Tempos houve, retrógrados, ideologicamente remetidos para o caixote do lixo da História, nada liberais e progressistas em que o conceito de genocídio era uma coisa feia, revoltante, sanguinária. Tempos em que os seres humanos, mesmo os mais avançados na caminhada civilizadora, tinham ainda o seu quê de selvagens.
Práticas como as da Santa Inquisição, a barbárie nazi contendo o seu estarrecedor Holocausto, até o episódio dos Hutus no Burundi e os massacres na antiga Jugoslávia, desde que os supostos autores fossem os sérvios, provocaram grande comoção entre nós. Quem mais se indignou perante estes acontecimentos foi, pela ordem natural das coisas e porque assim deve ser, por definição, a «nossa civilização», a ungida «civilização ocidental», depositária sem mácula dos conceitos básicos humanistas como a democracia, a liberdade, os direitos humanos, a lei, a justiça e, por último mas não menos importante, o mercado – motor infalível de tudo o resto.
Parece inquestionável, contudo, que em relação ao passado a «nossa civilização cristã e ocidental» não tinha as mãos completamente limpas na chacina purificadora da Santa Inquisição, da mesma maneira que existem suspeitas sobre o longo período de alheamento em relação às actividades de Hitler antes e durante o Holocausto, ou até sobre o seu papel decisivo na criação de condições para que essas tragédias tivessem acontecido.
Porém, práticas assim desaconselháveis aconteceram há séculos, ou décadas distantes, quando o nosso estádio civilizacional não tinha amadurecido aos níveis de hoje, nos quais a cultura é pujante, o humanismo esfuziante, cultivámos um edénico jardim protegido por um muro inviolável que nos defende da barbárie ainda avassaladora e invejosa da nossa evidente superioridade. Deve recordar-se, e que não haja qualquer equívoco xenófobo e inquisitorial ao fazê-lo – indignidades com as quais a nossa sociedade avançada não pactua – que os alvos frequentes destas sevícias foram quase sempre os judeus, esses hereges e assassinos de Nosso Senhor Jesus Cristo, crimes pelos quais foram condenados a quase dois mil anos de necessária marginalização.
Agora tudo passou, tudo acabou, estamos nos píncaros da democracia neoliberal. Aos que dizem representar os judeus mas têm zero vírgula zero de raízes na Palestina histórica é permitido finalmente vingar-se e descarregar no povo nativo palestiniano uma raiva acumulada durante séculos de perseguições – mas não aos judeus étnicos que permaneceram no seu território pátrio. É uma espécie de princípio de vasos comunicantes da civilização em que os mais fracos e desprotegidos estão sempre ao nível inferior no ramo em ascensão: os que dizem representar os judeus já subiram para um patamar de equilíbrio seguro; aos palestinianos cabe agora esperar pela sua vez durante o tempo que tiverem de esperar. Se lá chegarem, o que pode não acontecer porque o genocídio finalmente democratizou-se, caminha ao compasso da nossa civilização e, uma vez que o Direito Internacional é coisa retrógrada e reaccionária, a vigente e moderníssima «ordem internacional baseada em regras» pode definir como ultrapassado, caduco até, aquele princípio da Física aplicado aos domínios sociais. O povo palestiniano sofrerá assim uma espécie de dores do progresso em direcção à civilização, enfim alguém teria de passar por isso.
Uma chacina lógica e inevitável
Israel, como define o seu actual primeiro ministro, Benjamin Netanyahu, indivíduo que tem um mandado de captura emitido por essas retrógradas instituições como o Tribunal Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional, é «o garante da presença da civilização ocidental no Médio Oriente».
O homem tem toda a razão: nenhum dos países ocidentais contesta esse dogma; pelo contrário, reforçam-no jurando que «Israel é a única democracia do Médio Oriente».
Ora, se a «única democracia do Médio Oriente» realiza há cerca de 80 anos o genocídio do povo palestiniano, combinando duas acções democráticas e liberais, como são a limpeza étnica e o extermínio das populações, então não pode estar a infringir qualquer lei em vigor. Recorda-se que os países ocidentais, com o seu farol, os Estados Unidos da América, à cabeça têm uma relação perfeitamente justa com a justiça porque em relação aos tribunais atrás citados podem julgar e ser inquisidores, mas não admitem ser julgados. Israel pertence a esta casta de eleitos, assim lhe permite a condição parcela de Ocidente incrustada no selvático Oriente.
Que mal tem afinal o genocídio? Qual o problema de assassinar mais de 60 mil pessoas, maioritariamente mulheres e crianças, na Faixa de Gaza desde 7 de Outubro de 2023? Há muitos terramotos que provocam mais vítimas; além disso, que são 60 mil seres humanos no meio de mais de dois milhões de habitantes naquele enclave, ou será campo de concentração?
Existe ainda uma outra justificação essencial para se compreender a matança. Nunca esqueçamos o apelo lancinante de Daniella Weiss, uma das chefes dos colonos sionistas importados por Israel: «Os colonos querem ver o mar, o que é um desejo lógico e romântico. Gaza deve ser esvaziada de todos os árabes para que os colonos possam ver o mar construindo colonatos em toda a Faixa de Gaza». Qualquer dirigente ocidental compreenderá muito bem os direitos humanos defendidos pela angustiada Daniella. Estou certo de que um deles é esse exemplo de democrata chamado Rangel, ministro dos Negócios Estrangeiros do impoluto Montenegro, que ainda recentemente foi saudar Netanyahu e os seus colaboradores mesmo no auge da operação de extermínio.
Para estar ao lado das matanças cometidas por Israel, o Ocidente não ignora o facto de o fundador do sionismo, Theodor Herzl, ter garantido que a Palestina era uma terra sem povo para um povo sem terra. É certo que o mesmo Herzl admitiu depois a necessidade de «incitar a população desfavorecida a sair da Palestina, privando-a de trabalhar na nossa Pátria», mas isso terá sido, digamos, uma figura de estilo.
A primeira-ministra israelita Golda Meir, a «dama de ferro» antecessora de Margaret Thatcher, repôs a verdade de Herzl ao garantir, algumas décadas depois, que os «palestinianos não existem», por isso, «não viemos expulsar ninguém». Moshe Dayan, general e herói nacional da Guerra dos Seis Dias, ousou desmenti-la: «Não há um único lugar neste país que não tenha tido uma população árabe». Talvez o general percebesse de tudo o que era militar mas fosse uma nulidade em geografia e demografia. E, como não custa especular, não escapou a uma dura reprimenda da sua chefe do governo.
Os acontecimentos que fazem parte da História dos últimos 80 anos e os actuais significarão, tendo em consideração as teses de Herzl e Meier, que as tropas de Israel estão a matar ninguém ou a praticar chacinas em jogos de computador? Talvez todas estas circunstâncias sejam fruto, há que admiti-lo, do carácter etéreo, divino e milagreiro que enforma a doutrina indubitavelmente democrata e liberal do sionismo, mas isso seria matéria para escritos a cargo de especialistas em coisas do outro mundo.
Há ainda mais uma razão de fundo para que o Ocidente compreenda e apoie o genocídio do povo palestiniano. As vítimas, afinal, de acordo com a visão sionista do mundo, não devem ser catalogadas como seres humanos e, como aprendemos pelas andanças da ecologia, há espécies animais ameaçadas e outras que, pelas excessivas populações, se tornam predadoras. Será este o caso dos palestinianos?
A crer nas figuras históricas que criaram e mantêm o Estado de Israel como a expressão da nossa civilização no Médio Oriente não há razão para ter dúvidas. E se as explicações são dadas por primeiros-ministros sionistas, duvidar seria de mau gosto, até insultuoso. Menahem Begin, que além de chefe do governo israelita foi também agraciado com o Prémio Nobel da Paz, logo um homem honrado, assegurou que os «palestinianos são animais que caminham sobre duas patas». Já em plenas negociações sobre a «paz», o representante israelita nas conversações, e que depois chegou a primeiro-ministro, Naftali Bennet, pôs a delegação palestiniana na ordem ao lembrar-lhe educadamente que «ainda vocês subiam às árvores já nós tínhamos um Estado». Embora saibamos que muitos répteis não trepam às árvores, não posso deixar de sublinhar, a talhe de foice, a inovadora tese biológica do primeiro-ministro Ehud Barak, reforçada com a sua condição de trabalhista, logo socialista: «os palestinianos são como os crocodilos, quanto mais se lhes dá mais querem».
No sionismo há quem tenha menos certezas, mas, ainda assim, levante interrogações plenas de humanismo. Um ex-ministro da Defesa de Netanyahu, Yoav Gallant, ao que parece demasiado moderado, admitiu que «estamos a lutar contra animais humanos e a agir em conformidade». Zev Boin, um deputado do Kadima, «partido centrista», enveredou pela alta filosofia: «Que haverá no Islão em geral e nos palestinianos em particular?... É uma espécie de carência cultural? Um defeito genético?» Os resultados das investigações de Moshe Smilansky, escritor e latifundiário israelita, conduziram-no a conclusões mais complacentes porque, em sua opinião, apenas «estamos confrontados com um povo semi-selvagem com conceitos extremamente primitivos».
Quem não está para perder tempo nem cultivar hesitações, dispostos a arrancar o mal pela raiz, são figuras expeditas como o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Netanyahu, Avigdor Lieberman, com experiência piedosa adquirida no cargo de porteiro de discoteca na Moldávia: «Os prisioneiros palestinianos devem ser metidos num autocarro para o Mar Morto para aí serem afogados». Fazendo coro, o veterano terrorista Ezra Yachin, com uma heróica carreira iniciada no métier da limpeza étnica expulsando as populações de aldeias árabes arrasadas há quase 80 anos, incitou: «esses animais (os palestinianos) não podem continuar a viver; todos os judeus devem empunhar uma arma e matá-los». Será remédio santo? Arnon Soffer, demógrafo universitário muito famoso e prestigiado, considera que sim e não tem dúvidas: «se quisermos continuar vivos teremos de matar, matar , matar e matar – durante todo o dia, todos os dias».
Feliz a civilização que pode ser representada por uma «única democracia» regional com gente tão qualificada para desempenhar esse papel.
Uma Convenção dir-se-ia medieval
Apesar de não existirem razões para contestar a inclusão do genocídio no valioso lote de activos da democracia liberal, os habituais inimigos do progresso e da opinião única que os nossos desinteressados governantes e os seus compadres mediáticos justamente vilipendiam, chegam a insinuar que essa receptividade à liquidação de um povo viola os valores que a nossa civilização defende sem descanso.
Para tal, os incuráveis retrógrados invocam a Convenção para a Prevenção e Punição do Genocídio aprovada em 1948, no âmbito da ONU e na sequência do fim da Segunda Guerra Mundial, da barbárie nazi e do Holocausto. Os Estados Unidos da América e todos os países do chamado Ocidente colectivo, incluindo os 27 da União Europeia, subscreveram esse documento cautelar e humanista. Nem outra coisa seria de esperar dos depositários dos valores mais avançados da moral, bons costumes, civilização e democracia, desde que seja liberal. No entanto, como se trata de uma «nação excepcional», a única «indispensável», os Estados Unidos subscreveram a Convenção apenas 40 anos depois e sob a reserva de não serem punidos caso sejam acusados de genocídio. Um inalienável direito ocidental: julgar sem poder ser julgado, como é próprio dos que se situam acima da lei internacional, servidos por uma ordem específica emanando da verdadeira sociedade civilizada, a tal «ordem baseada em regras».
O Tribunal Internacional de Justiça, porém, estabelecera que os Estados, signatários ou não da Convenção, «estão vinculados por uma questão de direito consuetudinário ao princípio de que o genocídio é um crime proibido pelo Direito Internacional». Quanto a isto, não há reservas que valham, mas faltarão sempre forças e meios ao Tribunal para executar as suas decisões caso os responsáveis pela violação da lei sejam os Estados Unidos ou qualquer dos seus aliados ou protegidos. Washington tem, não o esqueçamos, uma lei interna permitindo-lhe atacar um país que albergue um tribunal internacional – os Países Baixos no caso do Tribunal Penal Internacional – se algum dirigente norte-americano for detido no âmbito da aplicação das leis internacionais.
Israel também assinou a Convenção, e que bem lhe ficou o gesto. No seu artigo II, o documento subscrito por mais de centena e meia de nações define genocídio como «qualquer um dos seguintes actos cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial e religioso». E, em seguida, enumera os comportamentos que traduzem a prática de genocídio, bastando um deles para violar a letra do documento, integrado no Direito Internacional: «Matar membros do grupo; Causar sérios danos corporais ou mentais aos membros do grupo; Infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física no todo ou em parte; Impor medidas destinadas a impedir nascimentos dentro do grupo; Transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.»
Não é necessário aprofundar o assunto para verificar que Israel cumpre, sem falhas, todos e cada um dos requisitos para a prática de um genocídio. Da mesma maneira, todas as nações que silenciam, apoiam estas práticas, as toleram e se relacionam amigavelmente com os dirigentes que as executam e a doutrina que as sustenta são, sem dúvida, suas cúmplices.
Todos os autores ou facilitadores do extermínio do povo palestiniano, incluindo Israel, imagine-se, subscreveram a Convenção e também o compromisso de «perseguir e extraditar perpetradores do crime de genocídio».
Acontecimentos mais recentes explicaram-nos, porém, quanto vale a assinatura de um país ocidental num documento que, neste caso, bem pode ser a Convenção sobre o Genocídio. Vale zero, como sabemos: zero em responsabilidade, zero em dignidade, zero em respeito pelas pessoas e perante a mortandade pela qual são responsáveis por colaboração ou omissão. Lembremos o caso dos Tratados de Minsk, cuja aplicação poderia ter evitado a guerra na Ucrânia e o genocídio do seu povo por responsabilidade do próprio regime de Kiev. A chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, François Hollande, assinaram solenemente esses tratados e alguns anos depois – poucos – confessaram ao mundo que o tinham feito nunca pensando cumpri-los mas apenas com o objectivo de dar tempo aos nazi-banderistas postos no poder pelo Ocidente para se armarem e retomarem a guerra civil iniciada a partir do golpe organizado pelos Estados Unidos e a União Europeia. No entanto, os falsificadores de assinaturas são coerentes com eles próprios, há que reconhecê-lo. Não se consideram submetidos ao Direito Internacional. Mas invocam-no para atacar todos os outros, mesmo militarmente. Afinal uma civilização superior tem ou não tem as suas prerrogativas?
Como poderiam os nossos iluminados dirigentes aceitar reger-se por uma Convenção sobre o Genocídio quase octogenária, arcaica, inspirada em conceitos anacrónicos, a qual chega mesmo a ser ofensiva contra as conquistas já alcançadas pelo neoliberalismo. Quando estão em causa o dinheiro, o mercado, o domínio estratégico sobre o mundo, a propriedade global das matérias primas, das terras férteis e dos paraísos naturais, pôr em causa as decisões israelitas sobre Gaza, Cisjordânia, Jerusalém, ou qualquer parte do Egipto, do Líbano, do Iraque, da Síria é o mesmo que atentar contra os nossos interesses adquiridos e inquestionáveis. Se é necessário chegar ao genocídio para defendê-los, mantê-los e assegurar a vigência plena da democracia, então que se pratique. Que se cometa.
As vítimas colaterais mais não são do que as consequências inevitáveis do respeito obrigatório pela «ordem internacional baseada em regras», a única que o progresso dos tempos harmonizou com os valores ocidentais. Se existem ainda seres humanos no lugar errado e à hora errada, ainda por cima «com a alma mais próxima de um animal do que da alma de um sionista», como sentenciou Abraham Kook, um histórico rabino asquenaze, só a eles cabe a culpa. Além disso apenas podem queixar-se de si próprios uma vez que há muito estão advertidos de que o sionismo «é por natureza um sionismo de transferência»,como oportunamente recordou Rehevan Zeevi, que fundou e foi chefe do partido fascista governamental Moledet. Um princípio com o qual não deixarão de concordar, na prática mas não por palavras – a cobardia assim o exige – todos os governantes ocidentais.
As perguntas que ficam ao fim destas considerações com base factual, caros leitores, leitoras e concidadãos, é como permitimos que tudo isto seja executado em nosso nome, em nome da democracia que, supostamente, é o poder do povo? Como aceitamos ser governados por gente como esta que tem como política a mentira, o oportunismo, a ganância, o ódio pelas pessoas, a guerra, o genocídio, o direito à morte, a manipulação, a lavagem cerebral e a perseguição inquisitorial em relação a quem pensa de maneira diferente? Como podemos ficar quase inertes ao assistir dos nossos lares, mesmo que inconformados, à chacina da população de Gaza, da Cisjordânia; uma mortandade praticada em nome dos «valores ocidentais», da civilização, da superioridade rácica, dos «nossos» direitos e interesses? Como se admite que se assaltem os nossos bolsos e as nossas mentes para defender os nazis-banderistas ucranianos permitindo a morte de mais de um milhão de pessoas? Por mais quanto tempo vamos tolerar o poder absoluto dos Melos, Montenegros, Von der Leyens, Costas, Santos, Venturas, mais as inevitáveis muletas dos Tavares trapaceiros e afins?
Teríamos agora pela frente uma grande oportunidade para proceder a uma eficaz varredela. Porém, não cultivemos ilusões: necessitamos antes de restaurar a democracia, processo que pode e deve começar já. Saberemos muito bem encontrar nos boletins de voto quem está, como sempre, disponível a 100% para seguir nessa direcção.
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