As declarações de um diplomata português no Qatar indignaram a nossa esquerda woke e alguma dessa indignação chegou aos jornais sob a forma de artigos de opinião, o melhor dos quais é o de Luísa Semedo. Através de um texto bem construído e inteligente, a autora mostra, com exemplos históricos e actuais, de onde vêm e que efeito podem ter certos preconceitos, e conclui, desolada, que "as ideias racistas de que pessoas negras são mais resistentes e sentem menos dor persistem, ou são repescadas ciclicamente da fossa ideológica de onde nunca deveriam ter saído." Estou genericamente de acordo.
Há todavia dois enganos no seu artigo que me suscitam alguns comentários. A autora começa por evocar o pensamento do abade Grégoire, um abolicionista francês membro da Société des Amis de Noirs, associação fundada em 1788, a instâncias dos britânicos e à imagem da associação congénere criada em Londres no ano anterior. A vida da Société des Amis des Noirs foi breve. Politicamente conotada com os Girondinos, extinguiu-se praticamente no período do Terror, perdendo muitos dos seus principais membros: Brissot e Clavière foram guilhotinados, Condorcet suicidou-se, Lafayette entregou-se aos austríacos, etc.
O abade Grégoire sobreviveu à tormenta e promoveu, em 1796, um renascimento dos Amis (designados, de então em diante, por Société des Amis des Noirs et des Colonies), mas a nova associação teve sempre um número reduzido de membros. Ora, foi nesse período de vacas magras e numa altura em que o anti-escravismo se tornara impopular, em França, que o abade publicou a obra De la littérature des nègres (1808). Luísa Semedo informa que Grégoire dedicou esse seu livro a "todos os homens corajosos" que defenderam a causa dos negros e dos mestiços e acrescenta que o abade apontou, nesse contexto, vários franceses, ingleses, americanos, alemães, dinamarqueses, suecos, holandeses, italianos, alguns negros e mestiços e, até mesmo, um espanhol, mas nenhum português. A articulista destaca esse facto e explica que Grégoire avisou os seus leitores para não se surpreenderem com uma tal ausência pois, segundo ele, citado por Luísa Semedo, "nenhum (português) se dedicou a tentar provar que os negros fizessem parte da grande família do género humano."
Aqui a articulista usa uma pequena artimanha: na verdade esta frase foi dirigida por Grégoire não apenas aos portugueses, mas também - com a excepção que se verá adiante - aos espanhóis. Luísa Semedo omitiu a menção feita pelo abade francês aos nossos vizinhos ibéricos, para assim melhor isolar e estigmatizar os portugueses, o que é um truque que não lhe fica bem.
Mas voltemos à questão essencial, centrando-nos, então, apenas nos portugueses, para referir que esta afirmação de Grégoire está absolutamente errada e é um disparate que se deve, claro, à militância abolicionista do abade e à sua ignorância sobre as nossas história e cultura. É pena que Luísa Semedo lhe tenha dado cobertura e ressonância acríticas porque as provas em contrário são inúmeras. Logo em meados do século XV, e a propósito do desembarque de escravos negros em Lagos, que presenciou, Gomes Eanes de Zurara confessava que a humanidade desses escravos o constrangia a chorar "piedosamente o seu padecimento." Pois se até os animais, por instinto, se apercebiam do mal dos seus semelhantes, como não haveria ele, Zurara, de sentir, na sua "humanal natureza", o sofrimento dos negros, sabendo "que são da geração dos filhos de Adão."?
Exemplos destes podem multiplicar-se indefinidamente. É óbvio que para os portugueses ilustrados do tempo em que o abade Grégoire escreveu, tal como para os dos séculos anteriores, os negros faziam parte da "grande família do género humano." Dizer o contrário é ir, também, a uma fossa ideológica de generalizações xenófobas na qual estão as convicções de que os portugueses seriam mais cruéis, mais desumanos, mais negreiros, mais racistas, mais brutos, menos ilustrados e sensíveis, do que os outros ocidentais.
É justo dizer que não era essa a opinião geral de Grégoire. No capítulo 2 do seu livro, o abade fez várias considerações elogiosas - em termos relativos, claro - sobre a forma como portugueses e espanhóis tratavam os escravos e negros livres, mas Luísa Semedo preferiu não mencionar nem realçar essas passagens. Focou-se, apenas, no curto parágrafo através do qual Gregoire dedicou o livro a 270 personalidades que, segundo ele, defendiam os negros e nas quais não incluiu portugueses. Ora, o abade não conhecia Zurara, nem António Vieira, nem Ribeiro Sanches, nem, provavelmente, a lei de 1773, de Pombal, que aboliu a escravidão no Portugal europeu, nem as centenas de portugueses que escreveram sobre os africanos, privaram com eles, enalteceram as suas qualidades e capacidades, e criticaram, também, os seus alegados defeitos, mas nunca, mesmo quando defendiam a continuação do tráfico e da escravidão, os consideraram exteriores à "grande família do género humano."
Esse desconhecimento dos escritores portugueses é uma gritante lacuna do abade Grégoire - e não só dele -, que nós não devemos imitar. Devemos, isso sim, tentar esclarecê-la, corrigi-la e colmatá-la, coisas que Luísa Semedo não faz, pelo contrário (pois quem cala, consente). Ou seja, a autora vai buscar e dá cobertura a essa ideia negativa dos portugueses, tirada da tal fossa ideológica análoga àquela a que o nosso diplomata no Qatar recorreu para falar da resistência ao calor das gentes de pele mais escura. Por outras palavras, cai, inadvertidamente e talvez por preconceito, no erro que aponta ao diplomata português.
Há, aliás, um outro engano no seu texto que importa referir. Trata-se de um mal-entendido, ainda relacionado com Grégoire. Como referi acima, a autora assinala que o abade francês dedicou o seu livro de 1808 aos "homens corajosos" que defenderam a causa dos negros, e conclui (a autora) que "Grégoire faz dessa forma a demonstração de que os homens corajosos também eram homens do seu tempo e que era perfeitamente possível na altura ser abolicionista e pela igualdade."
Claro que era possível. Aliás, era não só possível como, nessa época, comum. Mas não o era em épocas anteriores. Aparentemente, esta passagem um pouco críptica do artigo de Luísa Semedo remete para o debate entre os que afirmam, erradamente e sem apresentar provas, que sempre houve desde o início do período dos Descobrimentos, no século XV, homens que defenderam a abolição do tráfico e da escravidão dos africanos; e os que - como é o meu caso -, defendem que a escravatura só começou a ser rejeitada e considerada crime a partir de meados do século XVIII graças ao advento e triunfo de uma nova ideologia e de um movimento político nascidos no Ocidente: o abolicionismo.
Ora, ao contrário do que Luísa Semedo aparentemente supõe, a lista de pessoas a quem Grégoire dedica o livro, confirma a minha avaliação, que tenho afirmado repetidas vezes (e continuo a afirmar). De facto, que pessoas são essas? São homens e algumas mulheres do século XVIII, sobretudo da sua segunda metade, isto é, precisamente do tempo em que o abolicionismo nasceu e começou a afirmar-se. Os leitores podem consultar essa lista e confirmar o que digo pois o livro do abade Grégoire está acessível online. Lá encontrarão franceses como Mirabeau ou Volney; britânicos como William Pitt ou, claro está, Wilberforce; norte-americanos como Thomas Jefferson ou Benjamin Rush; negros e mestiços, alguns deles ex-escravos libertados, como Gustavus Vassa (cujo nome de nascimento era Olaudah Equiano); alemães como Lafontaine; suecos, dinamarqueses, holandeses, italianos e, até, um espanhol, o jesuíta Diego de Avendaño que - é a excepção que confirma a regra -, viveu no século XVII, mas não era, em bom rigor, um abolicionista. De facto, se algumas das pessoas listadas por Grégoire eram verdadeiramente abolicionistas, outras eram apenas toleracionistas, isto é, gente que criticava o sistema escravista, mas tolerava a sua continuação em certas condições - pense-se, por exemplo, que Thomas Jefferson, um dos nomes referidos na lista, era proprietário de muitos escravos.
Não há na lista de Grégoire (com a já referida e ilusória excepção de Avendaño) pessoas dos séculos XV, XVI e XVII pela simples razão de que, nessa época, se contam pelos dedos de uma mão, ou nem isso, os que defendiam publicamente o fim da escravidão dos africanos. Ou seja, a referência do abade francês aos "homens corajosos" a quem dedicou o seu livro, não altera em nada aquilo que sempre afirmei, nem demonstra o que Luísa Semedo supõe que essa referência demonstraria, muito pelo contrário. Gente a exigir o fim da escravatura só de meados do século XVIII em diante.
Dito isto, o artigo que aqui analiso e critico continua a ser a expressão de um raciocínio válido e justo contra a permanência de certos preconceitos racistas na actualidade. Venham mais como ele, mas sem artimanhas.
João Pedro Marques, historiador e romancista
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