Embora nem toda a obra de Aquilino Ribeiro se inscreva na vertente do regionalismo, o leitor mais fiel fica atento, à partida, à observação de quadros pictórico-descritivos sobretudo da Beira, província onde ele nasceu e de onde colheu quadros gentílicos, por um lado reveladores de grande sacrifício dos homens pela sobrevivência, por outro, lugares de recurso, para descanso de suas vidas agitadas e de esforços sobre-humanos, a fim de alcançarem vias de liberdade, igualdade e fraternidade que ecoavam de França, das instâncias livrescas de Voltaire, Zola, Hugo, Anatole France. Para o nosso mestre, uma Beira onde construiu o abrigo segundo a sua planta de viver: “mestre, tirante os de mão-de-obra, são raridade cá na terra E muito mais quando se trata de operários das letras, gente mal afiançada […] Mestres topam-se lá fora, em cada esquina, pois, nesses sítios, quase todo o frango, logo que toma crista, tem direito a senhorias […] No caso singular de Aquilino, porém, aconteceu que não houve quem hesitasse ou se julgasse lesado: mestre por unanimidade”(1)
Local onde nasceu Aquilino: o largo da aldeia do Carregal onde o "mestre" nasceu foi requalificado através dos seus escritos
O facto é que concentramos toda a nossa atenção em eventuais descrições paisagísticas, de cor, cheiros, sabores, passeios por montanhas e à beira de riachos, pulando quebradas e rochas, ao frio intenso ou ao calor infernal da terra. No falar do povo, como a resposta de João à pergunta que lhe haviam feito: “ – Vi sim, senhora; olhe, passou há nadinha Farrusca do tio Zé Narciso com uma grande trancanaz de pão nos dentes”(3) A Farrusca era a cadela. Nos comentários do próprio autor, “mofina e rabugenta, Rosa encomendava-o a todas as tranquibérnias do Mafarrico. Também [os mais abastados] haviam de morrer, também eram um saco de podridão como os pobres!” (4). E, ao falar da mulher, a beirã, “que ia encostando ao traço dos manguais as gabelas mergulhadas, cega de poalha, rolando e desenrolando-se, de gatinhas e às arrecuas, lembrava a ursa sábia no vaganau das festas” (5). E ao escrever sobre tantas coisas mais.
Joel Serrão realça, a propósito, que o suporte filosófico primacial do romance naturalista é o positivismo; que a percepção da arquitectura social concreta do País não tem sido instrumentalizada pelos nossos naturalistas; e que a realidade da sociedade portuguesa se definiria, a traços largos, bipartida: os poderosos e seus apaniguados (que formavam um grupo privilegiado) e o povo (que à Idade Média, ficaram a dever o nome de laboratores). Assim, à época, não muito distante da nossa, o caminho a seguir não é aquele que, a partir da obra, desemboca na realidade que a informou, que a vemos, cada vez melhor, nos dias de hoje, sem esperança alguma de desvanecer-se a caminho da igualdade de oportunidades. A Constituição e a balança da justiça obrigam a retirar peso aos primeiros e dar ao Povo o que lhe falta.
Num trilho que se inicia na alta burguesia em que se insere Eça de Queirós, até chegar a Aquilino Ribeiro, o autor vai-se aproximando deste, com a indicação e os comentários acerca de Os Famintos e, especialmente, Os Pobres e a Farsa, de Raul Brandão, Os Pobres, prefaciados por Guerra Junqueiro, havendo, no entanto, alguns outros antecedentes.
A revista Seara Nova, lançada em Lisboa, a 15 de Outubro de 1921, fora criada pelo “Grupo da Biblioteca Nacional”, com uma publicação a ter como foco principal a promoção de uma reforma da mentalidade dos Portugueses, através da crítica e análise da situação educacional, política, económica e social do País; da proposição de soluções para os casos que se levantaram com a crise da Nação e de uma tentativa de uma maior força reformadora bem actuante, de carácter pedagógico-doutrinário. Para nós era tudo por demais teórico e utópico, só que funcionaria também no sentido de chamar a atenção dos responsáveis pela degradação a que Portugal havia chegado, dada a desatenção continuada dos seus mandantes.
A iniciativa de criar essa publicação de Doutrina e Crítica surgiu como resultado de reuniões organizadas por alguns elementos dissidentes da sociedade, entre 1919 e 1927. De entre esses intelectuais, encontravam-se Jaime Cortesão, Raul Proença, Raul Brandão, Câmara Reis, Augusto Casimiro e Aquilino Ribeiro. Cientes da grave situação do País e intentando apresentar projectos de reestruturação nacional, esses homens preocuparam-se em fazer desse periódico um espaço para a discussão de temáticas que girassem em torno de doutrinas políticas e sociais; problemas morais e filosóficos; educação; crítica social; história; crítica literária, artística e teatral, de entre outros assuntos, havendo um espaço reservado também à publicação de textos literários em prosa e em verso, com “bonecos” legendados. Os seus principais objectivos centravam-se na apresentação do real propósito da publicação e que era a sua entrada no cenário português e no papel da elite intelectual no projecto que ali se delineava.
Como o sabemos, por estes tempos, encontram-se na forja os camponeses de Aquilino Ribeiro, com a explanação do significado dos mesmos, para além da sua autenticidade humana no contexto global da Literatura Portuguesa.
Aquilino sublinha o papel dessas mulheres e homens sacrificados, de famílias no limiar da pobreza que evocam ante nós estruturas sociais advindas de uma realidade que é colocada ante os nossos olhos, para os que lêem e que não vêem, para aqueles que o sabem mas não querem ver.
Todos temos consciência - e o autor também a tem – de que o sentido de tempo no campo é diferente do da cidade. Sempre assim foi, desde que temos a devida noção do que distingue a cidade do lugar, entre o meio urbano e o rural. As tentativas várias de pôr em prática novas medidas – a serem aceites -, corriam como uma seta pelas áleas e trilhos da aldeia ou da vila. E os lugarejos? Como chegar a eles? Como fazer com que o camponês, alheio à cultura, à literacia e avesso à novidade, entenda ou mesmo tome consciência de que alguém possa estar a lutar por ele?
Libório Barrelas é o primeiro a dizer, em A Vida Sinuosa, que, com grande consolo, depois de ver países tão raivosos de progresso, veio “topar a Lamego não só eivado da noção de tempo mas refractário de todo à febre moderna”(6). Libório foge para Lisboa e dos acontecimentos que se sucedem falam Lápides Partidas (7),já por nós tratadas num outro artigo (8). É vasta a grande novidade dos romances de Aquilino: a de uma sociedade rural que, sendo antiquíssima, é, no entanto, nossa contemporânea e existe, porque nos viu nascer a todos.
Na obra romanesca de Aquilino, “é patente a primazia das raízes nacionais da sua inspiração tanto no que respeita às fontes literárias como no que, directamente, se reporta a dada realidade humana e social, esteticamente criada. Daí lhe advêm, como se nos afigura, quer as suas grandezas quer as suas limitações. Limitações e grandezas estas que são, com efeito, as nossas e, das quais, se bem julgamos, o romance português posterior tomou conhecimento, em boa parte, por obra e graça dos livros de Aquilino” (9).
O Mestre da Estrada de Santiago (10) e das Terras do Demo (11), entre mais de uma centena de longos textos, relata observações objectivas, com críticas acérrimas, em periódicos nacionais e estrangeiros, seja vivendo em Portugal, ou, quando de França e de outros lados, nos envia informes e notícias.
Como romancista – assim designado quantas vezes com impropriedade, dado que o realismo aquiliniano se instalou no Aquilino romancista -, procura transmitir à sua obra uma sinceridade, ao mesmo tempo pessoal e colectiva, no que respeita à identificação com o meio, cujo quadro social lhe é necessário para que os seus textos, únicos na nossa Literatura, não se percam em abstracções e lirismos. Nem se justificava. Porquê? Porque quanto não havia para contar e recontar directa ou analogicamente do fim da Monarquia e da 1.ª República à ditadura Salazarista viveu esses tempos, quer nas cidades ou no campo, fosse em Portugal ou no Estrangeiro. Conviveu com Unamuno, Anatole France, com Leal da Câmara e quantos mais.Quer dizer, pode tomar contacto com mestres nacionais e de fora, que pela pena, pela oralidade e pelo desenho e caricatura, expressaram as mesmas críticas, contundentemente, sobre a miséria social, política (a todos os níveis) e cultural, sem dó nem piedade. Tal como hoje, então, o Povo vivia na miséria profunda, alimentando-se daquilo que “a medo” a terra produzia. A ignorância a todos os níveis, como hoje mesmo entre políticos e doutores, passava as malhas da decência e era inatingível pelos mais pobres, sobretudo do Interior. Séculos XIX, XX e XXI… que diferença?
Reportamo-nos, pois, a passagens que se desenrolam em cenários rústicos pluridimensionais, a personagens que desfilam nas suas galerias de gente vivida, a aguarelas, em tons pastel ou forte, a uma linguagem brava, mas única, usada por poucos que tiveram a audácia de escrever no seu Português natal, para que não possa vir a ser traduzido em mais nenhuma outra língua. Se assim não fosse, era a descaracterização total das gentes, das suas atitudes e do meio em que se movem que daí resultaria. Era também a perda de textos e de um autor, na sua unicidade verbal, no seio do comum e do mais usual que a nossa arte literária tem para mostrar.
Os seus serranos são talvez mais genuínos que os animais do monte. Perfilam-se como árvores que alargam as frondes à luz do Sol, como o riacho que se lança por entre penhascos e vai desferindo o seu poético, límpido e fresco marulhar, como o cantaram antes Bernardim, Camões e Sá de Miranda; ou a queixar-se, desolado, durante as noites negras de gelo, vento e invernia. À boca de cena, sempre a mulher e o homem, os velhotes e as crianças, o jovem… que vivem a combater, a blasfemar, valendo-se das manhas que Deus lhes deu a conhecer. Por isso, também sabem, inocentemente, rir e parodiar, para viver.
É assim o homem. E também a natureza. São desta união os beirões, resultado da natureza em que foram nados e criados, nas serranias, pelos locais onde Aquilino veio ao mundo, brincou, estudou e foi criado. De Sernancelhe a Viseu, passando por Lamego. Ultrapassou o Tejo e foi a Beja. Daqui visitou Lisboa, onde se deteve, regressando a casa de um tio, nas Terras do Demo, a Tabosa, para partir para Paris, de seguida.
Lado a lado com os horizontes permitidos aos seus iguais e com aquelas obras únicas, a par de tantas outras… Aquilino, numa narrativa gentílica de supersticiosa fé popular, em lendários tesouros, ainda da resistência aos obstáculos da natureza – a duna, o temporal, a chuva, a neve, o vento, o orvalho, o granizo e o gelo… - é esta a de A Batalha sem Fim (12), um dos seus mais impressionantes romances. É a luta de um visionário que vai tentar descobrir um tesouro que o libertasse da servidão milenária, como hoje tantos o gostariam de encontrar e a quem tudo tem sido roubado, como então, paulatinamente, causando no Povo um desgaste inqualificável.
O autor situou-o à beira-mar, a fim de nos proporcionar o vislumbre de uma prodigiosa galeria de tipos, e fixar, para todo o sempre, expressões e modismos da linguagem ribeirinha, também esta rica e pitoresca. Faltaram no nosso autor o mar e o retrato dos que vivem nele, vegetando à sua beira, atentos aos perigos e às falsidades da planura verde, “onde nem sequer há um pinheiro que se enxergue”, no extenso verde-esmeralda das águas em movimento.
Além da linguagem de que se serve Aquilino ser da melhor que, alguma vez, se escreveu no País, vemos também, neste esplêndido texto, como nos demais elencados, - e tal como tentámos acima sublinhar -, uma das melhores e mais impressionantes facetas, características do nosso Povo, excessivamente crédulo, sem dúvida, mas muito sofredor, embora trabalhador, audacioso, decidido, até onde o esforço da energia humana pode permitir:
“duas semanas durava o ataque à duna, e a duna parecia, como na véspera, imensa, bronca, inalterável. Trouxera o Eudóxio a sua aldeia em peso e cinco juntas de bois; admitira o Algodres a gente de Pedrógão, boa parte da tripulação do Vermoil, à testa Mira e Brás, convicto este e reconciliado; recrutara, ainda, nas praias, desde Lavos a S. Martinho, caterva numerosa e, no Coimbrão e arredores, os carreiros inactivos. E de sol nado a sol-pôr, a chusma de homens encarniçava-se contra a montanha branca, varrendo a areia com rodos e rapadoiras, arrojando-a à pá, desgalgando-a à sebe e a carro de mão para a baixa, que entre as dunas lembrava o cavalo de pomas colossais […] Divulgara-se o intuito da obra, e a esperança de serem contemplados na partilha do tesoiro dava-lhes alento inquebrantável. Os relaços de marca mediam-se em brio com os diligentes; Marrazes, Passafome, Penela, Lavagante e muitos outros tão acirrados andavam que nem se permitiam roubar à faina magnífica o tempo de fumar o cigarrinho. Cobertos de andrajos, sujos de lama, lembravam, nos dias de mormaço, grandes e sôfregos besoiros a fossar em estrumeira rebolcada” (13).
Nesta esteira, voltamos às Terras do Demo, cujo clima foi alvo de uma sua frase que ficou na História - “nove meses de Inverno e três de Inferno” -, onde nos pinta vigorosamente a vida, a um tempo obscura e conflituosa desse mundo esquecido, o da sua aldeia natal. Seguem-se textos com o mesmo objectivo romanesco: O Homem que Matou o Diabo (1930), Batalha Sem Fim (1932), a Maria Benigna (1933), o Volfrâmio (1944), ou Quando os Lobos Uivam (1958).
Augusto Nascimento que andava nas mesmas lides críticas sobre a situação política do País, fizera conferências acerca de amigos artistas e letrados que conhecera. Falou na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, a 7 de Fevereiro de 1947, no Casino da Rinchoa, talvez dois anos antes (por 1945/46), escreveu sobre eles e os acontecimentos político-sociais em que estiveram envolvidos (textos de 1932 a 1948). Foi com Leal da Câmara, caricaturista e pintor, professor na Escola Industrial de Fonseca Benevides, na capital, de 1920 em diante.
Revelou a Oliveira Guimarães (homem da sua intimidade), Leal da Câmara, Ana de Castro Osório (adepta da Maçonaria feminina), Anatole France (com o seu conhecido ideário político, em Paris), Jorge Barradas, outro lutador através da tinta e do pincel…. o que lhe ia na alma, antes da República e depois nela. Foi a Augusto do Nascimento que Aquilino confidenciou – a mais um, é claro! -, que era possível que tivessem entrado na sua psique ingredientes vários: a terra onde nascera, os penedos e quebradas que correra e saltada, enquanto garoto, as árvores que, no Inverno, bramiam em volta do seu berço, o perfume do rosmaninho, do jasmim e do milho encharcado, os ares dos boulevards e que se inspiravam nos Quartiers, os perfumes do Jardin du Louxembourg, os odores ásperos das florestas druídas da Alemanha, o Sol e o azul do Céu de Lisboa, tão racionalistas, diversificados e clarificadores da psique. Ainda os seus professores da Sorbonne e as ruas de Paris com suas gentes, os seus melhores mestres…: “É possível que tenha sempre na minha frente um bocado da terra onde nasci” – dizia.
Visse o que visse por todo o País, em Lisboa, Paris, Rio de Janeiro, S. Paulo, Berlim…, são a serra e os camponeses que lhe vêm, sucessivamente, à memória. Quantos mais industriais e comerciantes, ricos e burgueses passarem, da Étoile à Place de la Concorde, Champs Elysées abaixo e vice-versa… é, pelo contraste, que relembra sempre, como o próprio diz, o beirão pobre e sacrificado, há muito desatendido e desatento.
Numa entrevista que Aquilino Ribeiro deu ao já citado Jornal de Letras e Artes, dirigido por Azevedo Martins (14), é dito que o Mestre é fiel a si mesmo como o é ao granito do seu deserto lunar, a essa Beira apocalíptica e fecunda que se desentranha no bem e no mal. Na força e na argúcia, mas nunca em denguices ou arremedos.
Aquilino diz que, a partir dos começos dos anos Oitenta, Anatole, esquadrinhando nas caixas dos alfarrabistas, em busca de livros antigos – do século XVIII, para quando se tratava, então, de uma centúria esquecida -, aprendeu “a arte do estilo leve e simples e esta graça maliciosa, libertina sim, mas com decência, que põe um tão agradável sainete nas suas críticas e digressões” (15).
Lembra-nos o que diria, mais tarde, de Leal da Câmara que, com o pincel agitado e as cores quentes da revolta, usa do mesmo estilo leve e simples, a par do camartelo quando necessário, para desfazer e voltar a criar, obedecendo, como os escritores, a um alto critério de justeza, proporção e medida (16). E justifica, nas palavras de Anatole, que “para uma criança, livraria que ela possa revolver e folhear à vontade é divertida como um Presépio e mais instrutiva que uma Escola”. E prossegue: “nas gravuras setecentistas aprendeu […] a requintada arte de que é um hábil miniaturista” (17).
Por vezes, vinga o império da contradição, mas sem ela não se escolhe, e, se se escolhe, não se vive.
Anatole começa, então, a trabalhar para diversos livreiros e revistas, embora escusando-se sempre a seguir as pisadas de seu pai, como mero negociante de livros na sua loja Aux Armes de France, embora não negue que o tenha ajudado na sua formação intelectual.
Noël, o progenitor, tinha comércio de livros no “Quai Malaquais […], quase defronte dos pavilhões do Louvre, esses pavilhões de lavor incomparável, graciosos com rimas de François Villon, enormes arcas normandas” (18), aguçando a curiosidade de France e de todos os seus amigos.
Os mais atentos e, a pouco e pouco, burgueses e populares deparam, em França, com governos comprometidos e os bens religiosos que se vão tornando propriedade do Estado, os vespertinos - entre eles, L’Humanité -, informam os leitores: os ricos e mais importantes desprezam-no, os pobres consolam-se; as greves e os movimentos sociais propagam-se de Sul a Norte da França; a Alemanha está cada vez mais ameaçadora, apesar da atitude de G. Clemenceau, presidente do Conselho; o Presidente Falièrres (1906-1913) cede o lugar a Raymond Poincaré e lava daí as suas mãos; Jean Jaurès, campeão do pacifismo, é assassinado; começa a I Grande Guerra, em 1914; a França é, de novo, humilhada, com a invasão em Paris das tropas alemãs para o que todos olhavam e não queriam acreditar; o cidadão, chefe de família, que antes trabalhava e levava o seu soldo para casa, sai agora de baioneta em riste, sem experiência alguma e monta barricadas.
Paris é um mar de sangue e de destruição, onde jazem corpos desfigurados, sepultados, muitos deles sem que as famílias saibam de quem se trata, qual cenário de Victor Hugo descrito em Les Misérables (1862), ou a simetria existente entre este e Le Dernier Jour d’un Condamné, escrito alguns anos antes, em 1829, acerca da abolição da pena capital.
O posfácio de Hugo, em Les Misérables, não é mais do que um directo apelo à Humanidade, a fim de que ela não pare de trabalhar e de ter esperança em tempos melhores. Mesmo que exista, por virtude das leis e dos costumes, uma danação social criadora, artificialmente, em plena civilização, de infernos, e implicando uma grave fatalidade humana, o destino é sempre divino; mesmo que os três problemas do século [XIX] – a degradação do homem pelo proletariado, a decadência da mulher pela fome, a atrofia da criança pelo escuro -, nada será solucionado; mesmo que, em certas regiões, a asfixia social seja possível noutros termos e num ponto de vista ainda mais abrangente, mesmo que haja sobre a Terra ignorância e miséria, os ensinamentos dos tempos poderão não ser tão inúteis quanto pareçam (Victor Hugo, Hautville-House, 1862). (19)
Acreditava-se que a humanidade se achava à beira de vir a dar-se conta da existência nas camadas inferiores da sociedade. Uma empatia infinita sentida pelas novidades desconhecidas penetrava no seio das famílias. As sociedades humanas, pensava-se ainda, deviam ser reorganizadas em nome apenas dos princípios da razão, e com o objectivo de assegurar a felicidade da maior parte do País, nestes finais do século XIX e inícios do imediato, por um vasto movimento de reformas.
Mas aquelas assumiam-se ainda insuficientes para muitos que invocavam o exemplo recente e exaltação da consolidação da República, os “direitos naturais do homem, base do Pacto Social. Em França, sem dúvida, uma infinita esperança exprimia-se, no infindo seio da burguesia e da alta nobreza, na direcção do estabelecimento de uma sociedade melhor, mais harmoniosa e mais justa, onde “o homem se verá a ele próprio regenerado para sempre”.
Não parecia possível duvidar-se de que as modificações se apresentassem plenas de aspectos contraditórios. Os movimentos intelectuais que se sucediam uns aos outros eram combatidos por sistemas conservadores autoritários internos e externos (mesmo com a autorização expressa, por acordos, como hoje), podendo contribuir para dar azo a um género de sensibilidade e de mentalidade muito generalizado, degenerativo em todos os sectores da Sociedade, pela fome, sem dinheiro, com a falta de empregos, sem cultura nem assistência. Hoje como ontem, poucos sabem pensar por si, pois poucos são ainda os que lêem e escrevem.
Por isso, se discutiam, se criticam e se negará sempre a existência de uma vida a contento, em que o cidadão esclarecido pelos intelectuais se integra em sociedades ou grupos que, no seu conjunto, lhes dêem força para o combate pela palavra. Discutem com a paixão do magnetismo ou do esclarecimento dos malefícios da criação e da subida dos impostos e da consequente falta de pão e demais géneros, pois quanto mais cara se torna a vida, mais difícil é chegar ao mínimo necessário para o sustento de uma família, com um só a ganhar, com os mais velhos cansados e com os mais novos sem instrução básica ou profissional que lhes permita enveredarem por uma carreira num futuro próximo. Quando tudo se torna mais caro, pela redução dos salários, o desemprego e a subida desenfreada dos impostos, o dinheiro deixa de circular, decai a economia, empobrece o País por falta de recursos. Foi e continua a ser assim.
Estimulados pela convicção de participar numa nova fase da História da Humanidade, há, porém, ainda uma réstia de optimismo e confiança num futuro distante. Existe como houve sempre, o desejo de contribuir para a aproximação, em termos absolutos – que se revelam na certeza da sua existência e possibilidades de alcance, talvez para os netos, da Razão e da Virtude, de preparar, não exactamente a destruição, mas a regeneração, apregoada pelos políticos, com a “eventual” (a nosso ver) eclosão das indústrias, do comércio, de uma agricultura que possa dispensar braços que acorram às novas actividades e à troca de culturas que trazem diferentes técnicas e saberes dos Países da nova Europa. Foi ao tempo de Aquilino e de Anatole, como nós o temos sentido hoje, que irá veio a surgir um diferente homem “contemporâneo”, um homem novo, capaz de modificar, à sua livre vontade, as suas ideias, escolhendo as que melhor lhe pareçam poder ser ditadas e propaladas por metafísicos, filósofos, economistas, políticos, sociólogos, antropólogos… que todos juntos ou de per si, um a um, podem vir a contribuir para melhorar as nossas sociedades futuras.
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