sábado, 10 de maio de 2025

A vergonha absoluta


"Acho que nunca escrevi um artigo em estado de maior indignação. O que se passa em Gaza e no território da Autoridade Palestiniana convoca não só a política, a geopolítica, as relações de forças entre Estados, o mundo do “Ocidente” e do Oriente, todos os conflitos em curso, o “Sul global”, o papel das Nações Unidas, mesmo o direito internacional, convoca tudo o que quiserem, mas tudo está abaixo de um repto moral, de uma obrigação de falar, de um dever de protestar e actuar perante um massacre cruel, diante dos nossos olhos, de um povo, o palestiniano. Só conheço uma comparação para esta indiferença, vergonhosa e também, ao mesmo tempo, a mais certeira e, num certo sentido, a mais diabólica: o encolher de ombros de todos os que sabiam que o Holocausto estava em curso – e havia muitos altos responsáveis entre os inimigos dos alemães que sabiam – e nada fizeram.

E não me venham com a história do anti-semitismo, que é um argumento insultuoso para justificar os crimes de Israel, da mesma natureza que o canto “desde o rio até ao mar” serve para justificar o massacre do Hamas. Estão bem uns para os outros.

Já sabemos que tudo começou com um massacre perpetrado pelo Hamas e que devia ter uma resposta israelita dura, como teve. Mas o que se passa nos dias de hoje é outra coisa, é outro patamar político, racial, nacional, que nada tem a ver com uma resposta com qualquer racionalidade militar para combater o Hamas. É uma política de destruição em massa de um povo e do seu “lugar”, e conheceu mais um agravamento na semana passada, com o anúncio da anexação de mais uma parte do território de Gaza ao Estado de Israel. Trata-se, certamente, de preparar a “Riviera” que um Presidente demente diz querer fazer. Bastava esta declaração de Trump, com a aquiescência cínica e interesseira de Bibi, para nós percebermos o grau de loucura que está à frente da maior potência mundial.

Ah! Sim, muita gente diz-se preocupada todas as vezes que Trump abre a boca, ou move as mãos para fazer aquela assinatura infantil em mais uma ordem executiva à margem da Constituição e dos poderes do Congresso, mas isso não chega. Em particular, não chega para a hipocrisia moral de muitos países da União Europeia, como Portugal, que nem sequer o passo de reconhecer o Estado palestiniano são capazes de dar. É uma atitude quixotesca? Se for levada a sério, com a instalação de embaixadas no novo Estado, a assinatura de acordos económicos, políticos e militares, com um Estado soberano, então a coisa fia mais fino. Acresce que Israel, violando todas as regras do direito internacional, conduzindo um massacre quotidiano, não tem sanções.

No entretanto, todos os dias se mata gente inocente, crianças, mulheres, velhos, sem sequer qualquer racionalidade militar que não seja destruir, matar ou atirar para fora da sua terra milhões de pessoas, para depois terraplanar as ruínas e lá instalar colonos israelitas, os mesmos que andam também a matar palestinianos nas terras da Autoridade Palestiniana, a base eleitoral dos partidos da extrema-direita que estão no governo de Bibi. Quem acredita que o que Bibi quer é dar a Trump os hotéis de luxo e as praias da costa de Gaza para fazer vários Mar-a-Lago, e que alguma vez alguém vai lá por o seu rico dinheiro para fazer uma estância turística, rodeada, por terra, por três muros e um pequeno exército de segurança e, por mar, por patrulhas em lanchas, está tão demente como Trump. Não é o caso de Bibi que quer outras coisas, todas locais, todas no Médio Oriente, todas culminando num ataque ao Irão. Para isso, ele até é capaz de construir a tal Riviera vazia de gente, como as aldeias Potemkin em cartão, deslocadas de quarteirão em quarteirão, para a glória de Trump e depois, conseguindo o que quer, trazer o seu eleitorado de extrema-direita para tomar banho na sua Riviera.

E, já agora, não convinha perguntar, em plenas eleições, algo de verdadeiramente importante ao PS, ao PSD, ao CDS, ao Chega, por aí adiante, se, chegando ao Governo, estão dispostos a reconhecer o Estado palestiniano, estão dispostos a impor sanções a Israel e a usar todos os meios ao dispor de um Estado da União Europeia para punir os criminosos? E, para além disso, o que é que eles acham do que se está a passar com as crueldades de Israel em Gaza?

As respostas seriam até uma razão bem mais sólida e moral para decidir o voto."

P.S. Historiador que é, tem obrigação, todos temos, de saber que um 6 de outubro de 2023 existia, e que já nesse 6 de outubro a ocupação criminosa da Palestina conhecia novos picos de brutalidade. Que nunca deixou de conhecer desde 1948. Sem essa percepção, sem esse reconhecimento dos muitos crimes hediondos dos últimos 77 anos, nunca o povo palestiniano conhecerá justiça.

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