Segundo John Maynard Keynes, as necessidades humanas podem parecer insaciáveis, sejam elas absolutas (aquelas que sentimos seja qual for a situação de existência), sejam elas relativas (aquelas que sentimos caso as satisfações nos impulsionem ou nos façam superiores a nossos amigos). Para ele, “as necessidades de segunda classe, aquelas que satisfazem ao desejo pela superioridade, podem certamente ser insaciáveis, desde o mais baixo até os níveis mais elevados”.
Em objeção a conceitos desta espécie, inculcados na sociedade consumista de nossos tempos, é que José Lutzenberger fará críticas sistemáticas através de artigos escritos e discursos e palestras proferidos. A polêmica criada por Lutzenberger tem origem na maneira como ele expunha os acontecimentos e suas conseqüências para o ambiente natural, visto que naquele momento não existiam estudos mais aprofundados sobre danos causados à natureza, assim como, pesquisas de opinião pública que denunciassem qualquer atitude predatória. Expressões hoje notoriamente habituais, ainda não eram conhecidas naquele período. Entre elas podemos citar: meio ambiente, ecossistema, desenvolvimento sustentável, Agenda 21, etc...
Inúmeros críticos do pensamento de Lutzenberger qualificaram-no como extremista e radical e, outros ainda, como um teórico da “síndrome do apocalipse”.
A década de 1970 caracterizou-se pelo chamado “Milagre Brasileiro”, onde o PIB cresceu à taxa média anual de 11,2% entre 1969 e 1973. Entretanto, este crescimento favorecia mais as classes média e alta, resultando numa injustiça social de grande monta e significativa concentração de renda na classe dominante. Foi um período de crescimento de nossa dívida externa, principalmente após o advento da crise do petróleo gerada pela Guerra do Yom Kippur. Vários mega-projetos foram iniciados, em detrimento dos programas sociais. Dentre esses projetos destacaram-se a hidrelétrica de Itaipú e a Transamazônica.
O governo Médici apostou no crescimento industrial dando ênfase à expansão da indústria automobilística, à concessão de maior crédito ao consumidor e ao incentivo às exportações. Para isso, tomou empréstimos externos valendo-se do bom momento que o mercado internacional usufruía.
Os movimentos sociais nesta época estavam extremamente acanhados, diante da perplexidade com as atitudes arbitrárias do governo militar.
A campanha eleitoral de 1978 demonstrou uma adesão mais veemente entre os dissimiles conjuntos da sociedade civil. Entidades antes amordaçadas diante da repressão, agora se expunham peremptoriamente para demonstrar a insatisfação de algumas camadas da sociedade com a situação vigente.
É neste contexto político, econômico e social da década de 1970 que um agrônomo nascido em Porto Alegre fundaria, em meados de 1971, juntamente com outros ativistas, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, AGAPAN. José Antonio Lutzenberger, graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especializou-se em solos e agroquímica nos Estados Unidos. Iniciou sua vida profissional na Companhia Riograndense de Adubos e, em 1957, foi convidado a ingressar em uma indústria química suíça, depois de acompanhar um alto executivo da mesma como tradutor, em viagem pelo território brasileiro. Ocupou cargos de relevância na empresa, em países como Alemanha, Venezuela e Marrocos. Em 1971, por discordância das atitudes da empresa no tocante ao emprego de defensivos agrícolas em áreas nas quais julgava desnecessário seu uso, demitiu-se e retornou a Porto Alegre. Havia tomado uma decisão: trabalhar pela causa ecológica, no combate ao desperdício dos recursos naturais e contra quaisquer atitudes de depredação da natureza.
Em obra lançada no ano de 2002 sobre os precursores da ecologia, Bones & Hasse assim descrevem os primeiros passos do ambientalista:
“Graças a artigos publicados aos domingos no Correio do Povo, passou a receber convites para falar em cidades do interior. Visitou mais de 50 cidades do Rio Grande do Sul. Também viajou por quase todo o Brasil, no principio, para falar sobre agrotóxicos. Deu aulas sobre ecologia em cursos recém implantados em São Leopoldo e Porto Alegre e ministrou cursinhos de formação técnica em agrotóxicos para agrônomos e veterinários. Em suas conferências, combinando ensinamentos práticos sobre a natureza e denúncias contra os destruidores do equilíbrio ecológico, muitas vezes era aplaudido de pé. Mais convincente, mais sincero e mais entusiasmado do que a maioria dos ecologistas brasileiros que também faziam conferências, Lutzenberger sensibilizou milhares de pessoas sobre a delicada cadeia da vida que envolve a Terra, os crimes ambientais na Amazônia, o perigo dos agrotóxicos, os riscos da energia atômica, entre outros assuntos”.
O discurso ambientalista de Lutzenberger se destacou sempre pelo tom irônico com que desdenhava dos que se atreviam a contestar suas argumentações. Palestrante de grande poder de persuasão, recebia convites de várias entidades, não só para emitir pareceres e críticas ácidas aos atos dos poderes públicos como também propôr alternativas e soluções para problemas ambientais.
Os temas que mereceram destaque nas críticas de Lutzenberger são inúmeros. Porém, os mais significativos foram: a poda e o corte indiscriminado de árvores nas praças públicas e avenidas de Porto Alegre para dar lugar aos canteiros de concreto e viadutos que o progresso exigia, a campanha contra o uso de agrotóxicos nas lavouras, o despejo dos efluentes através do “emissário” nas águas do rio Guaíba, a religião do progresso com crescimento constante e o uso do PIB como índice de desenvolvimento, a explosão demográfica concorrendo para a exaustão dos recursos naturais e a energia nuclear como fator de poluição e negócio lucrativo das grandes potências.
Em 1990, foi convocado pelo presidente Collor de Melo, por sugestão do ex-ministro e deputado federal Carlos Chiarelli, para assumir o cargo de Secretário Especial do Meio Ambiente, mas não conseguiu resistir às controvérsias corriqueiras que costumam ser geradas no ambiente político. Seu afastamento do cargo foi questão de tempo. Conta ele, em entrevista a Bones & Hasse, como foi exonerado após uma viagem com a comitiva presidencial à Áustria:
“Um dia estávamos Collor e eu no gabinete do primeiro-ministro da Áustria. Naquela época era o Branitski. Aí, o Collor, naquele inglês todo enrolado dele, fez aquele discurso comum dos terceiro-mundistas: “Nós somos um país pobre. Estamos precisando da ajuda de vocês, países ricos”. Aí eu fiquei (sic) puto da vida, deixei eles falarem. Mas como ele sempre me dava a palavra depois, só olhei para trás para ver quem estava ali. Sempre tem uns caras do Itamarati junto. Tinham só dois deles que sabiam inglês, mas não sabiam alemão. Aí eu falei em alemão, e disse para o primeiro-ministro: “Olha, nós brasileiros temos um país incrivelmente rico. Vocês têm um território de 83 mil km2. O nosso território é de 8,5 milhões de km2, isto é, mais de 100 vezes maior que o de vocês. O território de vocês, (sic) metade é montanha gelada. Dá pra fazer ski e ganhar um pouco com o turismo. Aqueles lindos vales verdes de vocês são lindos, frutíferos, mas têm oito meses de vegetação por ano. A maior parte do Brasil, com exceção daqueles desertozinhos lá do Nordeste, têm doze meses de vegetação por ano. Nós temos um clima maravilhoso. Temos tudo quanto é recurso”. E o Collor só perguntando, não estava entendendo nada. E no fim eu disse: “Mas nós somos um país muito pobre. Incrivelmente pobre. Não se imagina como nós somos pobres em político decente”. Aí na saída, Collor me perguntou: “Lutz, por que o homem riu tanto?” Aí eu expliquei para ele o que tinha dito. O Collor deu uma risada amarela, e três semanas depois me mandou embora.”
Depois de se decepcionar com a experiência política vivida no governo Collor e com a incapacidade do poder público frente aos problemas concretos da destruição ambiental, Lutzenberger refugiou-se em seu sítio distante alguns quilômetros da capital gaúcha, no município de Pântano Grande. Ali procurou dedicar-se ao seu último grande projeto: a Fundação Gaia, que ainda hoje preserva sua memória e seus ensinamentos. O principal objetivo da fundação foi o apoio a agricultores interessados em desenvolver a agricultura ecológica.
Faleceu em 14 de maio de 2002, depois que várias crises de uma asma adquirida de maneira imprevisível, e que muitos creditam ao seu pouco cuidado com relação à saúde física, abreviaram sua vida.
Na produção literária era desorganizado, pois não possuía o hábito de reunir seus escritos para posterior publicação. Se atualmente existem obras suas publicadas, muito disso se deve a admiradores e colegas de militância que se preocuparam com a preservação de suas idéias; exceção feita ao “Fim do Futuro - Manifesto Ecológico Brasileiro” de 1976, com versão em espanhol pela Universidade de Los Andes na Venezuela em 1978, e que, segundo o autor, serviria de grito de alerta aos ecólogos, cientistas e pessoas preocupadas com os (sic) “iminentes perigos que a humanidade está para enfrentar”.
Um dos grandes responsáveis pela memória do trabalho de Lutzenberger, da AGAPAN e do movimento ambientalista surgido no sul do Brasil é o professor Augusto Cunha Carneiro. O incansável tesoureiro da antiga AGAPAN e ex-integrante do Partido Comunista, guarda na histórica rua da República, no centro de Porto Alegre, um verdadeiro tesouro em forma de biblioteca. Ali estão preservadas as raízes do movimento ambientalista que maior número de militantes mobilizou no país, desde seus primórdios.
Ao visitarmos as publicações do pensamento de Lutzenberger, além do “Manifesto Ecológico”, podemos destacar ainda: “Gaia – o Planeta Vivo” e “Ecologia – do Jardim ao Poder”. Estas duas últimas são coletâneas de artigos publicados em vários periódicos durante a vida do autor e compiladas por amigos e simpatizantes como Augusto Carneiro e a jornalista Lílian Dreyer.
Referências Bibliográficas:
BONES, Elmar, HASSE, Geraldo. Pioneiros da ecologia. Porto Alegre: Já Editores, 2002.CARNEIRO, Augusto Cunha, A historia do ambientalismo. Porto Alegre: Sagra Luzatto, 2003.
LUTZENBERGER, José Antonio, Do jardim ao poder, 11.ed. Porto Alegre: L&PM, 2001._______________, Fim do futuro? manifesto ecológico brasileiro. 5.ed. Porto Alegre: Movimento, 1980.
_______________, Gaia – o planeta vivo. 2.ed. Porto Alegre: L&PM, 1990.
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