The Man in the High Castle (1963) is an alternative history novel by American writer Philip K. Dick |
Por Nuno Ramos de Almeida
Vivemos num tempo estilhaçado. Uma das figuras centrais do nosso novo mundo é a fragmentação dos espaços de encontro, das expectativas em relação ao futuro e até da ideia do tempo.
Na realidade, passado e futuro parecem ter desaparecido, e ser substituídos por um imenso presente, em que a cadência da sucessão acelerada das “coisas” que acontecem parece retirar qualquer possibilidade de construir um sentido que se projete para além deste tempo repetido num presente sem fim.
A multiplicação das identidades e a tentativa neoliberal de reduzir todos os problemas sociais a questões de biografia individual, tornaram mais difícil a existência de um sentimento coletivo de pertença e de identificação numa comunidade de luta.
Dizia Baudelaire que o maior feito do Diabo era ter-nos convencido da sua inexistência. O maior feito do capitalismo é precisamente o contrário: é ter-nos convencido da sua eternidade. Nesse sentido o capital foi erigido em divindade com a sua poderosa teodiceia. Afiançam-nos que goza da omnipresença, está em todo o lado; de omnipotência, é superior a qualquer forma pensada alternativa; e omnisciência, o mercado tudo compreende e tudo faz.
Escrevia Frederik Jameson, numa passagem muito citada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, que ninguém mais considera seriamente alternativas ao capitalismo, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões de um futuro “colapso da natureza”, da eliminação de toda a vida na Terra. Parece mais fácil imaginar “o fim do mundo” que uma mera mudança muito mais modesta de modo de produção, “como se o capitalismo liberal fosse o 'real' que de algum modo sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global. Assim pode-se afirmar categoricamente a existência da ideologia como uma matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como nas mudanças nessa relação”.
Estamos, também, numa época em que cada vez mais o Estado de Direito se mistura com o Estado de Exceção. O crescimento do neofascismo não se mede por votos e pelo seu reforço orgânico e de massas, mas principalmente pela sua capacidade de conseguir espalhar os seus conceitos no Estado, instituições, política e violência mediática.A resposta a este regresso aos tempos negros que elegem os pobres, os imigrantes, os “de outra raça” como inimigos passa por construir comunidades de luta que redescubram que a humanidade transcende a nossa existência individual.
Há um belíssimo texto de Luiz Pacheco que se chama “A comunidade”, em que se descreve um tipo muito particular de laços: uma família que sobrevive à miséria. É numa espécie de jangada que se torna a cama de família que ganha forças para as tempestades. O texto é mágico e começa assim: “Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecinha de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos e suor uns com os outros, uns pelos outros, tão aconchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva”.
Num tempo em que estamos atomizados e isolados – em que só “socializamos” pelo consumo; em que, segundo estudos científicos, somos definidos pelos likes automáticos que colocamos nas redes sociais; em que a imagem que damos é reflexo dinâmico dos condicionamentos que nos impõem; em que os estudos que sobre nós fazem permitem otimizar aquilo que querem que sejamos: grandes consumidores –, perdemos essa capacidade de nos tornar sujeitos, passamos a ser só objetos.
Contra isso é preciso formar comunidades que tenham como ponto de partida a igualdade. Só conseguindo poder para todos será possível que o fim do trabalho como o conhecemos não seja a divisão total e espacial entre os muito ricos e os 99% restantes, confinados a zonas cada vez mais selvagens nas nossas sociedades. Para inverter este processo de destruição social e ambiental é preciso redescobrir a movimentação coletiva que não se fundamentem apenas na situação social em que vivemos, mas se projetem naquilo que pretendemos que o mundo seja.
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