Acabou a corrida por uma vacina contra o novo coronavírus? Com o anúncio de que a vacina desenvolvida pela BioNTech tem uma taxa de sucesso de 90% e que a Pfizer a vai fabricar e distribuir, e que a União Europeia assegurou já a compra de 300 milhões de doses, temos um vencedor? Pode ser o princípio do fim que o mundo deseja, mas a covid-19 ainda fará o mundo dar muitas voltas. Prova de que a “guerra-fria” das vacinas vai continuar, a Rússia anunciou nesta quarta-feira que a sua vacina mais avançada, a que chamou Sputnik, tem um sucesso de “92%”.
Na verdade, nem o anúncio russo nem o da BioNTech e da Pfizer foram feitos como manda o protocolo, através da publicação dos resultados dos ensaios clínicos em revistas científicas, avaliados por outros cientistas. Foram divulgados por comunicados de imprensa esta semana. “Julgo que terá havido pressão política em Moscovo após o comunicado de imprensa da Pfizer e da BioNTech esta semana para divulgarem agora os seus dados”, disse à Reuters Bodo Blachter, vice-director do Instituto de Virologia da Universidade de Mainz, na Alemanha.
Há muitas questões a que a vacina da BioNTech terá ainda que responder. Por exemplo, se protege as pessoas mais velhas, um dos grupos mais vulneráveis à infecção pelo novo coronavírus.
Não se sabe também se evitará que pessoas infectadas transmitam a infecção – é possível que a pessoa imunizada não tenha os sintomas da doença, mas continue a infectar outros indivíduos. Esta é, aliás, uma das características mais traiçoeiras do novo coronavírus, que permite a sua propagação de forma silenciosa.
Finalmente, não se sabe quanto tempo dura a imunidade que confere – no caso de outros coronavírus que há muito tempo convivem com os humanos, não dura muito.
Frias e para ricos
Há ainda uma questão que pode influir no acesso e distribuição das vacinas a todos os países. A vacina da BioNTech-Pfizer, baseada numa nova tecnologia, a do ARN mensageiro (ARNm), uma molécula que transporta instruções para que as células produzam proteínas a partir das informações codificadas no material genético que está no núcleo, tem de ser mantida a uma temperatura entre 70 a 75 graus Celsius negativos. A vacina experimental da norte-americana Moderna, que se baseia na mesma tecnologia e da qual devem ser conhecidos resultados preliminares ainda este mês, tem de ser armazenada a 20 graus negativos, diz a Reuters. Não é o ideal para as transportar para países do Sul e pobres, onde o calor intenso se junta às más infra-estruturas.
Anthony Fauci, director do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, alertou nesta quarta-feira que seria um desafio distribuir vacinas que se baseiam na tecnologia do ARNm nos países mais pobres, por terem uma cadeia de frio exigente. “Num país como os EUA ou o Reino Unido, podemos lidar com estas exigências, embora ainda seja difícil. Mas será muito mais complicado nos países em desenvolvimento”, alertou, numa conferência organizada pelo Financial Times.
FotoVoluntário aguarda a vez para receber vacina da chinesa CanSino, nos ensaios clínicos que decorrem no México REUTERS/JORGE LUIS PLATA
São então vacinas para países ricos, para a América, para a Europa?
Alguns países asiáticos estão já a pensar assim. “Frio de 70 graus negativos é uma exigência pesada. Não temos instalações para isso”, disse à Reuters o ministro da Saúde das Filipinas, Francisco Duque. “Vamos esperar para ver. A tecnologia da Pfizer é nova. Os riscos podem ser elevados”, disse.
A Indonésia, com 273 milhões de habitantes espalhados por 17 mil ilhas, está a considerar comprar várias vacinas – mas não a da BioNTech-Pfizer, diz ainda a Reuters. O Vietname, onde a estratégia de contenção das infecções teve um grande sucesso – teve apenas 35 mortos, segundo a contabilidade da Universidade Johns Hopkins –, com controlo de fronteiras e testes em massa, anunciou esta semana que prosseguirá neste caminho. “As vacinas são uma história para o nosso futuro”, afirmou o vice-primeiro-ministro e coordenador da luta contra a covid-19, Vu Duc Dam.
Isto é problemático, porque a Organização Mundial da Saúde (OMS) calculou que 70% da população mundial, cerca de 7000 milhões de pessoas, deve ser inoculada com uma vacina para a covid-19 para haver imunidade de grupo. Mas só na Ásia vivem 4600 milhões de pessoas, ou três quintos da população da Terra.
A OMS desenvolveu uma colaboração, a COVAX, para que nenhum país fique de fora do acesso às vacinas – promovendo o desenvolvimento e o acesso a vacinas a todos os países. Mas é a pensar essencialmente no seu preço.
Mas aqui pode entrar o velho espírito da guerra fria. A vacina russa Sputnik, por exemplo, pode vir a ter uma vantagem decisiva nos países do Sul.
Desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, baptizada Sputnik, baseia-se numa tecnologia completamente diferente da da BioNTech-Pfizer. Desencadeia uma resposta imunitária usando vectores virais, dois adenovírus que costumam causar resfriados nos humanos, mas desarmados dos genes que fazem mal, para transportar um gene do SARS-CoV2. A chinesa CanSino, a Johnson & Johnson e a Universidade de Oxford usam a mesma tecnologia.
Mas o que é mais interessante, na Sputnik, é que é liofilizada, tal como a vacina da varíola desenvolvida pela Rússia na década de 1970, explica uma notícia na revista médica The Lancet. Dessa forma, pode ser transportada para longe, sem precisar da exigente cadeia de frio de que necessitam as vacinas da tecnologia mais recente.
A Rússia assinou já acordos com duas dezenas de países, entre os quais o México, para lhes fornecer vacinas, e o mesmo fez a China. Pequim está também a fazer acordos com várias nações – com especial incidência na América Latina e em África, as áreas do globo para onde antes estendeu a sua influência em busca de recursos naturais, como o petróleo.
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