sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Carlos Neto: “A escola a tempo inteiro é uma vergonha nacional”


Carlos Neto reformou-se só aos 70 anos. Teve uma vida dedicada à educação e, principalmente, ao papel do corpo e à importância da motricidade humana no processo de aprendizagem. Catedrático da Faculdade de Motricidade Humana (FMH) da Universidade de Lisboa (UL), é conhecido por dizer que brincar é um assunto sério e, nesta conversa com o PÚBLICO, é com determinação que defende que as “crianças não podem ser vítimas do trabalho dos pais”, porque não podem passar 50 horas por semana na escola, ou que “as crianças portuguesas brincam menos do que os prisioneiros nas prisões”. Depois da turbulência causada pelos confinamentos ditados pela covid-19, neste regresso “normal” à escola Neto avisa que “a maior pandemia” que temos agora “é o número de horas em que estamos sentados”.

Este ano lectivo que começa agora pode-se considerar o mais normal desde o início da pandemia. Sem máscaras, sem álcool-gel, sem circuitos alternativos. E os alunos, acha que já ultrapassaram alguns dos traumas da pandemia?
De facto, a pandemia penalizou altamente as crianças, sobretudo aquelas dos primeiros níveis de escolaridade. Foi um verdadeiro Big Brother, não só pelo facto de terem ficado muito limitadas do ponto de vista da expressão das suas energias, dos seus sentimentos, das suas ideias, da sua socialização. Notei que depois dos dois confinamentos, quando regressaram à escola, as crianças vinham com algumas alterações muito significativas do ponto de vista da saúde física, muitas com excesso de peso e algumas até com obesidade e, por outro lado, com um nível de auto-estima e autoconfiança mais baixo. Acima de tudo, notei uma desorganização, uma agitação “motórica” como nunca tinha percebido ao longo de 50 anos de trabalho.

Uma agitação “motórica” significa uma grande necessidade de contacto físico, de estar com os amigos, de correr, saltar, explorar o espaço. Durante a pandemia houve bolhas, corredores, impedimentos de as crianças se contactarem. No espaço escolar, o contacto físico é das coisas mais importantes para as crianças se conhecerem, se estruturarem. Muitos medos entraram no corpo e ainda não foram ainda totalmente digeridos, para além de uma instabilidade “motórica” e também emocional. Os efeitos desta pandemia não estão ainda sarados. Há muitas consequências que eventualmente ainda vão manifestar-se durante alguns anos. As coisas não passam de um dia para o outro. Do ponto de vista emocional, as crianças ficaram muito marcadas. Julgo que este ano temos condições de iniciar um ano lectivo em que possamos resolver muitos destes problemas. Depois da pandemia, também apareceram alguns sintomas de maior agressividade, elementos de bullying e violência.

Um estudo do Ministério da Educação de Maio concluía que um terço dos alunos e metade dos professores apresentavam sinais de sofrimento psicológico.
E também emocionais e físicos. Os corpos ficaram aprisionados, não se mexeram durante um grande período de tempo. Isto tem consequências ao nível da percepção do nosso corpo porque não houve movimento, actividade motora. Esse aprisionamento do corpo tem muitas consequências não só a nível da saúde mental, mas da saúde social e emocional também. Neste momento, temos de estar atentos a esses sinais que ainda estão a manifestar-se e que provavelmente vão durar ainda alguns anos. Julgo que já passámos o pior desta pandemia, mas há ainda um medo persistente na cabeça das pessoas, quer dos pais, quer das crianças e jovens.

Acha que as escolas estão conscientes ou preparadas para essa necessidade de estarem atentas aos sinais e de ajudarem a combater os efeitos desse aprisionamento do corpo?
Numa grande parte dos casos, os agrupamentos de escolas estão atentos, despertos para esse tipo de manifestações. Mas a escola está rodeada de outros factores que afectam o sistema educativo. Vivemos um momento de grande transição digital, robótica, IA, neurociências, genética, mas também uma transição climática e energética. Tudo isto implica uma reinvenção da escola. Esta é a questão principal que se coloca.
A escola tomou consciência, com esta pandemia e com a guerra que agora vivemos, que tem de mudar porque o mundo mudou. Temos de construir um novo modelo de funcionamento das instituições escolares porque nós temos um futuro desconhecido, incerto e imprevisível. A escola que sempre manteve uma função fundamental para o desenvolvimento da sociedade tem de redefinir o seu futuro. Isso implica — como aliás foi muito bem definido pelo relatório da UNESCO que foi publicado recentemente e que faz uma projecção para 2030 — um novo contrato social para a educação: temos de trabalhar juntos para reinventar uma escola nova. Temos de acabar com esta cultura egocêntrica, de um currículo estruturado em disciplinas com currículos exaustivos e intensos e com uma escola a tempo inteiro que, de facto, foi algo de muito penalizador para as crianças. Uma grande parte delas passa 50 horas na escola.

Na altura [primeiro governo de José Sócrates], a escola a tempo inteiro foi apresentada pelo governo como uma grande conquista.
As crianças não podem passar tanto tempo na escola. Têm de ter outras experiências, mais tempo com os pais, mais tempo informal. Hoje, a escola está completamente formatada e formalizada.

Há muitas famílias que não têm tempo para passar mais tempo com as crianças.
Temos de ter um equilíbrio nas políticas públicas no sentido de harmonizar o tempo de trabalho e o tempo passado em família. As crianças não podem, de nenhuma forma, ser vítimas do trabalho dos pais. O tempo escolar tem de ser apreciado de uma forma nova. As crianças deixaram de ter contacto com o espaço natural, de ter tempo para elas próprias, ter tempo para brincar, fazer aventuras, descobrir o espaço público e a sua comunidade. São transportadas para a escola, estão sentadas imensas horas, quase de manhã à noite, em casa, no automóvel, na sala de aula. A sala de aula aprisionou a criança na escola. A sala de aula também tem de ser desconstruída. Esta é uma mensagem fundamental que vem nesse estudo [da UNESCO].
Para além disso, é preciso conectar a aprendizagem com o espaço natural no sentido de haver mais experiências comunitárias. Por outro lado, é preciso ter atenção a esta abundância de propostas de digitalizar a escola de qualquer forma e feitio. Os instrumentos digitais vieram para ficar, mas não podem substituir o professor. Corpos activos são cérebros activos através da acumulação de sentimentos e emoções. Quem não percebe sentimentos não percebe nada de educação. É fundamental que o professor seja guia, mentor, tutor dos alunos a fornecer condições e contextos para que as crianças se apropriem de conhecimentos mas também de competências pessoais. Antes de pensarmos em alunos, temos de pensar em pessoas que estão a crescer, a desenvolver-se para um mundo que é desconhecido. Temos de reavaliar os modelos de ensino, daquilo que deve ser o ensino centrado na criança e no adolescente e não apenas sacrificar a aprendizagem através da avaliação. Há um excesso de cultura de escolarização na nossa escola que tem que ser aliviada. A escola não é só para fazer testes, ter médias, para entrar nos rankings.

A divulgação pública de rankings veio distorcer os objectivos da escola? Há famílias obcecadas com isso.
Há uma expectativa parental e escolar sobre os resultados. Agora com a semestralização é preciso ter algum cuidado sobre como isso vai ser feito. É preciso equilíbrio para que as crianças não tenham um modelo de ensino em que a escola seja apenas um local onde o conhecimento se replica. Não podemos ter uma escola replicativa com crianças sentadas a ouvir de forma pouco participativa. Tem de haver mais participação das crianças no processo de aprendizagem. Temos de tornar a escola um local acolhedor, com entusiasmo, onde seja possível haver alegria e busca de prazer. Isso só é possível numa escola participativa em que aquilo que se aprende é feito através de projectos, mais de perguntas do que de respostas e não apenas de preparação das crianças para testes. Muitas vezes estamos a preparar crianças para memorizar conhecimentos para depositarem nos testes e depois esquecerem. Temos de fazer uma grande reflexão nacional sobre as políticas de acesso ao ensino superior. As escolas, desde a creche até ao secundário, não servem para preparar crianças para entrarem na universidade. Devíamos libertar as escolas para que as crianças e os professores tivessem tempo para aprender as coisas que são importantes.

Como é que reformularia então esta frase: “As escolas não servem para preparar crianças para entrarem na universidade.” Devem servir para o quê?
A escola deve ter a noção de que o ser humano é o animal que tem a infância mais longa e há muito tempo para aprender e não é preciso aprender tudo à pressa. As crianças andam, como os adultos, a viver à pressa, a aprender de uma forma exageradamente rápida, muitas vezes ultrapassando os níveis de maturidade a nível cognitivo, motor, social e emocional. Passam-se, muitas vezes, essas barreiras. Não se respeita o ritmo de aprendizagem da criança. Não se deve ter a ideia de que todos aprendem ao mesmo tempo e da mesma forma. Temos de pensar numa escola diferente, adaptada ao nosso tempo em que as crianças aprendam a pensar criticamente, saberem resolver problemas, trabalharem em equipa, saberem comunicar. Devem aprender competências pessoais que serão fundamentais para as preparar para o mundo que aí vem. Estamos a preparar estas crianças para que futuro?

Sim, para que mundo?
Como a escola está muito atrasada em termos de actualização em relação ao mundo moderno, necessitamos de fazer esta pergunta. Provavelmente, aquilo que elas estão a aprender não servirá para nada no futuro. O mundo está a mudar muito e os jovens que estão nas nossas mãos precisam de ser preparados de outra forma e, por exemplo, de ter uma consciência ambiental mais clara. As crianças não aprendem numa dimensão naturalizada e humanizada. Aprendem dentro de uma sala de aula fechada.

A própria arquitectura das escolas não está pensada para ser de outro modo.
Não, não está. É preciso não só desescolarizar a escola das quatro paredes como também dessedentarizar a escola, tornando-a mais humanista e natural. É preciso sentir e experimentar. Um dos objectivos fundamentais da escola actual era conseguir tornar as crianças exploradoras, pesquisadoras, cientistas, artistas, desportistas. Serem elas protagonistas do processo de aprendizagem. Não matar a curiosidade nem o entusiasmo. É preciso libertá-las dentro da escola para serem cidadãos activos, conscientes, críticos e com a ideia de que se aprende em qualquer lugar, não só dentro da sala de aula. A escola tem de sair de dentro das quatro paredes. Também há escola na comunidade, uma cultura paisagística. É preciso que tenham consciência do local onde vivem. O Ministério da Educação já criou vários instrumentos que facilitam este processo.

O poder político está a ajudar?
A tutela já produziu esses instrumentos para dar autonomia às escolas. Temos legislação que permite a flexibilidade curricular, o perfil do aluno à saída da escolaridade, as aprendizagens essenciais e o decreto sobre a inclusão. Qualquer escola tem hoje a liberdade de fazer o seu projecto educativo que não precisa de ficar aprisionado dentro da sala de aula. É preciso também repensar a formação de professores e [potenciar] um acordo entre a família-escola-comunidade, porque houve delegação de competências para os municípios. Temos hoje necessidade de fazer um trabalho em rede. A palavra-chave do relatório da UNESCO é precisamente “juntos”, trabalhar juntos no sentido de ter cuidado com a digitalização…

Para muitas pessoas, isso foi uma coisa boa da pandemia, a aceleração da digitalização na educação. Mas, a seu ver, tem de se ter cuidado com isso?
Sim, porque já há muita gente interessada em digitalizar completamente a escola. Ora, eu não concordo com isso. Os instrumentos digitais são fundamentais como coadjuvantes, mas não se pode robotizar ou digitalizar o sistema.

Mas há quem queira substituir os professores por meios tecnológicos?
Já há relatórios sobre isso, sobre o desaparecimento da escola. Há um, por exemplo, da OIT que prevê quatro cenários: o homeschooling; a escola passa a ser completamente digitalizada, dispensando o professor; outro cenário onde há contratação de empresas para substituir os professores; e uma espécie de trabalho misto de contratualização entre a família e a escola. É assustador. Eu sou mais apologista deste modelo humanista e naturalista que está expresso no relatório da UNESCO.

Porque é que as escolas não exploram mais a autonomia que lhes é dada?
É necessário estabelecer estratégias para os professores trabalharem em conjunto porque temos um modelo demasiadamente cartesiano, que centra a aprendizagem num corpo que não se mexe. Em certos casos, o corpo fica à porta da escola e só entra o cérebro. Temos de ter um modelo educacional em que se trabalha o corpo todo. Este modelo de escola está esgotado. Para isso, é preciso dar mais atenção a áreas que são secundarizadas dentro da escola como o desporto, as artes, a perspectiva expressiva e lúdica. As crianças estão a ficar encharcadas em sedução digital. Passam horas a fio em frente aos ecrãs. Hoje, a escola é o local que mais sedentarismo promove nas crianças e nos jovens. Provoca sedentarismo de uma forma clara. As crianças saem da sala de aula e ficam logo ali nos corredores agarrados aos telemóveis.

Há escolas que proíbem o uso de telemóveis. Vale a pena ou é contraproducente?
Há anos, aproximávamo-nos das escolas e ouvíamos barulho e ruído. Hoje, só ouvimos silêncio porque as crianças estão sentadas a agarradas aos ecrãs. É preciso mexer para crescer. Hoje, na escola, vive-se cheio de medo. As crianças estão aprisionadas dentro da escola.

Medo de quê?
Medo de tudo. Há medo de as crianças poderem ter acidentes, de poderem sofrer violência, medo de tudo. O medo está na cabeça dos pais, na cabeça dos educadores, dos auxiliares.
A pandemia afectou as crianças e os jovens, mas afectou também os professores. Muitos ficaram exaustos, muitos puseram baixa, não estão nas melhores condições de motivação para fazer as mudanças de que fala nas escolas.
Sim, os professores são uns heróis. Fizeram um trabalho notável durante estes últimos anos. Com esta pandemia, reaprenderam muitas coisas. Mas é óbvio que o ensino remoto foi uma fraude, principalmente até aos 10 anos. Há professores exaustos, obviamente. A melhor terapia é reinventar essa escola trabalhando em conjunto.

E o papel dos pais nesse processo? Há muitos pais que ficam mais sossegados se tiverem os filhos sob a sua asa, em casa, mesmo que entretidos com telemóveis e jogos de computador.
Os pais vivem uma espécie de paradoxo. Querem que os filhos sejam os melhores alunos do mundo e tenham as melhores profissões do mundo. Mas ao mesmo tempo andam superprotegidos, não têm autonomia e liberdade.

Segundo um estudo da OCDE, os adolescentes portugueses também aparecem sempre em pior posição do que os de outros países no que diz respeito aos níveis de “satisfação com a vida”, aos 13 e 15 anos. A culpa também é da escola?
Sim, porque a escola não permite que eles possam exprimir os seus talentos, curiosidades, sentimentos. Está tudo formatado e aprisionado. Nos espaços exteriores, andam todos policiados. Não têm liberdade de expressão e de acção.

Há auxiliares que no recreio até pedem aos miúdos que não corram.
Exactamente. Não faltará muito para termos um letreiro na porta das escolas a dizer “É proibido correr e brincar”. Isso será uma tragicomédia. Temos de lhes dar oportunidade de mostrar o que sabem, o que querem, o que gostariam de ser. Eu vejo como os alunos me chegam à universidade.

Como?
Muito imaturos, não sabem fazer uma pergunta, não sabem fazer uma discussão porque foram treinados para apreender conhecimento em silêncio. Eu diria mesmo que, do ponto de modelo educativo, há negligência. Há negligência em relação aos direitos que estão consagrados na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, principalmente o artigo 31.º, que é o direito a brincar, a expressar-se, ao lazer; e, por outro lado, o artigo 12.º, que é o direito à participação. A cultura, as artes, a actividade física e desportiva estão penalizadas.

A carga horária dessas disciplinas tem vindo a diminuir ao longo dos anos?
Há países da União Europeia que têm cinco horas semanais de actividade desportiva e nós só temos uma hora, uma hora e meia no 1.º ciclo. Somos o país com o menor índice de mobilidade, o maior índice de sedentarismo, e isto tem efeitos negativos na saúde pública, e o nosso SNS vai ter gravíssimos problemas porque não está preparado para isso.

E que adultos serão estas crianças que estamos a educar assim?
A adolescência por si própria é uma idade ansiogénica, é uma idade de grandes mudanças e alterações. É uma idade fantástica, talvez a mais interessante na vida humana, mas ao mesmo tempo é uma idade muito complexa. Nós hoje temos jovens que estão perdidos, que estão exilados num mundo complexo. Veja a taxa de suicídio, o nível de angústia e depressão nessas idades. Isso é resultado de não terem tido uma infância suficientemente feliz. Nunca tivemos uma sociedade tão democrática, nunca tivemos tão bons pais, tão bons professores, tão boas escolas.

Temos crianças demasiadamente protegidas? Somos dos países onde os jovens saem mais tarde de casa dos pais.
Mas isso tem que ver com as condições económicas. Mas não só, também jurídicas. Não temos uma legislação de trabalho suficientemente amiga dos pais para lhes dar tempo para estar com os filhos. Nos países nórdicos, os pais vão buscar os filhos à escola às 15h e vão passear com eles, andar de bicicleta, com temperaturas baixas, com neve. Em Portugal, cai um pingo de chuva e entra tudo para dentro de casa, cheio de medo.

Como é que esse novo modelo que defende se pode aplicar em disciplinas como Matemática, História?
Qualquer disciplina pode ser feita de forma activa; pode ser feita com instrumentos que eu coloco na mão dos alunos e eles vão investigar e explorar, vão pensar, fazer projectos, trabalhar em conjunto e descobrir o conhecimento. O conhecimento não se impõe, descobre-se da mesma maneira que o ensino não se faz por pontos finais, mas por vírgulas. Faz-se por perguntas e não por respostas. As escolas têm de ter uma atitude de descoberta e reflexão para que todos aprendam que a complexidade e a incerteza são elementos fundamentais para pensar no futuro. As escolas não são prisões, têm de abrir os muros, abrir as salas, sair lá para fora. Repare, pintar uma árvore dentro da sala é completamente diferente de ir lá para fora e pintar a árvore real. A sociedade está a mudar, temos à porta o 5G. Dentro de poucos anos teremos uma robotização da sociedade, provavelmente o número de horas de trabalho irá diminuir. Temos de pensar como vamos para Marte, como se trabalha com a gravidade. Ou seja, colocar na mão das crianças temas de discussão interessantes, que promovam um trabalho interdisciplinar. É fundamental que a escola pense em coisas malucas, em coisas diferentes, em novas temáticas relacionadas com a cidadania, a inclusão.
Para a escola mudar, também têm de mudar muitas outras coisas. Depois desta pandemia, temos de trabalhar em rede. Temos de ter uma visão de permacultura na educação, uma visão ecológica. Os currículos, os métodos têm de ser actualizados para as finalidades que este relatório da UNESCO apresenta de uma forma pertinente. Para isso, também é preciso que os nossos hábitos egocêntricos de trabalhar sozinhos se revolucionem no sentido de aprender a trabalhar de novo com quem está ao nosso lado. É um trabalho que se faz passo a passo. As revoluções na educação não se fazem à pressa. Mas estou convencido de que vamos construir uma sociedade melhor, ainda que neste momento estejamos a assistir a um ambiente completamente neurótico.

Quando fala em mobilidade, as próprias famílias também têm de dar o exemplo. Como vê agora esta tendência para as ciclovias e o abandono do automóvel?
Essa é talvez uma das maiores lutas da minha carreira académica. É tentar devolver a rua à criança para poder brincar no espaço público. Há mais destreza digitalmente, mas os pais não deixam uma criança subir a uma árvore. Há mais perigos que vêm hoje do tempo que as crianças passam frente aos ecrãs, mas os pais ficam descansados porque eles ficam quietos.

O que é que diria aos pais? Devem limitar o uso de telemóveis e consolas?
Os instrumentos digitais são fundamentais para ir buscar conhecimento quer em casa quer na escola, mas é preciso ter algum cuidado nas primeiras idades com o excesso de tempo que as crianças passam em frente aos ecrãs. Há crianças a passar cinco e seis horas por dia, e isso é um crime. Os pais devem ser vigilantes, devem ter supervisão dos seus próprios filhos em relação a isso, tal como nas escolas se deve ter atenção ao excesso de tempo que as crianças passam frente à televisão, principalmente na creche e no pré-escolar. Na China e em Taiwan, já há uma regulamentação em que os pais são penalizados se as crianças tiverem mais do que 12 horas semanais frente a ecrãs lúdicos. As crianças foram capturadas e seduzidas. Hoje, a maior pandemia que temos é o número de horas em que estamos sentados. O homem precisa de se mexer. Muitos de nós não despendem durante o dia muito mais energia do que um quilómetro. Isto é aterrador para o nosso organismo.

Qual é o maior drama que estamos a viver na sociedade portuguesa? 
As nossas crianças não têm tédio, nem frustração, dá-se tudo pronto, na hora. As crianças não têm de se debruçar sobre nenhum problema. Eu tenho crianças que aos sete anos não sabem atar os sapatos, que aos nove não sabem correr. Estamos perante um grande analfabetismo motor. Escrevi um relatório sobre isso para o Conselho Nacional da Educação em 2020, sobre algumas das consequências da pandemia. Também falo sobre a escola a tempo inteiro e os malefícios que isso teve. É uma vergonha nacional. O tempo a partir das 15h devia ser para a criança, devia ser tempo livre e não continuidade do tempo escolar. Não devemos ter escolas paralelas em cima da escola normal.

Deixe-me voltar àquilo que dizia sobre a pandemia e os adolescentes. Os adolescentes foram os que sofreram mais com a pandemia. Ainda vão demorar muito a ultrapassar esta situação ou as crianças têm um botão de restart muito mais eficaz do que nós achamos?
Costumo dizer que a idade da adolescência é uma idade esquecida. Se temos algumas soluções para crianças de idades mais baixas, quando chega à adolescência aprisionamos demasiado uma época na vida humana que é das mais fantásticas de todas. A adolescência é uma idade de descoberta, de grande sensibilidade, de grandes alterações sexuais, morfológicas, mentais, de angústia, etc. Devemos dar mais atenção aos nossos adolescentes. Primeiro, dando-lhes mais alternativas para que possam procurar um bem-estar e uma saúde física e emocional maior. As escolas, famílias e cidades deviam oferecer a possibilidade de terem mais contacto com o meio natural. Eles foram muito penalizados por esta pandemia, foram afastados dos amigos, foram fechados em casa, ensinados através do ensino remoto. Ficaram desmotivados. A agenda desportiva foi fechada, houve um abandono desportivo enorme que ainda não está suficientemente estudado. Devemos fazer uma task-force para ajudar estes adolescentes a recompor-se. Diria que precisam de restaurar o corpo, restaurar as relações sociais, a sua descoberta dos seus talentos pessoais. A escola tem de lhes dar mais opções, mais escolhas, mais coisas para fazer. Quando é que fazemos fóruns no sentido de ouvir a opinião dos jovens sobre o que querem aprender, sobre a visão que têm do seu futuro?

O regime da Educação Inclusiva em Portugal aprovado em 2018 ditou uma nova realidade para milhares de crianças e jovens com necessidades educativas especiais. Depois desta legislação, Portugal tem sido apontado como um bom exemplo, a começar pela vizinha Espanha. Como olha para o trabalho feito ao longo dos últimos três anos? Sente que a escola pública tem sabido adaptar-se e encontrar novos quotidianos que incluam todos?
Quer a escola pública quer o ensino particular e cooperativo têm feito um trabalho exemplar. Tem sido um trabalho notável. Temos uma taxa de imigração enorme. Temos bolsas de pobreza e desigualdade enorme e temos vindo a conseguir fazer um trabalho muito bom a esse nível. A escola já conseguiu assimilar bem o conceito de inclusão, ainda que tenhamos de melhorar aqui e acolá. Ainda recentemente estive em Odemira e São Teotónio e falei com os responsáveis educativos locais e eles dizem-me que os pais até fazem um trabalho de grande colaboração, o que é interessantíssimo. Eu tenho uma visão muito positiva do futuro, ainda que tenhamos grandes desafios neste momento depois da pandemia, com estas transições que falámos. O mundo está a mudar rapidamente, e a escola tem de acelerar o passo.

Mas é optimista?
Sou e já estou com 71 anos. Mas temos de pensar seriamente em como fazer uma formação de professores eficaz, interessante e competente. Os professores em exercício têm de ter mais carinho da tutela e do povo português. São maltratados. O trabalho que fazem não é reconhecido. As carreiras e os salários estão a desmotivar os professores.

Há ainda esse problema. As crianças que já estão desmotivadas chegam à escola e podem nem ter professor a duas ou três disciplinas.
O que está a acontecer era previsível há muitos anos. O mesmo que está a acontecer na universidade está a acontecer na escolarização obrigatória. Já se sabia que ia haver uma grande debandada por reforma, quer antecipada quer forçada. Se perguntar aos jovens, ninguém quer ser professor. Obviamente, ele é maltratado a vários níveis. É preciso fazer um grande trabalho. O Ministério da Educação está a tentar encontrar soluções em discussão com os sindicatos e espero que essas soluções sejam encontradas, e com certeza que a escola vai continuar porque a escola não vai desaparecer. Há muita gente interessada nisso para fazer negócio, mas sou apologista de que a escola é um elemento fundante da estrutura de uma sociedade. Foi assim que a civilização humana evoluiu enormemente. Há crianças hoje que sabem jogar, mas não sabem brincar. Isto é uma tragédia. É preciso desanuviar o corpo. É isto que é preciso, não é só ir a um consultório do psiquiatra ou do psicólogo. É também fazer uma terapia através do movimento. Hoje, nas escolas, as crianças são proibidas de lutar, do toca-e-foge. Os auxiliares parecem GNR. As escolas são de factos prisões. As crianças portuguesas brincam menos do que os prisioneiros nas prisões.

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