Da Divergência Económica à "Divergência" Energética ?
Segunda-feira, 03 de Maio de 2004
A opção por sectores industriais fortemente consumidores, como a cerâmica e vidro, os cimentos e a pasta e papel, entre outros, condiciona irremediavelmente uma evolução favorável do consumo de energia por euro de riqueza nacional produzida
Feliz Mil-Homens* e Vítor Santos**
A União Europeia (UE) tem conseguido sistematicamente ter um crescimento económico superior ao crescimento do consumo de energia. Admitindo que séries temporais suficientemente longas esbatem o efeito das flutuações climáticas, que têm um peso significativo nos consumos dos países do Norte, somos levados a admitir que a intensidade energética do produto da economia europeia, tem diminuído ao longo do tempo. Por exemplo, de 1990 a 2000 o produto interno bruto (PIB) europeu cresceu à taxa média anual de 1,7 por cento ao ano, enquanto o consumo de energia primária cresceu no mesmo período à taxa média anual de 1,1 por cento, evidenciando uma elasticidade do consumo de energia relativamente ao PIB de cerca de 2/3. Este facto traduz-se numa redução da intensidade energética global do PIB de 0,7 por cento ao ano, com contributos diferenciados dos vários sectores.
Em Portugal, a evolução tem sido distinta (ver gráficos "O mapa da poluição" e "Nós e os outros"). Tomando o mesmo período como exemplo, entre 1990 e 2000, o PIB português cresceu à taxa média de 2,4 por cento, enquanto o consumo de energia primária cresceu à taxa média de 3,9 por cento, evidenciando assim uma elasticidade superior à unidade. Esta situação repete-se qualquer que seja o período escolhido nas últimas duas décadas.
Para o efeito muito terá contribuído o sector dos transportes (ver texto em caixa). Mas mesmo em sectores onde é mais estreita a ligação entre consumo de energia e produção de riqueza, como é o caso do sector industrial, os efeitos de natureza estrutural, relacionados com opções de desenvolvimento económico, tiveram uma influência determinante no consumo de energia e, por consequência, na intensidade energética levando a uma deriva negativa desse indicador tendo como referência a UE. De facto durante a década de noventa, o produto industrial europeu em valor regrediu nos anos de 1992 e 1993 e aumentou nos restantes; o saldo global entre 1990 e 1998 é de um acréscimo, em termos reais de 11,3 por cento do produto industrial europeu. No entanto, o consumo de energia final do sector, no mesmo período, diminuiu cerca um por cento, o que se traduz em ganhos de intensidade energética do produto industrial da ordem de 1,5 por cento ao ano, durante o período em análise.
Em Portugal, no mesmo período, o produto industrial aumentou em valor cerca de 13,5 por cento, mas o consumo de energia final do sector aumentou cerca de 34 por cento, o que se traduz numa degradação da intensidade energética do valor acrescentado industrial da ordem dos dois por cento ao ano, durante o mesmo período (ver gráfico "Melhor é possível").
Ganhos de eficiência "comidos"
Esta análise geral esconde uma realidade muito complexa e não deve conduzir à conclusão imediata e simplista, de que no sector se está a degradar a eficiência com que se consome a energia. Na realidade, a razão entre o consumo de energia e o valor acrescentado do sector depende de, pelo menos, três ordens de factores. Em primeiro lugar o nível de actividade do sector; é imediato que quanto maior a actividade industrial maior será o consumo de energia. Em segundo lugar, a estrutura do sector; ou seja, para um mesmo nível de actividade, o sector será estruturalmente mais "energívoro" se na sua decomposição subsectorial contiver uma maior componente de indústria pesada como siderurgia, cimentos, etc. Finalmente, o consumo energético depende da eficiência energética em sentido estrito; ou seja, para o mesmo nível de actividade e composição estrutural, existe um grau de liberdade adicional resultante das tecnologias e dos modelos de organização utilizados, que condicionam os bens e serviços produzidos com a energia utilizada.
Uma análise detalhada ao consumo de energia final na indústria transformadora portuguesa na década de oitenta revelou que os ganhos de eficiência energética do sector que efectivamente se verificaram, à taxa média de 1,1 por cento ao ano, não se reflectiram no consumo de energia final do sector uma vez que foram "comidos" pelo aumento de actividade do sector e, sobretudo, pela alteração estrutural que ocorreu durante essa década, com reforço do peso das indústrias mais energia intensivas, nomeadamente metalomecânica e papel (para uma análise mais aprofundada sobre esta temática veja-se Mil-Homens, 1993, "Análise do Consumo de Energia Final na Indústria Transformadora Portuguesa, na Década de Oitenta", Tese de Mestrado ISEG).
Infelizmente não são conhecidas análises desagregadas deste tipo para a década de 1990, que seriam importantes para o conhecimento da evolução real da eficiência energética do sector. No entanto, os valores globais referidos acima, parecem indicar que durante a década de 1990 se manteve a tendência da década anterior, em que eventuais ganhos de eficiência foram compensados por alterações estruturais do sector, de modo que, a intensidade energética global do sector se degradou. Esta tese carece, naturalmente, de confirmação.
O caso irlandês
Para ilustrar o efeito de estrutura no consumo de energia final do sector industrial é interessante conhecer o caso irlandês. Neste país, entre 1990 e 1998, o produto industrial aumentou 128 por cento enquanto se mantinha, em termos absolutos, o consumo de energia final do sector. A evolução desses dois indicadores conduziu, na prática, a uma redução da intensidade energética de 58 por cento durante o período. Tal ficou a dever-se, sobretudo, a alterações estruturais do sector, com forte reforço de subsectores de alto valor acrescentado e baixa intensidade energética.
Naturalmente que as dinâmicas da evolução estrutural da indústria são ditadas pela ponderação de um conjunto variado de factores - emprego gerado, valor acrescentado nacional no produto final, desenvolvimento tecnológico, etc. -, que em geral se sobrepõem às razões de natureza energética. No entanto, as estratégias de desenvolvimento industrial têm impactes determinantes ao nível do consumo de energia e a opção por sectores industriais fortemente consumidores, como a cerâmica e vidro, os cimentos, a pasta e papel, etc., que em Portugal têm um peso muito importante, sendo justificável pelos factores referidos, condiciona irremediavelmente uma evolução favorável da intensidade energética da economia.
Apesar de tudo, o caso irlandês sugere que, a redução ou a estabilização da intensidade energética do produto industrial, não é apanágio dos países mais desenvolvidos já que, mesmo para países que sejam protagonistas de um processo de convergência acelerado, é possível optar por um modelo de desenvolvimento industrial que, simultaneamente, torne possível o crescimento rápido e o aumento da eficiência energética.
*Professor Adjunto do ISEL; **Professor Catedrático do ISEG
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