segunda-feira, 7 de abril de 2025

Violência, alienação e o império dos ecrãs


No início da semana passada, fomos confrontados com a hedionda notícia da ampla e desenfreada circulação, pelas redes sociais, de imagens de uma jovem de 16 anos a ser, neste país de alegados brandos costumes, na zona de Loures, constrangida e sujeita a abusos sexuais de várias ordens – tendo mesmo a Polícia Judiciária falado de violação agravada – por parte de, pelo menos, três outros jovens, pouco mais velhos do que ela e descritos e apresentados como “influencers”, com muitos milhares de seguidores.

Tendo a jovem apresentado queixa às autoridades alguns dias após os factos, veio a saber-se que, afinal, as referidas imagens já tinham sido visualizadas por milhares de pessoas, sem que uma única delas tivesse tomado a atitude de as denunciar como o miserável e absolutamente inaceitável abuso que são, fosse publicamente, fosse, e ainda menos, às ditas autoridades.

Naturalmente que os factos em causa deverão agora ser devida e cabalmente investigados no âmbito do respectivo processo-crime. Mas, independentemente do que neste se vier a apurar, nomeadamente em termos da referida violação, a verdade é que a sujeição de alguém em inferioridade de número, de capacidade física e de suporte emocional, em estado de nudez, relativamente aos que, em grupo, a colocaram nessa situação, é um acto de todo indigno, repugnante e cobarde. E a sua filmagem, assim como a subsequente e generalizada divulgação das respectivas imagens, é outra absoluta repugnância, que não pode deixar de merecer a nossa mais firme reprovação. Mas a verdade também é que todos aqueles que viram as referidas imagens e, assim, souberam o que se passara e que, ou viraram a cara para o lado, ou, pior ainda, se satisfizeram com aquele degradante espectáculo, não podem, também, deixar de merecer essa mesma veemente reprovação.

Acontece que, já semanas antes, outro “influencer”, perante os seus milhares de seguidores e com a prestimosa ajuda das gargalhadas amigas de um pseudo-entrevistador, se gabara alarvemente da “proeza” – que se veio a apurar ser verídica – de, por vir distraído com o telemóvel, ter atropelado violentamente, numa passadeira, uma mulher, e depois ter fugido apressadamente do local sem prestar assistência à vítima. Entretanto, na manhã do passado domingo, um condutor que circulava a alta velocidade na Estrada Marginal, junto à Praia da Torre, atropelou violentamente três ciclistas (dois dos quais ficaram em estado bastante grave e tiveram de ser internados no hospital) e fugiu do local, sem querer saber do estado das vítimas que causara e sem lhes prestar qualquer auxílio. Na tarde do mesmo dia, um condutor de motociclo atropelou violentamente, na Amadora, junto ao Bairro Casal da Mira, uma criança de 10 anos (que também teve de ser conduzida de urgência ao hospital) e igualmente fugiu do local, sem prestar qualquer assistência à jovem vítima.

Todos estes comportamentos, a comprovarem-se pelos meios e no local adequados – ou seja, no processo-crime respectivo e no julgamento e condenação em Tribunal – constituem crimes de particular gravidade, que denotam não apenas um perturbantemente elevado grau de intencionalidade, como também, e sobretudo, uma estarrecedora frieza ou ausência de sentimentos e de consideração pelo outro. E, sendo devidamente provados, devem ser punidos com a severidade que a natureza e as circunstâncias destes crimes justificam. Sobretudo quando os seus autores, nem na altura dos factos, nem posteriormente, manifestem qualquer espécie de espontâneo arrependimento ou remorso pela barbaridade que praticaram. E sobretudo quando, segundo as estatísticas da própria PSP, nos últimos dois anos, 22% dos condutores envolvidos em acidentes mortais ou com feridos graves fugiram do local! 

Mas tão importante como essa reprovação jurídico-penal tem de ser também o juízo ético, firmemente crítico, e a afirmação da inaceitabilidade social deste tipo de comportamentos, pois que quem assim actua está a levar à sua expressão máxima os sentimentos mais negativos e mais baixos, bem como uma completa ausência de valores e de princípios. Tudo isto numa postura que, como bem sabemos, já vimos, e por diversas vezes, ser adoptada na própria atividade política, tal como sucedeu quando conhecidos nazis comentaram publicamente que a prostituição forçada e colectiva, “tipo arrastão”, era o destino adequado para as mulheres de esquerda, ou quando outros, estejam eles no Parlamento ou numa claque de futebol, se permitem apelidar de “vacas” as deputadas de outras forças políticas ou dirigir ruídos como mugidos ou gritos de macacos aos seus adversários… E é precisamente por isso que a nossa atenção e reflexão têm de ir bem mais longe do que a (nestes casos, mais que merecida) condenação penal, a qual estará, porém, sempre no “fim da linha”. Sob pena de estarmos, afinal, e de forma cada vez menos eficaz, a querer tratar dos problemas da podridão das águas de um rio na sua foz e não na sua nascente.

Assim, e antes de mais, há todo um debate político e ideológico a travar acerca do ideário próprio do capitalismo, em particular na sua fase actual (a do capital financeiro e imperialista), que assenta desde logo no desprezo pelo colectivo e pelo comunitário e na contínua pregação do individualismo, ou seja, da ilusão de que será por soluções individuais (como as dos discursos e técnicas ditas motivacionais…) que a grande maioria dos membros das sociedades actuais conseguirá sair da vida miserável que leva e resolver os seus problemas essenciais: de emprego, de subsistência, de habitação, de saúde e de educação dos filhos, etc. Temos assim, e coerentemente, o uso “científico” do medo e a permanente inculcação da ideia de que “o outro” (o diferente, o deficiente, o velho, o cigano, o negro, o estrangeiro, o muçulmano, o colega de carteira ou de empresa) é um adversário, e mais do que isso, um inimigo, que nos prejudica e ameaça, e que por isso importa eliminar, seja de que forma for.

O dinheiro, o poder ou o sucesso são então apresentados como os objectivos a alcançar, seja a que custo for. E, obviamente, a lógica maquiavélica – desenvolvida e teorizada por todas as organizações e sociedades ditatoriais – de que os fins justificam os meios, por mais ilegítimos, indignos ou brutais que eles sejam, e de que vale tudo para atingir tais fins e alcançar tais objectivos, transformou-se nos valores e princípios permanentemente divulgados, praticados e instruídos por toda a sociedade nas fábricas e empresas, nas escolas, na administração e também nas próprias famílias.

As maravilhosas inovações tecnológicas, em particular as da era digital, em vez de servirem para, aumentando exponencialmente a produtividade do trabalho humano, aliviar a nossa relação com este, diminuir as pesadíssimas cargas e ritmos de actividade, dar emprego a mais pessoas e propiciar a realização pessoal e social de quem trabalha, de quem estuda e de quem já trabalhou uma vida inteira, foram, afinal, expropriadas por uma pequeníssima minoria (os 1% da população mundial que arrecada mais de 50% de toda a riqueza) e transformadas num instrumento privilegiado  de aumento dos tempos e ritmos de trabalho, de precarização e proletarização dos trabalhadores mais qualificados, e de repartição do seu saber por tarefas decompostas e simplificadas, a cargo de trabalhadores mais precários e até de máquinas, com a imposição de um crescente “taylorismo digital” e de uma absoluta desumanização das relações sociais de trabalho.

E é assim que a reivindicação histórica das 8 horas máximas de trabalho por dia, pela qual, no século XIX, tanto sangue, suor e lágrimas derramaram os trabalhadores de então, volta a ter, num número crescente de sectores e de países, um carácter absolutamente revolucionário. Pois, entretanto, em nome da “flexibilidade”, do “combate à crise” (seja ela qual for) e da necessidade de se salvarem as empresas, ou seja, os lucros dos seus donos, se generalizou a lógica e a prática de jornadas de 10, 12, 14 e até mais horas de trabalho, com ritmos cada vez mais infernais. Ou no mesmo emprego, ou até em dois, que quem trabalha é obrigado a arranjar para, devido à exiguidade dos salários, conseguir sobreviver.

O resultado desta forma de organização social é a propositada criação de uma multidão de autênticos “zombies”, absolutamente esgotados por exigentes, extenuantes e abusivas jornadas de trabalho e enormes tempos de deslocação entre o trabalho e as respectivas casas, cada vez mais longínquas e precárias devido aos preços da habitação, sem capacidade reivindicativa ou de organização, sem tempo para se cultivarem, se dedicarem ao desporto, ao teatro, à música ou à actividade cívica. E, claro, sem tempo nem disposição para dar a atenção que os filhos querem e de que precisam como pão para a boca.

A imposição duma sociedade injusta como esta resulta na anestesia e o “acarneiramento” das populações. E isso implica que o espírito crítico, a capacidade de raciocínio, o gosto pelo conhecimento, o desenvolvimento das chamadas funções cognitivas superiores, as leituras, a reflexão, tudo isso seja desvalorizado e banido, sendo, afinal, substituído pelo “deus Mulloch” do lucro e da busca incessante pelo seu máximo.

E é por isso que, para completar este mesmo “edifício social”, surge o desprezo pelo livro, pela escrita, pela aprendizagem da língua, sendo tudo isso substituído pelo reinado dos ecrãs, onde o usuário do telemóvel ou do iPad tem o pouco esforço e a facilidade de consumir, acrítica e passivamente, (apenas) aquilo que os algoritmos para tal programados lhes servem. E onde praticamente tudo é reduzido à lógica binária do “0” e do “1”, a uma linguagem e a um vocabulário de uma pobreza aterradora, ultra-simplificados, que entorpecem o raciocínio, condicionam e impossibilitam a formação do espírito e, logo, o próprio desenvolvimento humano.

Nada disto sucede por acaso ou pela simples inépcia de alguns. É que, na organização social do capitalismo, não há, para quem trabalha, tempo nem lugar para a cultura, para as artes, para o Centro de Convívio ou para a Sociedade Recreativa e Cultural (cada vez mais condenados à asfixia e ao encerramento); como não há tempo nem espaço para o são convívio humano, para o exercício da cidadania e da solidariedade social, para a prática das actividades em que nos realizamos, sejam elas a cultura, a investigação, o desporto ou a música, por exemplo, ou até o simples lazer.

Imperam ainda os grandes órgãos de comunicação de massa, encarregues de nos rezar, em todos os momentos possíveis, a “missa hipnótica” dos já referidos valores supremos da sociedade capitalista e de nos afogar com doses maciças de pretensa informação (como os telejornais de horas a fio, pejados de comentadores do pensamento dominante) e de real alienação (como os “Big Brother” e programas similares).

O extremo isolamento e solidão provocados pela pressão e pela alienação das condições de trabalho ultra-precárias e ultra-desumanas, e pelas longas e extenuantes jornadas de trabalho, conduzem, assim, a formas virtuais e inverídicas de comunicação e de pretensa vida em comunidade, que são produzidas e alimentadas pelo uso, tão permanente quanto acrítico, e até tornado cada vez mais compulsivo, dos meios de acesso às redes sociais e, logo, aos modelos e valores por estas continuamente divulgados e propagandeados, com vista a criar uma multidão de dóceis e acríticos servos. 

A permissividade com a violência, o fascínio pelo momentâneo e a crença de que ofensas virtuais, a coberto do anonimato, não têm consequências, e de que o que importa não é ter a atitude correcta, mas sim fazer o que se sabe ser errado e depois conseguir ter a “habilidade” ou o “sucesso” de não ser apanhado, a imposição da lógica e da lei da alcateia e do gangue, podem então desenvolver-se a uma escala que, muitas vezes, só é revelada quando, enfim, termina em tragédia…

É, pois, este o terreno fértil para o frenético crescimento da boçalidade, do “vale tudo”, do poder ou do sucesso a todo o custo, com base exclusiva, ou quase – porque o resto é como se não existisse de todo… – nos “exemplos” e nos “influenciadores” multiplicados à exaustão nas redes sociais e cada vez mais instalados, tolerados, aceites e até incentivados nos nossos próprios meios profissionais, políticos e até pessoais.

A violência gratuita, o ódio primário, a baixeza moral e a negação dos valores essenciais como a solidariedade, o respeito pelas diferenças e a dignidade da pessoa humana – tudo isso é, afinal, o que a sociedade capitalista do século XXI, os interesses que sustenta e os valores que pratica nos têm para oferecer. Devemos criticar com firmeza e não nos surpreender quando essas formas duras e boçais se manifestam, pois é a elas que conduz, em linha recta, a desvalorização e escravização do ser humano, o embotamento do juízo crítico e a vulgarização e banalização do mal mais odioso.

E a essência do problema não está nas novas tecnologias, que são um enorme e magnífico progresso científico e técnico, que devemos conhecer, apreciar, dominar e, sobretudo, saber usar em prol de toda a Humanidade. O nó górdio da questão está, sim, nas relações sociais que entorpecem e desvirtuam esse mesmo progresso, e que possibilitam e eternizam a sua expropriação em benefício de apenas alguns. 

Como seres humanos inteiros e completos, devemos ousar ser, não escravos, mas sim donos dos nossos próprios destinos. E por isso, a grande tarefa que se nos impõe é, cada vez mais, a de demolir esse tipo de sociedade, profundamente decrépita e essencialmente violenta e injusta, e construir um mundo mais justo e mais fraterno!

António Garcia Pereira

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