Atrativo, estimulador de sentidos e fácil para todas as idades: esta é a categoria da moda "onde somos todos milionários e podemos consumir tudo", diz Rafaela Noro Grando, professora de design de moda na Universidade da Beira Interior (UBI). Trata-se da fast fashion, um modelo de negócio que está em crescimento acelerado pelo mundo - em causa está, refere a docente, o crescimento de marcas em que tudo é tão barato, tão descartável e tão rápido que o famoso "buyers remorse" (remorso do comprador) se eclipsa pela ânsia da compra seguinte.
"Estas marcas trabalham com isso, trabalham a sociedade do consumo em que o desejo de realização ficou preso à capacidade económica, em que o status e o prazer estão relacionados com essa capacidade de compra. Mas tudo isto só funciona para coisas não estruturais. Comprar casa continua a ser caro, pagar os estudos continua a ser caro, encontrar um grande amor não dá para comprar. Então, temos roupa, telemóveis, computadores, etc", começa por explicar a professora Rafaela Noro Grando.
Primark, Shein, H&M, o grupo Inditex (dono de marcas como Zara, Bershka, Massimo Dutti, Stradivarius, Pull&Bear ou Lefties), C&A, MANGO, Zaful, ASOS, Oysho ou Forever 21 são apenas alguns exemplos de marcas que mudaram por completo os hábitos de consumo no sector da moda. De duas coleções anuais (primavera/verão e outono/inverno) passámos para coleções semanais, o preço por peça caiu a pique e a roupa transformou-se num fenómeno volátil, instantâneo e descartável, tudo isto nas últimas décadas: sejam bem-vindos ao mundo da fast fashion e aos seus problemas ambientais, laborais e éticos.
Mas o conceito de fast fashion não tem uma definição unânime. O dicionário de Cambridge define o fenómeno como “roupas que são fabricadas e vendidas a baixo preços para que as pessoas possam comprar novas peças regularmente e que, em vez de duas coleções, disponibiliza para venda t-shirts e calças todas as semanas”. No entanto, esta definição pode ser considerada demasiado simplista, tendo em conta que nenhuma marca se autointitula como sendo de fast fashion.
Salomé Areias, fundadora do movimento Fashion Revolution em Portugal, refere que este fenómeno "é sempre definido como um modelo de negócio da área do retalho da moda em que o objetivo é produzir o mais rápido possível, a maior quantidade possível e com o menor custo possível”. O Fashion Revolution é o maior movimento ativista na moda, tendo sido criado em 2013 no Reino Unido, quando uma fábrica de oito andares colapsou no Bangladesh e matou mais mil pessoas. A organização tem como propósito alertar e denunciar as más práticas ambientais, sociais e laborais do sector e chegou a Portugal em 2014.
“O típico no fast fashion é assentar num preço baixo, mas o número de coleções também define bastante o conceito - é comum terem cerca de 52 coleções. Outra coisa que coisa que faz parte é a descartabilidade do produto: um artigo idealizado para poder ser comprado e descartado o mais rapidamente possível. Este modelo de negócios está dependente da compra sistemática e por impulso para ser lucrativo”, aponta Salomé Areias.
Isabel Gouveia, diretora do mestrado de design de moda e do doutoramento em materiais e processamento avançados (AdvaMTech) na UBI, concorda que este modelo de retalho sai beneficiado pela impulsividade dos consumidores e realça que acredita que surgiu como "fruto de várias consequências dos dias que hoje vivemos - de não existir tempo sequer para refletir até por uma pura e simples compra". Isabel Gouveia sintetiza todo este o processo em poucas palavras: "Aparece, não existe tempo para refletir e é barato, compra-se".
Fast fashion, ultrafast fashion e high fast fashion
O mundo ainda se estava a adaptar a estas novas designações dadas a este segmento emergente e já surgiam novas subcategorias: a ultrafast fashion e a high fast fashion. Se o high fast fashion consiste apenas nas empresas tradicionais que tentam entrar neste comboio de alta velocidade lucrativo mas mantendo preços mais elevados - como é o caso de marcas como Pepe Jeans, Tommy Hilfiger ou Levi's Strauss -, por outro lado temos a ultrafast fashion, que é ainda mais barata, instantânea e descartável - falamos claro da já famosa marca chinesa Shein.
“Ultrafast fashion é fast fashion mas com uma produção ainda mais rápida, ciclos de tendências mais curtos e mais descartável”, como Zainab Mahmood, jornalista e defensora da moda ética, explicou ao jornal briânico The Guardian.
O conceito do ultrafast fashion aparece perante a necessidade de categorizar o tipo de modelo de negócio da empresa chinesa Shein e basta entrar no site para se perceber porquê. Ao fabrico instantâneo e aos preços já baixos alia-se uma panóplia infindável de “promocodes”, “descontos”, “entrega grátis” e até mais reduções de preço para quem compartilhar a plataforma, tudo com um objetivo único: deixar o consumidor viciado através de itens tão baratos que eliminam o tradicional “remorso do comprador” da equação. Esta estratégia negocial afeta sobretudo as gerações mais novas, que são também as mais preocupadas com o planeta, mas até elas têm a necessidade de se verem "validadas, reconhecidas e procuraram a aceitação dos pares", sentimentos que estão intimamente ligados a todo este processo de compra, de acordo com Salomé Areias - que também é investigadora no Center for Environmental and Sustainability Research (CENSE) da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova.
Adicionar descontos a preços já tão reduzidos parece uma má estratégia de negócio do ponto de vista dos lucros mas não é bem assim, como explica a fundadora da Fashion Revolution em Portugal: “É realmente bizarro mas as margens de lucro são mesmo gigantes: não têm que ver com o produto isolado mas sim com a quantidade em massa que é produzida - isso permite baixar imenso os custos de produção”, explica Salomé Areias.
“A Shein em particular é um caso de estudo. Tem tido um sucesso incrível. Além de produzir quantidades muito maiores, produz muito mais coleções e é por isto que chamam à Shein ultrafast fashion porque os tempos de obsolescência percebida, aquilo que está in e está out, são muito mais rápidos do que em qualquer outra marca de fast fashion. Esta loucura da compra e do descarte acontece num período de tempo ainda mais curto do que nas outras marcas e traz uma rotatividade de produto nunca antes vista. A Shein depende especialmente da compra de impulso e compulsiva”, refere Salomé Areias.
Esta compra não ponderada é a essência deste tipo de negócio. Transações sistemáticas, não pensadas, por impulso e toda a estratégia comercial e de marketing está para aí direcionada, garante a responsável da Fashion Revolution, explicando: "As pessoas acham que vai sempre valer a pena porque é um preço baixo. Então vão sempre pelo medo, pela desvalorização daquilo que estão a comprar, pela oportunidade única. A compra online ainda é menos racional".
"Teremos sempre gente que vai comprar roupa numa Shein, onde somos todos milionários e podemos consumir tudo. Destruir ou acabar com o fast fashion não é uma situação que se verifique como viável, possível ou que vá acontecer", aponta Rafaela Norogrando.
Pegada hídrica e carbónica da fast fashion levantam preocupações ambientais
Uma comparação rápida entre o número de peças lançadas pela H&M – cujo ritmo de produção já é extremamente alto em relação à moda tradicional – e pela Shein entre os meses de janeiro e abril deste ano deixa a problemática em evidência. Enquanto a multinacional sueca adicionou 4.414 novos artigos no site, a empresa chinesa lançou 315 mil. Para Isabel Gouveia, que além de professora e diretora na UBI é vice-coordenadora da Unidade de Investigação FibEnTech - Fiber Materials and Environmental Technologies, "a única hipótese para reverter estes efeitos seria baixar o consumo", algo que reconhece que trará custos acrescidos - quer para os gigantes da moda, quer para o consumidor final.
"Parece ser o caminho, que se calhar temos de seguir, que é fazer um slow fashion", refere, alertando que "um processo inverso ao fast fashion vai demorar algum tempo e que a mudança será bastante lenta". Isabel Gouveia defende que as tecnologias são a esperança mais viável do ambiente, apresentando o ecodesign, que tem como objetivo primário prolongar a longevidade de uma peça de roupa, como uma das melhores opções para alavancar esta transformação profunda. Um dos problemas centrais do fast fashion é que recorre "a materiais de fraca qualidade, a fibras sintéticas altamente poluentes" que fazem com que "as peças fiquem rapidamente envelhecidas". É aqui que o ecodesign pode ser uma mais valia, visto que surge no "sentido de melhorar a qualidade do produto para que ele tenha uma longevidade maior e seja mais facilmente reciclável".
Seja qual for a solução, ela é urgente mas corre o risco de vir demasiado tarde, como explica à CNN Portugal a diretora da Associação Natureza Portugal - World Wide Fund for Nature Portugal (ANP|WWF), Ângela Morgado, que também defende uma transformação estrutural do sector - e lembra que "a procura por água vai exceder a oferta em 40%, em 2030, ou seja, daqui a oito anos”.
“É uma indústria que gasta muita água, por exemplo são necessários 20 mil litros para se produzir um quilo de algodão. Tem uma pegada hídrica considerável e a água é essencial e um bem cada vez mais escasso. Além da degradação da água e dos solos, a produção de têxteis tem um impacto considerável no ambiente através da poluição, devido aos materiais e químicos que utiliza”, refere a diretora da ANP|WWF.
Para a ANP|WWF, as responsabilidades desta indústria são distribuídas pelos consumidores, empresas e governos responsáveis. Por sua vez, Salomé Areias concorda que “nenhuma empresa que produza um biquíni por 9,99 euros no Bangladesh pode ser considerada sustentável”, afirma que estas marcas “deviam fazer muito mais face aos lucros das vendas que registam - a nível da recuperação climática e na minimização dos efeitos da pegada carbónica que criam” -, mas defende que o consumidor não pode ser considerado parte responsável: “O consumidor tem à sua disposição uma t-shirt e compra-a, não podemos esperar que as pessoas parem de comprar o que está disponível, que atualmente é fast fashion”, diz. "Acho que vivemos numa cultura, hoje em dia, de responsabilização do consumidor. Na emergência da crise climática e de muitas outras crises, esse peso parece estar a ser colocado sobre os nossos ombros enquanto consumidores: nós é que temos de salvar o mundo, nós é que temos de comprar no comércio local e salvar os produtores, nós, nós... e isso não é verdade. Nós estamos no fim da linha e o que seria mais lógico e inteligente é que a oferta fosse a correta. Isso faria com que se o consumidor consumisse o que há disponível, fá-lo-ia sempre de forma responsável", argumenta Salomé Areias.
No capítulo ambiental temos ainda outro chavão: o greenwashing, estratégia utilizada por algumas empresas que tentam promover uma imagem sustentável e preocupada com o ambiente mas que acaba por não corresponder à realidade. Ângela Morgado considera que esta é "uma questão muito controversa", lembrando que a WWF trabalha com algumas empresas do sector que realmente "querem trabalhar em processos de transformação".
As empresas são muitas vezes acusadas de terem um reduzido número de coleções sustentáveis que servem exclusivamente para alterar na sociedade o modo como são vistas do ponto de vista ambiental. A ANP|WWF desvaloriza estas acusações e explica: "Posso ter só uma coleção sustentável mas tenho-a, enquanto há outras que não têm nada", acrescentando que "temos de deixar um bocadinho essa ideia de lado de tudo o que fazemos com empresas é greenwahsing". "As coisas têm um processo, temos de ter metas, temos de ter programas de transformação e de investimento das empresas no restauro da biodiversidade - a abordagem às empresas tem de ser cada vez mais de transformação".
Rana Plaza: a tragédia com mais de mil mortes que expôs o lado negro da moda
"Tudo o que é demasiado barato alguém está a pagar": a frase é da professora Rafaela Noro Grando e abre a porta a outra discussão inerente à fast fashion, que tende a recorrer a mão de obra barata de países pobres, onde os atropelos à Declaração Universal dos Direitos Humanos são recorrentes. A tragédia em Dhaka, no Bangladesh, foi uma das ocorrências que evidenciaram esta realidade. Mais de 1.100 pessoas morreram e registaram-se mais de 2.500 feridos após a queda do Rana Plaza, um prédio de oito andares que albergava várias fábricas têxteis e um centro comercial.
Rafaela Noro Grando considera fulcral entender a origem das peças para se entender como é possível algumas destas marcas conseguirem preços tão acessíveis. "De onde vem o algodão destas calças? Onde é produzido? Como é produzido? São grande latifúndios com pesticidas? Como afetam a comunidade local? E depois, onde é que a peça foi produzida? Num país que se rege pelos direitos humanos e trabalhistas?", a designer explica que quando se encontram as respostas a estas perguntas costuma surgir uma exclamação como: "Ah, pois, mas as calças eram baratas".
"Se pensarmos que para se produzir uma peça de roupa é preciso ter a fibra, essa fibra precisa de virar fio, esse fio precisa de virar tecido, esse tecido precisa de ser cortado com um determinado molde, ser costurado, ser divulgado, ser empacotado, ser transportado e ser consumido. Quando falo de fibra refiro-me a uma indústria específica, fazer o fio já envolve outra indústria, o tecido será outra: então estou a falar de uma cadeia supercomplexa na qual trabalham várias pessoas e que por vezes nem estão no mesmo país. Então, se isso chega ao consumidor a 12 euros, o consumidor não está a pagar. Não está mesmo a pagar. Por isto é que ter uma mãe que não está com o seu filho ou ter a criança deitada no chão enquanto está na máquina de costura é só uma das realidades já documentadas", refere Rafaela Noro Grando.
A especialista alerta que quando é difícil identificar a procedência de uma peça de roupa é provável que "tenha sido criada com trabalho escravo". "Escravos contemporâneos" são todos aqueles que trabalham a troco de "um salário mas que é uma remuneração tão baixa que não conseguem pagar a sua própria alimentação diária".
Isabel Gouveia lembra que estes casos não são novos nem começaram em 2013 e lembra que, nos anos 90 e no início deste século, já muitas grandes marcas de moda tinham sido ligadas a casos de exploração infantil. Mas sublinha que a queda do Rana Plaza teve uma relevância mediática que fez o mundo discutir mais intensamente este tipo de explorações. Rafaela Noro Grando conclui: "É isto que acontece quando as coisas são demasiado baratas".
Fonte: CNN
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