deveriam ter sido professores, porque não estão vocacionados para a arte de comunicar - é uma arte, mais do que uma ciência - e a gente vê que são pessoas, às vezes, com muito saber, mas que são repulsivas para os estudantes, que não se aproximam deles.
Acho que isto tem que ser repensado e revisto. Eu continuo a ter uma postura contrária à carreira universitária da forma como ela é feita. Acho que, de facto, os critérios utilizados na avaliação dos docentes são deficientes, que têm pouco a ver com a capacidade pedagógica e muito mais com a capacidade científica, com o prestígio que eles adquirem na sociedade e não com a função central, que é ensinar. É raro ver um concurso em que as características pedagógicas de um professor sejam salientadas; é um contra-senso, mas é assim, conta muito mais o número de trabalhos que publicou no estrangeiro, as revistas em que publicou.
Talvez nos outros graus de ensino não seja tanto assim, e haja outras formas de avaliar. Em todo o caso, não pressinto que sejam formas muito apuradas.

O processo de auto-avaliação que referiu, testando a sua aproximação aos seus alunos, deve permitir-lhe perceber para onde caminham os jovens de hoje...

NG - Essa questão é muito interessante, e eu tenho uma experiência curiosa.
Numa altura em que se diz que os alunos são piores, eu tive o melhor curso de sempre há cinco anos. Os rapazes que este ano se licenciaram em Medicina foram o melhor curso que eu tive em 41 anos de docência. De facto, nunca tinha tido um lote de 12 alunos de muito bom em Anatomia. E porquê? Porque foi possível que esses alunos progredissem quase independentemente de mim; no fim, disse aos meus colaboradores: 'eles são bons apesar de mim', foram capazes de encontrar caminhos e de questionar problemas.
Aliás, fizemos um conjunto de exames orais de grande qualidade - nós fazemos sempre exames orais, porque o exame tem de ser um acto relacional; o exame escrito, com as sebentas, não tem nenhum sentido; do exame final só são dispensados os alunos de suficiente ou os que chumbaram, os bons ou muito bons têm que o fazer.
Ora, isto acontece ao mesmo tempo em que sabemos - e eu como pró-reitor da Universidade tenho disso notícia diária - que há níveis de acesso muito baixos em termos de formação intelectual; mais de volume de conhecimentos do que de inteligência. Agora, o que me parece, e a minha pró-reitoria foi criada para estudar o problema do insucesso escolar, é que o sistema está totalmente desarticulado. Isto é, creio que a grande reforma a fazer era dar sentido vertical ao sistema, de maneira a que um aluno, quando chega ao primeiro ano da universidade, tenha os conhecimentos necessários para o fazer, e não, como acontece hoje, que saiba coisas que apenas serão úteis daí a três anos e não saiba nada do que deveria saber nesse ano, chumbando logo aí.
Há cerca de 10 anos, fiz um relatório em que procurei ver quais eram, na Universidade do Porto, as licenciaturas, anos e cadeiras que tinham maior insucesso escolar e cheguei à conclusão de que o aluno era tomado como se soubesse coisas que verdadeiramente ninguém lhe tinha ensinado. Era a partir desse pressuposto que o ensino era feito, e o aluno não percebia o que se estava a passar à sua volta.
E no que é que isto dá? Dá em que eles têm, provavelmente, pouco respeito pelo sistema em si. Eu acho que o aluno de hoje nos mede muito bem, nos conhece muito bem. E enquanto que o aluno do meu tempo respeitava o saber do professor, porque era um saber, como aconteceu comigo, que o acompanhava toda a vida, o aluno de hoje sabe que aquilo que o professor lhe disser no dia de trás já não é verdade no dia seguinte - basta carregar no botão da internete! Esta transitoriedade do saber pressupõe uma atitude, do lado do professor, de acompanhamento da mudança, e não o conflito latente entre um saber em transformação acelerada, a que o aluno tem acesso, e o saber do lente, que é estável.
Eu creio que os alunos de hoje, e ao contrário do que se tem dito, têm muito maior capacidade de análise do que saber; eles sabem pouco relativamente ao volume de conhecimento que deviam ter para estar na universidade, mas sabem que não sabem e sabem por que não sabem. É esta dialéctica que tem de ser estabelecida, a relação entre a universidade e os seus alunos tem de ser feita neste sentido: o que é que eles sabem, porque é que só sabem ou porque é que não sabem. E isto não tem sido conseguido.
Eu acredito muito nesta geração. Tenho uma grande esperança que venha a ser ela - e tem que ser, não há outra - a encontrar a relação entre os diversos componentes do sistema e a torna-lo mais lógico, mais útil.

Isso implica, também, a identidade das escolas, a cultura organizacional de cada estabelecimento. Essa ideia de cultura/identidade não estará um pouco arredada das nossas escolas?

NG - Claro. Está, mas esse não é apenas um problema português. Há, de facto, uma uniformidade de objectivos, quer educacionais, quer institucionais, que é assustadora.
Esta escola [ICBAS] tem procurado definir a sua própria identidade exactamente por ter sido a primeira em Portugal - e creio que ainda é a única - que é multidisciplinar e multiprofissional. Isto tem logo um aspecto de mudança muito grande, porque lado a lado sentam-se jovens que vão falar linguagens profissionais diferentes e que vão aprender as mesmas coisas em conjunto. Mas tem, além disso, o pensamento do professor Abel Salazar - que tem sido, de facto, um guia desta escola -, que dizia que um médico que só sabe medicina nem medicina sabe.
Nós temos procurado que os nossos alunos sejam nossos parceiros no desenvolvimento das diversas fases da vida da escola; eles têm os seus programas culturais, técnicos ou não, que desenvolvem com o apoio da escola, mas com completa autonomia, procurando os seus próprios caminhos. E há uma coisa lindíssima que é a semana cultural, em que eles fazem debates sobre problemas de todo o tipo, para os quais convidam especialistas que conseguem trazer de todo o mundo; fazem umas barraquinhas de venda de artesanato e trazem as pessoas que fizeram esse artesanato, desde a Colômbia a Angola. É uma iniciativa exclusiva dos estudantes, e nunca pediram um tostão à escola. São eles que realizam essa semana, ao mesmo tempo que são ëobrigadosí a organizar um congresso médico (os da medicina) ou de biologia aquática.
Esta tentativa de os chamar à acção directa na escola dá identidade à escola, e é esta identidade que temos estado todos a desenvolver. E eu quero dizer que estou a três anos e meio do fim da minha vida profissional e sinto uma alegria imensa porque já estou substituído; hoje posso perfeitamente ficar a dormir em casa, porque no meu departamento as coisas correm normalmente e a escola há muito tempo que quase não tem nada a ver comigo. Este ano, é a primeira vez que não estou num órgão directivo da escola, mas nos outros anos eu já estava muito colateralmente; estava como o velho do lado que ia dizendo [risos] assim uma coisas... De resto, foram os jovens que pegaram na escola e que estão hoje a dirigi-la: pessoas formadas cá e outras que, ainda que não formadas, vieram muito cedo para cá. Nós fomentamos que sejam os jovens a pegar nisto e a desenvolver a escola.

O que favorece uma maior mobilidade...

NG - Muito mais mobilidade! Mas sem essa mobilidade o sistema educativo não tem sentido, passa a ser um sistema muito militarizado, no sentido de que tudo está previsto.
Na escola tem que ser ao contrário. Nada deve estar previsto, a não ser o horário - e mesmo o horário, é só para não entrarmos dois na mesma sala.

Mas essa não parece ser a situação que se vive na generalidade das nossas escolas, públicas ou privadas.

NG - Não! Nas públicas não é, continua a haver um sistema rígido. Curiosamente, talvez menos rígido do que há 10 anos, mas continua a ser muito segundo o esquema aula teórica-aula prática-aula teórica, com programas pré-conhecidos e publicados, e não se pode sair daquilo. Nas escolas mais tradicionais, espera-se que as pessoas envelheçam nos graus académicos mais elevados, para depois tomarem conta da escola...
Há que mudar tudo isto! Hoje começa a haver alguma coisa, e por isso eu digo que estamos num período de transição. Há alguma coisa que começa... O aluno perdeu o receio da Escola, mas também corre o risco de lhe perder o respeito.
E é aqui, neste balanço entre o não ter receio da Escola, mas manter o respeito por ela, que reside a mudança necessária. É isso que temos tentado fazer no ICBAS, que o aluno sinta que está em sua casa, mas que há regras mínimas a cumprir por todos nós.

Para terminar, e voltando um pouco atrás, considera que a formação dos alunos até ao Secundário é inadequada às exigências universitárias ou é a Universidade que se sobrevaloriza, elevando o seu patamar de exigência?

NG - Não se trata de sobrevalorização. O que há, de facto, é uma desarticulação vertical do sistema, e muito provavelmente passa-se o mesmo entre o Secundário e o Básico.
Uma vez, como pró-reitor, reuni vários colegas que tinham índices de insucesso escolar muito altos e um deles disse: 'Ah, eu reprovo-os porque eles não sabem isto e isto e isto...' - 'e você já disse isso a alguém? E por outro lado, se eles não sabem, a sua obrigação é ensinar-lhes. Se descobre que um aluno não sabe uma determinada matéria, o senhor não pode partir do pressuposto de que ele deveria saber; tem de o ensinar. É para isso que está aqui'.
Mas ele não entendia isso; ele recebia os alunos e eles tinham que ter um determinado grau de aprendizagem. Se não sabiam, que soubessem. E, portanto, cilindrava-os na ordem dos 90 e tal por cento. Até que acabou por ser vítima disso: os alunos fizeram-lhe um boicote às aulas práticas e teóricas e, como ele ainda não era de nomeação definitiva, teve que ser dispensado - mas demorou anos, a chumbar 90 e tal alunos por ano e eu disse-lhe: 'Mas eu não acredito em gerações de estúpidos, portanto o senhor está a ensinar mal'.
O que me parece, fundamentalmente, é que há uma profunda desarticulação vertical; que não há diálogo entre os diversos níveis de ensino, de maneira a podermos dizer qual é o mínimo que cada aluno que entra na universidade deve saber nas respectivas disciplinas e áreas. Penso que 5 ou 6 pessoas sentadas numa secretária durante um ano cronológico faziam a reforma total.
Quanto aos jovens, não são piores, em termos humanos nem intelectuais, que os da minha geração. Longe disso, têm hoje mais acesso à informação, são capazes de a criticar e têm um à-vontade social que as pessoas do meu tempo não tinham. E também, como diria a minha avó, graças a Deus que agora não há PIDE - no nosso tempo, a gente estava sempre a pensar o que é que os outros estavam a pensar, com medo que descobrissem [risos].

António Baldaia

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