Filipe Duarte Santos |
A crise financeira e económica de 2008, com origem nos EUA, contraiu fortemente a economia global e diminuiu o bem-estar e a prosperidade económica em todos os países, embora de forma diferenciada, incluindo Portugal que foi particularmente afetado no contexto da União Europeia (UE). O mundo estava finalmente liberto dessa crise, quando surge no final de 2019 a crise da pandemia covid-19 cujo combate exigiu o confinamento e consequentemente uma acentuada quebra da atividade económica e uma provável depressão.
Entretanto, desde há mais de uma década, pelo menos, há umas quantas pessoas que teimam em afirmar que vivemos duas outras crises globais relativas a algo aparentemente mais afastado dos objetivos de prosperidade económica. A primeira é a crise ambiental, que se traduz pela perda de integridade da biosfera, pela poluição da atmosfera, mar, recursos hídricos e solos, e pela sobreexploração dos recursos naturais. A segunda é a crise climática que se traduz pelo aumento progressivo da temperatura média global da atmosfera, pela mudança nos padrões regionais da precipitação anual, pelo aumento da frequência e intensidade de alguns eventos meteorológicos extremos, especialmente ondas de calor, secas, eventos de precipitação intensa em períodos curtos, temporais extratropicais e ciclones tropicais e ainda pelo aumento do nível médio global do mar.
Mas há ainda mais duas tendências de natureza socioeconómica que pela sua magnitude, persistência e extensão constituem crises globais. A primeira é a crise das desigualdades socioeconómicas associada à emergência da classe do 1% da população mundial, que controla grande parte do poder económico e financeiro, com a conivência mais ou menos explícita dos governos, e caracterizada pelo desacoplamento entre o aumento da produtividade económica e o crescimento do emprego, pelo aumento da percentagem relativa a lucros na receita global e por uma maior taxa de retorno do capital do que a taxa de crescimento económico. A segunda é a crise global da dívida pública e privada, fortemente impulsionada pelo aumento da dívida privada na maioria dos países. De acordo com o relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) do final de 2019 a dívida privada global a preços reais triplicou desde 1950 e em finais de 2019 a dívida global (pública e privada) atingiu 184 milhões de milhões de dólares, equivalente a 86,000 dólares per capita, um valor mais elevado do que antes da crise de 2008-2009.
Estas cinco crises estão fortemente relacionadas e algumas são interdependentes. A crise da covid-19 está relacionada com a crise ambiental, através da crescente transgressão dos habitats naturais que restam no Sistema Terra o que favorece o contacto humano com reservatórios de vírus em animais selvagens que se podem aproveitar esse contacto para evoluírem por meio de mutações e alojarem no corpo humano. Enquanto a alimentação dos povos indígenas com animais selvagens segue paradigmas culturais construídos durante milénios, a ingestão desses animais na atualidade por não-indígenas não tem memória do passado e é dirigida por modas recentes e oportunidades de lucro oferecidas pelas leis do mercado. A solução da crise económica gerada pela pandemia implica necessariamente um aumento do endividamento público para recuperar e incentivar a economia. Porém, o consequente agravamento da crise da dívida global irá tornar mais difícil o crescimento do PIB em muitos países, sobretudo naqueles que já tinham uma elevada dívida antes da pandemia. Finalmente, a crise da covid-19 irá agravar ainda mais as desigualdades socioeconómicas, particularmente as que estão associadas ao fosso Norte-Sul. A depressão económica global resultante da pandemia vai aumentar a pobreza, a fome e a pressão migratória nas economias emergentes e em desenvolvimento, especialmente nas que mais dependem da exportação de matérias-primas.
Finalmente, no que respeita às alterações climáticas estima-se que as emissões globais de CO2 em 2020 venham a ser cerca de 8% mais baixas do que em 2019. É a maior redução de emissões de CO2 provocada por todas as crises globais dos séculos XX e XXI, incluindo a pandemia da gripe espanhola, a Primeira Guerra, a Grande Depressão dos anos de 1930, a Segunda Guerra e a crise de 2008-2009. Esta redução vai no sentido certo para resolver a crise climática, mas espera-se que rapidamente as emissões regressem aos valores anteriores à pandemia dado que provavelmente a forte dependência global nos combustíveis fósseis irá continuar. Seria necessário reduzir de 6,5% as emissões anuais de CO2 durante toda a década de 2020-2030 para cumprir o Acordo de Paris das Nações Unidas que visa não ultrapassar 2º C de aumento da temperatura média global relativamente ao período pré-industrial.
Para controlar a crise climática é necessário estabilizar a concentração atmosférica de gases com efeito de estufa e esta só se dá quando as emissões tenderem para zero. É como se reduzíssemos de 8% o débito de uma torneira que verte água para uma piscina. O nível da água sobe menos mas enquanto a torneira estiver aberta continua a subir. É provável que as consequências económicas da pandemia levem a atingir-se mais cedo o pico de consumo global do carvão mas o pico de consumo global de petróleo dificilmente ocorrerá antes de 2030 e o de gás natural mais tarde.
Estas suposições pressupõem que continuamos no mesmo sistema económico e financeiro global das últimas décadas e no business as usual. A crise da pandemia constitui uma oportunidade para mudar de rumo e há muitas pessoas através do mundo que estão empenhadas em construir a partir daqui um mundo mais sustentável. Será possível? Como fazer? Quais as soluções?
Para entender a época atual é importante analisar os EUA, o país líder do mundo Ocidental, a maior potência económica e sobretudo militar do mundo e também o país líder da família dos países anglo-saxónicos com economias avançadas que se constituiu a partir do Império Britânico e inclui além da Grã-Bretanha, o Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Esta família não é uma nação, nem uma federação, como previu Herbert George Wells em 1901, mas revela-se pragmaticamente unida quando as circunstâncias assim o requerem e constitui o grupo económico e militar mais poderoso e organizado no mundo. Estamos a meio caminho da Oceânia, o superestado oligárquico anglo-saxónico que em 1949 George Orwell imaginou vir a existir em 1984.
O atual presidente dos EUA, Donald Trump tinha nas sondagens de há um ano uma percentagem favorável de 41,1% contra 53,8% desfavorável. Em 20 de maio, mais de três meses após o início da pandemia, as percentagens são praticamente idênticas com 42% favorável e 53% desfavorável (Quinnipeg University Poll, 20 de maio 2020), apesar dos EUA serem no mundo, o país com maior número de infetados, 1.696.547, e de mortos, 99.561, em 25 de maio. O presidente não compreende, desacredita e nega a ciência, dá conselhos absurdos e perigosos aos doentes e exibe um comportamento patologicamente sectário. A sua principal preocupação é manter Wall Street em alta e impedir o crescimento económico da China. Defende de forma apaixonada o uso dos combustíveis fósseis, especialmente do carvão, e anula grande parte da legislação de proteção do ambiente do seu antecessor. O governo dos EUA planeia realizar o seu primeiro teste nuclear depois de 1992, quando apenas a Coreia do Norte ainda provoca tais explosões, e decidiu abandonar unilateralmente o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INFT), assinado por Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev em 1987. Ações que aumentam o risco de uma guerra nuclear.
Os seguidores da magia do Make America Great Again (MAGA) deliram com as patologias do seu presidente porque irritam e ofendem os seus adversários mais citadinos e intelectuais e os meios de comunicação social. Na tentativa de se perceber este delírio diz-se que são guerras culturais ou tribalismo, mas Trump ainda poderá ser reeleito em novembro. Estes excessos ultraconservadores e nativistas não se limitam aos EUA. Também surgem na Europa e no Brasil com movimentos chamados populistas de extrema-direita que se recusam a pensar o mundo atual por meio da ciência e de forma integrada. Preferem a utopia, a negação da realidade e a raiva.
Neste contexto político ocidental, com uma liderança assustadora, torna-se mais difícil fazer as reformas transformacionais que a solução das quatro crises de longo prazo requerem. Todas elas estão ancoradas no atual sistema económico e financeiro que continua global apesar das tendências recentes para o protecionismo e a fragmentação. Sem o reorientar efetivamente para a sustentabilidade não será possível avançar. As crises do ambiente e do clima são por natureza globais pelo que exigem a cooperação ativa de todos os países para encontrar vias de solução.
Apesar das suas vicissitudes e da excessiva energia que gasta em resolver os problemas internos, a UE constitui uma realização notável, especialmente no que respeita à paz, aos direitos humanos, à liberdade de circulação e residência dos cidadãos, ao seu desenvolvimento científico e cultural, às suas ambiciosas políticas ambientais e ao seu pioneirismo em construir um programa de sustentabilidade baseado na ciência, através do Pacto Verde Europeu. A UE deveria ter uma atitude política sobre o confronto crescente dos EUA com a China e uma perspetiva mais interventiva para além das suas fronteiras sobre as crises contemporâneas globais.
A pergunta que habitualmente se faz é se se está otimista ou pessimista. Penso que esta é uma oportunidade única de intervenção, que nos deve redobrar o ânimo e o empenhamento. O mais importante é persistir em defender os valores essenciais do Ocidente que herdamos inicialmente do Iluminismo e que privilegiam os direitos humanos, a democracia, o progresso humano, a prevalência da ética acima dos interesses pessoais, o método científico, a sustentabilidade de uma civilização inclusiva que defende a liberdade, a cooperação e a solidariedade, protege a integridade da biosfera e respeita o Sistema Terra como sendo a sua casa.
Professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
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