domingo, 12 de março de 2023

Metafísica Processual e Ética Ambiental




“Ordinary men live so completely within the house of the Stagyrite that whatever they see out of the windows appears to them incomprehensible and metaphysical” C. S. Peirce

É longo o debate entre a filosofia substancialista e a filosofia processualista – dura pelo menos desde Heráclito e Parménides –, o qual tem tido grande impacto em todas as áreas do conhecimento, e, em particular, nas Ciências Naturais, com implicações ontológicas, epistemológicas e metodológicas. Para compreender o contributo desta perspectiva filosófica para a Ética Ambiental, que é o objectivo deste pequeno ensaio, será essencial uma apresentação breve destas filosofias, que será feita na primeira parte. De seguida, na segunda parte, será descrita a possibilidade de uma postura metafísica processualista nas Ciências da Vida, em particular em Ecologia, contrastando-a com a posição substancialista. Por fim, na terceira parte, será analisada a hipótese de uma nova Ética Ambiental, que integre os vários aspectos proporcionados por uma metafísica processual, e será então defendida a minha posição, enquanto investigador em História e Filosofia das Ciências.

A Filosofia do Processo
Alfred Norton Whitehead, uma das figuras mais proeminentes da Filosofia do Processo (Harvard University Archives)

A tarefa que caracteriza a metafísica é a de articular um conjunto fundamental de conceitos e perspectivas capaz de providenciar uma estrutura de pensamento capaz de compreender o mundo, e também o lugar do ser humano no mesmo. A metafísica, como disciplina intelectual, deve possibilitar um fórum no qual as disputas sobre a definição de fronteiras entre outras diferentes disciplinas podem ser conduzidas – por exemplo, a questão de se a biologia ou a ecologia podem ser subordinadas, de uma forma adequada, a uma disciplina mais fundamental, como a química ou a física (Lowe 2002). A metafísica pode ocupar este papel interdisciplinar, porque a sua preocupação central, pelo menos na assumpção de uma perspectiva aristotélica, é o da estrutura fundamental da realidade como um todo. Consequentemente, a metafísica, tal como é tradicionalmente concebida, é indiscutivelmente ineliminável e conceptualmente necessária como “pano de fundo” para qualquer outra disciplina – em última análise, porque a verdade é una e indivisível, ou, por outras palavras, o mundo (ou a realidade), como um todo, é unitário e necessariamente auto-consistente (Lowe 2002; Marmodoro e Mayr 2019). De facto, a metafísica não é, no seu cerne, uma ciência empírica – tipicamente não recorre a dados experimentais ou observacionais para fundamentar as suas alegações. No entanto, será razoável admitir que uma dada postura metafísica não deve ser edificada de modo a competir com os recursos que a ciência proporciona, mas, pelo contrário, pode, e na minha opinião deve, absorver e complementá-los com uma perspectiva harmoniosa e abrangente. O objectivo de uma metafísica robusta deve então ser o de desenvolver um conjunto de conceitos e princípios que torne possível elaborar uma descrição explicativa do real, unificada e adequada, que ao mesmo tempo integre e clarifique os resultados da ciência. Alguns filósofos têm defendido que assumir uma metafísica do processo pode proporcionar uma forma promissora de realizar este objectivo (Whitehead 1925, 1929; Sellars 1981; Rescher 1996, 2000; Bickhard 2008; Campbell 2009; Seibt 2018; Dupré e Nicholson 2018; Dupré 2020).

Segundo a tese destes autores, o sucesso de uma metafísica processual deverá estar relacionado com ideias respeitantes aos conceitos de processo e actividade, que permitirão caracterizar e tornar mais inteligível o funcionamento do mundo tal como este é discernido. Uma metafísica processual, numa abordagem geral, sustenta que a existência física de algo é fundamentalmente processual, e que são os processos, e não coisas, que representam melhor os fenómenos do mundo natural, em contraste com a metafísica substancialista, que tem dominado a filosofia ocidental. De acordo com esta visão substancialista tradicional, o mundo é composto por coisas e respectivas propriedades, substâncias no sentido aristotélico. Esta mundividência assume que todas as coisas existentes são físicas, e alega que o conhecimento sobre a realidade é obtido considerando a distribuição destas entidades fundamentais e das suas propriedades essenciais. Assim, tudo o que acontece no mundo é determinado, em última análise, pelo comportamento destes “pedaços básicos de matéria” (Campbell 2009: 454).[1] A metafísica processual então representa uma alternativa à metafísica substancialista, como uma tentativa de acomodar as realidades empíricas, derivando uma estrutura de conceptualizações e ideias que integra os produtos da investigação científica moderna num pensamento processual estruturado e coerente, na esteira de uma tradição filosófica que começou com Heráclito (Rescher 2000; Seibt 2022).

A metafísica do processo é, portanto, uma jornada no terreno da metafísica, esta sendo como a teoria geral da realidade. A sua preocupação é com aquilo que existe no mundo e com os termos de referência através dos quais esta realidade deve ser entendida e explicada. A ideia principal por trás desta abordagem é a de que a existência natural de algo deve ser compreendida não em termos de coisas, mas antes em termos de processos – em termos de modos de mudança e não de estabilidades fixadas. Para os filósofos processualistas, a mudança, seja de que tipo for, é então a característica do real mais predominante e arraigada. Recentemente tem havido uma crescente apreciação filosófica da importância do processo, ou de dinâmicas mais processuais; ou seja, o objecto de estudo, que antes era considerado um certo tipo de substância, é visto sob um foco diferente, como sendo um certo tipo de processo (Rescher 1996, 2000; Bickhard 2008; Campbell 2009; Dupré 2020). Numa ontologia processual, o que seria pensado como um objecto constante torna-se meramente uma estabilidade temporal num fluxo constante de mudança, “um redemoinho num fluxo de processo” (Dupré 2020: 97).[2] Se numa ontologia substancialista os objectos persistem ao longo do tempo, numa ontologia processualista, pelo contrário, o processo é algo para o qual a mudança é essencial, sendo defendida então uma primazia da mudança, onde tudo no mundo está em mudança contínua, pelo que o surgimento de entidades estáveis deverá ser, em última análise, algo ilusório (Rescher 1996, Dupré 2020; Seibt 2022).

O principal desafio a que uma ontologia processual deverá então responder será o de explicar a emergência de entidades estáveis no mundo natural. Quando algo sofre uma mudança, num mundo substancialista isto requer uma explicação – explicar porque é que as coisas mudam foi sempre considerado como um dos objectivos da ciência. Mas num mundo processualista a mudança é ubíqua, e, antes de compreender porque é que algo que se identifica como estável muda, deve-se entender em primeiro lugar porque é que este algo que muda se mantém idêntico a si próprio: na perspectiva processual, é a estabilidade que tem de ser explicada, sendo esta uma implicação epistémica relevante da metafísica processual (Rescher 1996, Dupré 2020; Seibt 2022). Como se verá mais à frente, o facto de a mudança ser a norma e, de forma crucial, ser a relativa estabilidade das coisas que tem prioridade na ordem da explicação, é importante na assunção de que a estabilidade é alcançada através da mudança; por exemplo, a actividade inerente aos sistemas vivos pressupõe que ser estável é ser dinâmico.

Esta é a razão pela qual uma metafísica do processo se opõe diametralmente à visão substancialista, que nos chega desde Parménides, e que nega os processos, ou os diminui na ordem do ser ou no nível de entendimento, subordinando-os às substâncias. O que é caracteristicamente definitivo na perspectiva processualista não é o reconhecimento dos processos naturais como os iniciadores activos daquilo que existe na Natureza, mas antes a insistência em ver os processos como constituindo um aspecto essencial de tudo o que existe – um compromisso com uma natureza processual do real nos seus fundamentos. Portanto, numa visão processualista, aquilo que existe na Natureza é não apenas originado e sustentado por processos, mas é, de facto, inexoravelmente caracterizado por eles (Rescher 1996, 2000). Os processos devem por isso ser simultaneamente generalizados no mundo natural e fundamentais para a sua compreensão.

É importante salientar que há duas correntes interrelacionadas na filosofia do processo (Rescher 1996; Dupré e Nicholson 2018): uma é conceptual ou epistémica, a outra metafísica ou ontológica. Até aqui descrevi a filosofia do processo em termos metafísicos, embora já tenha referido a implicação epistémica de explicar a estabilidade, mas esta divisão é importante porque há investigadores que abordam as questões científicas de acordo com as referidas correntes. A abordagem epistémica baseia-se na ideia de que a noção de processo providencia os instrumentos conceptuais mais apropriados para compreender o mundo. A abordagem ontológica assenta na ideia de que a abordagem epistémica tem sucesso porque os processos são de facto a característica mais abrangente e crucial da realidade. Tem-se então duas versões da filosofia do processo: uma versão forte, que advoga um reducionismo ontológico, no qual todas a coisas físicas são reduzíveis a processos físicos; e uma versão fraca, na qual se defende uma forma de reducionismo conceptual, que considera que a elucidação de uma coisa tem de recorrer necessariamente a ideias processuais. Por conseguinte, de acordo com o que os filósofos processualistas alegam, a suposta predominância e permanência das “coisas” será apenas uma ficção heuristicamente útil, que, em último caso, pode conduzir a uma ilusão falaciosa.

Portanto, e de acordo com uma visão processualista, num mundo dinâmico as coisas não podem existir sem processos, e estes são mais fundamentais do que aquelas. Deste modo, o devir e a mudança tornam-se os temas centrais de uma metafísica processual, sendo esta uma postura que contraria a insistência de Aristóteles na primazia da substância e das suas ramificações, bem patente na metafísica ocidental tradicional – que sempre exibiu um forte enviesamento a favor do substancialismo (Rescher 1996; Seibt 1996, 2022). A reversão desta perspectiva, na filosofia processual, é deliberada, insistindo em ver os processos como básicos na ordem do ser, ou, pelo menos, do entendimento. O devir torna-se consequentemente mais importante do que o ser — ou seja, aquilo para que as coisas se dirigem é mais importante que a forma actual da coisa. Desta forma, uma apreciação apropriada da realidade deve priorizar: actividade e não substância, processo e não produto, mudança e não persistência, novidade e não continuidade. Nesta apreciação é também importante enfatizar que o tempo é um factor essencial para distinguir substâncias e processos. Os processos estendem-se no tempo, eles desenvolvem-se no tempo e não existem processos instantâneos, sendo a mudança algo essencial para a sua ocorrência. É por este motivo que a mudança, ou melhor, a dinamicidade, se considera fundamental ou primitiva na filosofia do processo – ela é extensa no tempo e, tal como o tempo, é contínua. Assim, será inapropriado considerar um processo como uma sequência de eventos particulares, porque concebê-lo como uma série de episódios temporais discretos é menosprezar a dinamicidade que se pretende relevar. Desta forma, um processo não pode ser concebido como um mero conjunto de presentes sequenciais, uma sequência discreta de eventos, mas sim como uma estrutura de continuidade espaciotemporal, que permite-lhe preservar a auto-identidade devido à complexidade interna que lhe é inerente. Um processo não é caracterizado pelas suas propriedades essenciais contínuas, como o admitiria o substancialismo para uma substância, mas pela sua história, pela estrutura temporal do seu desdobramento ao longo do tempo.

Filosofia do Processo e Ciências da Vida

De acordo com alguns filósofos proeminentes, a compreensão das ciências da vida tem sido dificultada por uma metafísica inapropriada, nomeadamente pela preponderância de um substancialismo inerente àquelas (Rescher 1996, 2000; Bickhard 2008; Seibt 2018; Dupré e Nicholson 2018; Dupré 2020). Consequentemente, um modelo conceptual alternativo, assente na filosofia processualista, tem sido proposto, existindo fortes motivações empíricas para uma viragem de paradigma, um “process turn” (Seibt 2018: 113), em particular em fenómenos de metabolismo, ciclos de vida ou interdependências ecológicas (Campbell 2009; Dupré e Nicholson 2018; Seibt 2022). A tese metafísica subjacente é a que descrevi na primeira parte: a de que o mundo vivo é composto por processos, ou, pelo menos, mais bem compreendido e explicado como tal, e fortemente dinâmico. Mais especificamente, o mundo vivo deve ser entendido como uma hierarquia de processos, estabilizados e activamente mantidos em diferentes escalas temporais. Ainda que esta hierarquia possa ser pensada em termos mereológicos abrangentes (átomos, moléculas, células, órgãos, organismos, populações, comunidades, ecossistemas, etc.), ou seja, em termos de coisas substanciais, os filósofos processuais relacionados com as ciências da vida defendem que aqueles serão compreendidos de uma forma mais adequada como processos. Os processos nesta hierarquia não só se compõem mutuamente assim como oferecem condições para a persistência dos outros membros, sejam menores ou maiores na escala. Um ponto relevante é que estas tendências recíprocas não são apenas estruturais, são também sustentadas em actividade, um ponto que enfatizei na primeira parte.

Em concordância com o que pretendo explorar na última parte – a contribuição de uma metafísica processual para a ética ambiental –, será crucial reconhecer que um ecossistema, uma população ou um organismo individual, cada um sendo um todo próprio, estão continuamente a ser constituídos; contudo, eles também influenciam de forma contínua que componentes entram na constituição do seu todo, e a forma como estes componentes mudam e interagem. Tais dependências circulares entre um todo e as suas partes podem, em princípio, ser acomodadas dentro de uma teoria sobre indivíduos comprometida com os princípios básicos do paradigma substancialista. No entanto, isto dificilmente será atingível, especialmente quando se envolve a alegação de que indivíduos concretos são completamente determinados (Santos 2015, 2020). É neste sentido que os filósofos processualistas advogam que relações de constituição mútua podem ser ferramentas teóricas legítimas dentro de uma filosofia processual, em que definições recursivas que se entrecruzam não entram em conflito com os dogmas básicos sobre entidades individuais (Seibt 2022). Se, por um lado, estes filósofos admitem que abordagens substancialistas em ecologia, biologia do desenvolvimento, ou biologia evolutiva, têm em princípio um valor heurístico, por outro lado afirmam que alguns fenómenos do mundo vivo serão apenas compreendidos numa abordagem processualista.

Os sistemas biológicos e ecológicos são, como condição necessária, sistemas abertos e activamente organizados, interagindo de forma essencial com o ambiente. É através do controlo interno de tais interacções que estes sistemas mantêm as suas condições de viabilidade e controlam a sua própria reprodução e continuidade. A consequência ontológica que decorre deste aspecto é que se torna difícil dizer o que estes sistemas são sem ter em conta estas interacções. Numa metafísica processualista, as entidades biológicas e ecológicas são constituídas como sistemas processuais coesos, que se mantêm devido a estas interacções internas e dinâmicas (Campbell 2009; Dupré 2020). A operação destas interacções é o que explica como é que os processos se comportam de uma forma integral, individualizando as entidades biológicas, tornando-as distintas do seu ambiente, ou seja: é a forma como estes processos internos estão organizados que determina se um sistema pode manter a sua própria existência, como um todo integral funcional, através dos seus modos de actividade (Campbell 2009).

Um ponto relevante para uma perspectiva ética sobre o ambiente, que advém desta análise processualista, é que a interdependência ecológica coloca problemas importantes para a ontologia substancialista. A razão mais proeminente para tal é que esta ontologia tipicamente considera as relações ou interacções de uma dada entidade como completa e inequivocamente externas a estas – portanto, uma entidade é o que é, independentemente das relações nas quais participa. Desta forma, uma pré-condição para esta putativa independência de uma entidade seria a existência de limites relativamente bem definidos, o que permitiria uma individualização e uma identificação objectivas daquela como uma unidade discreta (Dupré e Nicholson 2018). Para além do mais, as propriedades de uma entidade, estabelecidas como essenciais e intrínsecas numa ontologia substancialista, que determinariam a sua existência contínua e as suas fronteiras, seriam fundamentadas em características que estão inteiramente dentro destas mesmas fronteiras.

No entanto, a interconexão intrínseca dos sistemas ecológicos, sejam eles populações de uma espécie, comunidades (conjunto de populações da mesma espécie ou outras), ou ecossistemas (onde se englobam todos os componentes bióticos, como as comunidades, e todos os factores abióticos, ou seja, os componentes físicos e químicos da área envolvida), desafia todas estas assunções substancialistas. Estas entidades ecológicas persistem em virtude de redes intricadas de relações que mantêm entre elas, que, em parte, lhes conferem as suas propriedades, capacidades e comportamentos que as distinguem. Em ciências da vida, as entidades estudadas podem ser mais facilmente consideradas, ou pelo menos compreendidas (se a abordagem for epistémica), como processos, do que como coisas ou substâncias. Como processos, em contraste com as substâncias, as entidades biológicas e ecológicas devem ser fundamentalmente concebidas como entidades relacionais que afectam o ambiente e são afectadas por ele, no qual estão firmemente incorporadas, e o qual é também constituído por outros processos. Populações, comunidades e ecossistemas não são conjuntos de coisas relativamente autónomas, mas sim redes complexas de processos interdependentes (Bichkard 2008; Dupré e Nicholson 2018; Seibt 2018; Dupré 2020). Este “entrelaçamento” pode tornar extremamente difícil estabelecer de forma inequívoca as fronteiras de um sistema ecológico, ou mesmo determinar o número de entidades envolvidas. Por isso as relações ecológicas devem ser consideradas, ou compreendidas, como uma rede complexa de processos interligados, e, por conseguinte, uma ontologia processual pode tornar-se uma postura atractiva e robusta a adoptar em vários contextos de compreensão dos fenómenos ecológicos. A perspectiva processualista, para além de providenciar uma justificação metafísica convincente para algumas críticas importantes ao substancialismo, será também um contributo significativo, na minha opinião, no sentido de incrementar uma maior sensibilidade, e talvez consciencialização, na opinião pública para as questões ambientais – um aspecto que vou explorar na secção seguinte.
Metafísica do Processo e o nosso Dilema Ambiental

Se, por um lado, os ambientalistas estão a vencer, no sentido em que estão a conseguir passar a mensagem de que a destruição ecológica em larga escala é uma séria ameaça para toda humanidade, e de que esta crise se deve a uma incompreensão das dinâmicas da biosfera, por outro lado os ambientalistas estão a perder, porque a sua influência nas políticas governamentais não é a esperada, sendo eles talvez apenas mais um grupo de pressão pouco eficaz junto daquelas. Além do mais, é evidente que, se é certo que há uma certa conformidade da opinião pública com o politicamente correcto acerca do ambiente, no entanto a maioria das acções individuais são o oposto do que é necessário para enfrentar os problemas ambientais. Há uma miríade de razões para que assim seja, mas, do ponto de vista da minha análise, a mais importante é o desapossamento de poder político da esmagadora maioria da população, com a consequente concentração daquele nas mãos de uma minoria interessada em manter a ordem existente. Para além de um mercado livre no qual bens naturais e não naturais são mercantilizados e privatizados, onde operam poderosas corporações que manipulam e controlam Estados, a maior parte da população vive numa situação de luta pela sobrevivência, e, portanto, sem condições para preocupar-se com a sustentabilidade ambiental. A única liberdade que ainda existe, para os poucos que são abastados, é a de consumir, numa lógica de individualismo possessivo, daí o interesse em expandir a economia e aumentar o poder de compra (Macpherson 1962). Mesmo que estivessem preocupados com o ambiente, não há muito espaço para os poucos decisores ainda com algum poder conseguirem inverter o rumo. De certo modo parece que se criou um sistema global de poder que ninguém controla, que constrange as pessoas a actuar de forma que o poder deste sistema aumente, até que este continue a expandir-se e destrua as condições da sua própria existência.

Talvez os ambientalistas, de uma forma inconsciente, se tenham tornado parte do sistema, ainda que numa posição subordinada, no sentido em que se tornaram os que têm a custódia do pensamento ético sobre o ambiente, não valorizando a contribuição de outras áreas, como a economia ou políticas públicas. Também os gestores ambientais ganharam preponderância nas últimas décadas, e talvez por isso as universidades, também tentando responder ao seu mercado de serviços a vender à sociedade, se tenham apressado a formar pessoas nesta área. Esta divisão de papéis, sobre assuntos relacionados com o ambiente, a desempenhar na comunidade, na minha opinião, leva o cidadão comum a deixar as questões ambientais para os peritos, desresponsabilizando-se, e afastando-se de qualquer processo decisório.

Ernst Jünger, um espectador atento da fragmentação da sociedade humana, especialmente na sua obra “Die Arbeiter” (O trabalhador), publicada em 1932 (Imagem de GettyImages)

Esta fragmentação de funções, na minha perspectiva, seja do trabalho ou do conhecimento, destrói a capacidade de os cidadãos pensarem na sua relação com o resto da sociedade com o ambiente, ou de colocarem-se a si próprios e as suas acções numa perspectiva mais abrangente — ponto intimamente ligado com a reflexão sobre a alienação do trabalhador efectuada na obra de Marx. Representa uma mecanização e uma automatização do cidadão enquanto trabalhador, questão já escrutinada também por Jünger (1932), degradam o trabalho humano e destroem a sua dignidade. Há também, penso eu, uma certa desvalorização da ética, que se deve à dimensão e complexidade do caminho entre uma acção humana e o seu efeito final. Ou seja, a maioria dos cidadãos apenas está ciente da minúscula manipulação que efectua numa só secção de um processo produtivo, raramente vendo ou percebendo o produto final. Creio que é isto que subjaz à crise ecológica global – o cidadão comum conduz a sua vida quotidiana dando os pequenos passos que inexoravelmente levarão à uma destruição ambiental global, sem ser consciente disso. Observa-se, portanto, uma fragmentação do trabalho, uma perda de responsabilidade e uma corrosão da ética.

Seria então necessário, como condição mínima para ultrapassar esta dificuldade, providenciar os meios para que cada um dos cidadãos compreenda os efeitos das suas acções. Estes meios requereriam uma transcendência de perspectivas fragmentadas (Gare 2008), que vinculasse ética e filosofia política, filosofia com a arte, ciências humanas, ciências naturais e tecnologia, e que vinculasse cada uma destas áreas com todas as outras, de uma forma compreensível para o cidadão comum. Uma metafísica processual pode oferecer uma base para esta integração, no sentido em que cada pessoa possa compreender-se melhor a si própria, e orientar-se melhor, como pertencendo a uma narrativa (MacIntyre 1984). Esta historicidade da vida de cada um, com uma actividade imanente, adequa-se à dinamicidade e continuidade espaciotemporal que caracterizam a metafísica processual, como referi acima, de modo que acções particulares, indivíduos, instituições, países, ecossistemas e toda a biosfera se possam relacionar através das suas narrativas intercruzadas, em que o tempo será um factor essencial. Só quando um cidadão for capaz de pensar a “narrativa” que está a viver (e de a construir), como uma estrutura temporal a desdobrar-se ao longo do tempo, é que ele será capaz de a mudar, e, por conseguinte, transformar as suas instituições e a sua sociedade pelas suas acções, e como aquelas se relacionam com o ambiente. Se for providenciada uma justificação metafísica, por uma filosofia processual, para a construção da narrativa humana, com os seus feitos, falhanços, tendências e potencialidades, desde civilizações (como macroprocessos) até a instituições e indivíduos específicos (como microprocessos), toda a acção humana pode ser compreendida e reavaliada. Apenas uma macronarrativa consegue orientar o cidadão comum, para que este se interrogue acerca do seu percurso individual, do caminho da sociedade à qual pertence e do rumo do mundo vivo do qual depende. Só assim os cidadãos enfrentarão os problemas ambientais, reconsiderando o seu lugar na história e a sua responsabilidade na construção do futuro. Esta será, na minha perspectiva, a condição essencial para a mobilização de qualquer cidadão, no sentido de enfrentar os problemas ambientais e de lhe oferecer os conceitos necessários para criar uma ordem social, política e económica que melhore as suas condições ecológicas.

É certo que o fundamentalismo de mercado, que preconiza que o objectivo da vida humana é conseguir mais dinheiro para consumir mais, e assim possuir mais, está disseminado de forma profunda na sociedade (Macpherson 1962), e identifica-se de algum modo com liberdade e democracia, de acordo com uma mundividência neoliberal. Se os cidadãos se vêem a si próprios como apenas trabalhadores/consumidores, será mais difícil se interessarem por problemas mais abrangentes, sejam eles sociais ou ecológicos. Na minha opinião, uma metafísica processual pode ser importante no fortalecimento do sentimento democrático dos cidadãos, com responsabilidade acrescida e um envolvimento mais activo, permitindo, desta forma, uma certa emancipação do consumismo. Em concordância com esta posição metafísica, tem de se assumir que as pessoas são agentes, com capacidade de decisão, capazes de deliberar uma acção colectiva, assente numa vontade informada, e de se comprometer com essa acção.

Estas assumpções são pouco inteligíveis numa perspectiva substancialista e de materialismo científico. Será mais adequado, na minha opinião, que o cidadão se considere a si próprio algo dotado de agência, fazendo parte de uma narrativa que é o cerne da sua acção, individual e colectiva, e não como uma entidade discreta, passiva, sem uma história, pouco afectada por aquilo que o rodeia, e com pouca capacidade de afectar o meio envolvente – como referi acima, vinculada a um determinismo. Ou seja, como referi na segunda parte, qualquer pessoa, como qualquer sistema biológico ou ecológico, é uma entidade relacional, seja em termos sociais ou ecológicos, vive num cruzamento de processos interdependentes, na sua sociedade e num ecossistema (a biosfera, para a humanidade). Qualquer um de nós influencia o ambiente e é influenciado por este, e estamos continuamente a ser constituídos de forma recíproca, nós e os ecossistemas nos quais estamos imiscuídos, pelo que a visão da humanidade como um conjunto de entidades fragmentadas, autónomas e indiferentes, e relativamente separada do sistema ecológico do qual depende, é uma perspectiva substancialista que não contribui para uma consciencialização do problema ambiental.

Frederick Taylor, o “pai” da gestão científica e subsequente instrumentalização dos seres humanos enquanto trabalhadores (British Library Archives)

A fragmentação do trabalho que referi acima é então um dos obstáculos que tem de ser ultrapassado. O Taylorismo (e depois o Fordismo), que colocou o conhecimento e o poder de decisão na mão dos gestores, possibilitou, e extremou, um “reducionismo” dos trabalhadores a instrumentos, como se fossem peças de uma engrenagem – uma visão puramente substancialista, reducionista e mecanicista. É neste sentido que uma visão do todo, ou de uma estrutura mais profunda, do real é dificultada pelo substancialismo, porque os modos correntes de percepção não estão aptos para apreender a totalidade que nos rodeia. Uma tal apreensão é necessária, no meu ponto de vista, para que cada entidade consiga tornar mensurável o impacto das suas acções na vida e na totalidade da estrutura envolvente, como um ecossistema ou a sociedade. E, como afirma Alexander (2002), também esta capacidade de sentir tem de ser melhorada, devido ao facto de que as pessoas estão dominadas por uma visão mecanicista e reducionista (também redutora?) do mundo, na qual a linguagem está contaminada de forma que os sentimentos são encarados como estados emocionais estritamente subjectivos. Logicamente, impõe-se, então, a necessidade de que o sentir não seja considerado meramente subjectivo, mas sim algo singular que vem do todo. O relacionalismo subjacente a uma metafísica processual torna-se relevante neste ponto, no sentido de defender que o sentimento pessoal cresce em nós, mas vem do todo, no sentido em que a subjectividade advém da totalidade da rede de relações entre indivíduos e coisas, ou seja, um sentimento verdadeiro deverá ser uma experiência de totalidade.

Esta necessidade holística será igualmente facilitada por uma metafísica processual, pelo menos numa versão epistémica, ou seja, se a ideia de processo proporcionar instrumentos conceptuais mais adequados para sentir e compreender o mundo. Numa compreensão abrangente e sentida da interdependência ecológica, qualquer cidadão sentir-se-á mais livre para viver e actuar de acordo com o que considerar mais correcto, para si, para os seus e para a natureza envolvente. Será a condição para qualquer ser humano viver uma vida plena, ganhando um sentimento de si mais vasto, participando, através da construção da sua narrativa de acções, na construção da sua sociedade e do seu ambiente natural.

Como referi na segunda parte, um ser humano, ou qualquer organismo ou ecossistema, numa perspectiva processualista, dificilmente será percepcionado como tendo fronteiras bem definidas, dentro das quais estariam as suas propriedades intrínsecas e essenciais. Qualquer sistema vivo é fluido, vivendo em redes complexas de interacções recíprocas, trocando matéria, energia, informação e experiência de forma contínua e não episódica. É por isso premente uma mudança na ética ambiental e não apenas uma extensão desta, como já se anteviu há décadas (Sylvan 1973). É necessária uma ética que tenha o objectivo concreto de mudar a natureza do trabalho, de modo que os trabalhadores não se sintam reduzidos a instrumentos nas estruturas de gestão Tayloristas, mas sim participantes activos na construção de formas sociais e naturais, e não como objectos passivos, impotentes e desligados do sistema ecológico no qual estão inseridos. Acredito que a filosofia do processo oferece uma justificação metafísica convincente para uma integração de todos estes aspectos numa nova ética ambiental, providenciando a visão inspiradora que falta para transformar a nossa civilização e evitar a catástrofe ambiental que porá fim à narrativa da humanidade, pelo menos nos termos em que a conhecemos.
Referências

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No original: “basic bits of matter”.

No original: “eddies in the flux of process”.

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