quinta-feira, 8 de maio de 2025

O novo macarthismo é uma oportunidade para a Europa?


«Foram poucos minutos, mas os suficientes para o ato de resistência ser fotografado e partilhado. Hasteado numa residência estudantil de Harvard, um pequeno pano lembrava que a “liberdade de expressão inclui a Palestina”. A mensagem responde ao estrangulamento financeiro às universidades decretado pela administração Trump. Com base na acusação de inação perante o antissemitismo, Trump exige que alterem currículos com critérios políticos e pretende influenciar critérios na admissão de estudantes internacionais.

Quem não capitular perante o novo macarthismo sentirá, de forma ainda mais violenta, o apertar no torniquete dos cofres públicos. A Johns Hopkins despediu mais de dois mil funcionários após um corte de 800 milhões de dólares. A Universidade de Columbia cedeu, após ver congelados 400 milhões por causa dos protestos estudantis contra a ocupação de Gaza. Dos 25 estabelecimentos de ensino superior que mais financiamento federal receberam nos EUA em 2023, pelo menos 16 estão sob investigação. Entre estes, 10 estão a ser alvo de especial atenção por parte de uma task force governamental contra o alegado antissemitismo, tratando qualquer crítica a Israel como apologia do Hamas.

Rebecca Simmons, médica e investigadora há mais de 50 anos nos EUA, viu o seu projeto sobre complicações na gravidez entre mulheres negras e pobres bloqueado por uma ordem executiva que proíbe financiamento federal a estudos sobre diversidade. Como este, há centenas de casos semelhantes, com impacto direto na saúde pública e inovação médica.

Nem as universidades internacionais com protocolos com as americanas, como algumas portuguesas, são poupadas, exigindo a administração Trump o fim de políticas contra a discriminação ou o fim da investigação em áreas “sensíveis” como a saúde pública.

Revolução Cultural
Das grandes firmas de advocacia às cadeias de televisão, a capitulação perante as exigências autocráticas tem sido regra nestes loucos meses em Washington. Justiça seja feita a Trump: nem as instituições mais poderosas são poupadas. Pelo contrário, a sua capitulação é especialmente importante, exatamente pelo seu poder simbólico. Por isso o braço de ferro com Harvard se tornou tão relevante.

Em resposta à chantagem, Harvard decidiu enfrentar Trump, garantindo que prefere perder 2000 milhões de dólares vindos dos cofres federais do que abdicar do controlo da instituição e da liberdade de definir os seus currículos. Claro que o desafogo financeiro da universidade mais rica do mundo, com um orçamento anual de 50 mil milhões de dólares, ajuda a alguma resistência. Mas o reitor sabe que tem muito a perder, como a isenção fiscal de que beneficia, vital para apoios privados. Até agora, nem isso demoveu a instituição, que sente também a responsabilidade de defender as restantes faculdades sem o seu músculo financeiro, de enfrentar a administração Trump em tribunal. O que está em causa, com este corte financeiro, não é tanto o funcionamento da universidade, mas o dos seus centros de investigação médica. Dos 9000 milhões de dólares que Harvard recebe do Estado, 7000 destinam-se a onze hospitais em Boston e Cambridge.

Os EUA estão a viver uma guerra cultural inspirada, na sua lógica, no estertor de Mao: a purificação do sistema político contra a imposição de um quadro de valores, não natural, pelas elites que dominam o sistema contra a vontade do povo. J.D. Vance não podia ter sido mais claro: “as universidades são o inimigo”. Vance, ele próprio formado em Yale, argumenta que a verdade e o conhecimento nos EUA têm sido moldados pelas universidades com base numa tirania. E perguntou: “Porque consentiram os conservadores esta tirania intelectual?” Quebrar as universidades é fundamental para impor uma nova hegemonia cultural.

A guerra cultural americana já não é meramente simbólica. Atacar as universidades serve três propósitos: destruir uma das últimas barreiras institucionais ao autoritarismo, castigar quem não se ajoelha e consolidar o ressentimento das bases contra as “elites do saber”. Trump segue o guião da Hungria, onde Orbán fez o mesmo, quebrando sem dificuldade a resistência das universidades, agora transformadas em fundações com amplo controlo político.

Vive-se, por cá, o mito da ausência de Estado no domínio tecnológico e científico norte-americano. A eficácia da chantagem de Trump, usando o corte de apoios públicos, desmonta a fantasia.

O investimento federal nas universidades ascende a 60 mil milhões de dólares, um valor trinta vezes superior (atualizado à inflação) às transferências anteriores à Segunda Guerra Mundial. Foi a corrida pela descoberta da bomba nuclear, um esforço titânico que juntou dezenas de investigadores das maiores universidades e institutos, que abriu o caminho para o financiamento de projetos de larga escala. A Guerra Fria, a conquista do espaço, a nova fronteira tecnológica, tudo foi consolidando o apoio público à investigação aplicada que abriu caminho a quase todas as grandes inovações do nosso tempo.

As empresas privadas investem quantias astronómicas em inovação aplicada. Mas ela repousa em décadas de investigação em ciência base que permite, anos depois, a massificação de produtos ou novas tecnologias. A nova geração de vacinas usadas para combater a Covid-19 foi possível graças à pesquisa e ao desenvolvimento efetuados nos anos 60 do século passado.

RIO
Consoante o ranking, 16 ou 20 das 25 melhores universidades do mundo estão nos EUA. Tirando uma breve aparição de Zurique, só as do Reino Unido, com três dos lugares cimeiros, se destacam nas europeias. Nenhuma de uma União Europeia que tanto fala em ciência e inovação. A China, pelo contrário, tem uma ou duas (e Singapura uma).

Não está escrito em pedra que as melhores universidades e centros de inovação fiquem sempre no mesmo país. A Alemanha foi o centro académico até 1933, e deixou de o ser com a perseguição aos judeus e à liberdade de expressão, essencial para o trabalho académico, dando origem a uma fuga de cérebros prontamente acolhida pelos EUA.

Mais de 75% dos investigadores que responderam a um inquérito conduzido pela Nature admitem abandonar os EUA para poder prosseguir o seu trabalho na Europa ou no Canadá. Algumas universidades europeias já sentem o aumento do número de candidaturas do outro lado do oceano e, como sempre, alguns estão mais acordados do que outros. Doze governos escreveram uma carta à comissária europeia da Inovação, defendendo uma estratégia concertada para tentar captar talento internacional para as universidades do continente. Entre esses países encontramos a França, Espanha, Alemanha ou Grécia, mas, como é evidente, nem sinal de Portugal.

É preciso repetir programas de atração, como o que os EUA levaram a curso no pós-guerra (Operação Paperclip), mas desta vez em sinal contrário. A Europa ainda tem uma vantagem em relação à China: é vista como um espaço de liberdade de pensamento, crítica e investigação.

Como avisa Bruno Maçães no Perguntar Não Ofende, a liberdade não chega (nem é certo que, em algumas áreas, isso seja assim tão relevante para os cientistas). A diferença salarial e de investimento em investigação é enorme. É preciso investir e coordenar investimento.

Primeiro Macron, depois Von der Leyen, foram bastante agressivos no discurso sobre a captação de talento das universidades norte-americanas. “A Europa deve continuar a ser a pátria da liberdade académica e científica”, disse a presidente da Comissão Europeia, na apresentação do programa “Escolhe a Europa”. Garantindo que a União Europeia já apoia investigadores que venham para o espaço europeu, atribuindo um complemento à sua bolsa, anunciou “um novo pacote de 500 milhões de euros para 2025-2027, para tornar a Europa um pólo de atracção para os investigadores.” Dá pouco mais 150 milhões por ano para todos os países europeus. Para que se perceba a gota no oceano, mesmo com os cortes de Trump, os EUA continuam a investir 7000 milhões só em Harvard.

Também aqui, o bom aluno português decide ficar para trás. Se a situação já não era boa com o anterior governo, agora temos o orçamento mais baixo da Fundação Ciência e Tecnologia desde 2018. De nada nos serve ter investigadores internacionais com vontade de vir para Portugal se os nossos centros estiverem lotados de precários a trabalhar sem reconhecimento. Não é só uma questão monetária, mas também de estatuto, autonomia e ambiente favorável à investigação.

Ou encaramos a produção de saber como um fator de diferenciação e qualificação da economia, ou continuaremos condenados a olhar para o sucesso dos outros, a depender de monoculturas de baixo valor acrescentado, como a do turismo, e a baixar o IRC na esperança de que assim nasçam flores no deserto. É uma escolha que devia passar pela campanha eleitoral.»

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