sábado, 23 de julho de 2022

Em defesa das Osgas!



Por Luís Ceríaco
O verão é sinónimo de Osgas! Os afortunados que possam rumar um pouco mais a sul durante as férias, vão certamente encontrar pelo menos uma destas duas espécies a passearem-se pelas paredes das casas e jardins durante as noites quentes do Alentejo ou do Algarve. Com alguma sorte (como eu tive ontem à noite) poderão até encontrar as duas espécies a partilharem o mesmo espaço. Falemos pois de Osgas!
Em Portugal continental ocorrem duas espécies de Osgas: a Osga-comum (Tarentola mauritanica) e a Osga-turca (Hemidactylus turcicus). A primeira encontra-se por praticamente todo o país, enquanto a segunda ocorre apenas pelas zonas mais a sul (principalmente Alentejo e Algarve, mas podendo ser por vezes vistas por Lisboa e pelo vale do Tejo).

Embora parecidas no seu aspeto geral, há várias diferenças que rapidamente permitem a sua distinção. A diferença que mais salta à vista é o tamanho - a Osga-comum é consideravelmente maior e mais robusta que a Osga-turca. As cores, embora ligeiramente variáveis, são também uma boa forma de as distinguir. Enquanto a Osga-comum geralmente apresenta uma coloração que varia de um bege acastanhado, a um castanho mais forte, com ou sem bandas mais escuras no decorrer do dorso, a Osga-turca é mais rosada, com laivos de amarelos e pontos castanhos aqui e acolá. Devido a terem uma pele composta por escamas muito finas, em contra-luz é quase possível ver o interior das Osgas-turcas, o que leva ao arrepio de muito gente e à ideia de serem quase transparentes!

Outra diferença bem visível é o tipo e arranjo das escamas. A Osga-comum têm uma aparência que nos remete para a imagem de um dinossauro - espinhosa e com uma armadura, enquanto que a Osga-turca apresenta escamas muito menos espinhosas e marcadas. Olhando com mais atenção, as escamas dorsais da Osga-comum estão organizadas numa matriz em bandas - numa base de escamas pequenas surgem escamas de grandes dimensões, ovoides mas com uma quilha marcada no centro. Já a Osga-turca apresenta escamas mais arredondadas, com uma quilha muito menos marcada. As escamas desta última também não se apresentam tão organizadas em bandas, o que leva a que o animal tenha um aspecto muito menos "espinhoso"!

Uma última diferença visível a olho nú é a presença de garras nos dedos. Os dedos da Osga-comum, no geral mais espalmados e arredondados, apenas apresentam garras em dois dedos, enquanto que se olharmos para os dedos das Osga-turcas, todos os dedos apresentam uma garra.

Mas saltando das diferenças para as semelhanças, há duas características partilhadas por estas duas espécies - a sua utilidade ao ser humano e a injusta má fama que têm! As Osgas são animais que se alimentam principalmente de insectos e outros invertebrados - como moscas, mosquitos ou aranhas. Uma Osga na parede da nossa casa funciona como um autêntico insecticida natural - evitando as noites mal dormidas pelo incomodativo e irritante 'zzzzzzz' das melgas nos nossos ouvidos, ou a comichão das babas causadas pela picada dos mosquitos.

Apesar deste serviço gratuito, o ser humano, na sua habitual ingratidão para com o mundo natural, decidiu inventar vários boatos, histórias e conspirações que pintam este inocentes e uteís animais como perigosos monstros. Embora os detalhes variem dependendo de que as conta (quem conta um conto... acrescenta um ponto!), todas estas histórias andam à volta do tema de um suposto veneno ou de serem causadoras de doenças de pele.

Sobre o veneno, conta-se que 'um dia' uma osga terá caído no leite/café/chá/sopa de alguém 'lá da terra/vila/aldeia'. Assegura quem conta, que as incautas vítimas, não se apercebendo da presença da osga, beberam o dito caldo, adoecendo gravemente (ou, dependendo do grau de exagero - morreram!). A outra história envolve o contacto direto ou indireto da osga com a pele do afligido. Conta-se neste caso, que fulano dormia de tronco nú (nunca fulana, que fulanas não dormem cá nesses despreparos) e lhe caíu uma Osga em cima enquanto dormia. Rapidamente se formaria na pele do pobre desgraçado um 'cobro' - uma mítica doença de pele de muito má fama, e que, dizem, causa grandes males, podendo até conduzir à morte. A outra história de infeção por cobro, afirma que alguém, e neste caso uma senhora, vestiu algo por onde tinha passado uma osga, apanhando também o temível cobro.

Como todos os mitos urbanos e historietas do folclore, toda a gente já os ouviu, e toda a gente assegura que conheceu alguém que conheceu alguém a que tal aconteceu. Mas nunca aconteceu ao próprio, nem a ninguém que a pessoa conheça diretamente. Em boa verdade, não há qualquer razão para que isto acontecesse. As Osgas não possuem qualquer tipo de veneno nem transmitem absolutamente nenhuma doença de pele. São da grande diversidade de animais deste planeta, uns dos mais inofensivos para os seres humanos!

Mas de onde surgem então estes mitos e porque são tão prevalente em Portugal? A resposta, podendo parecer meio inusitada, é bastante simples: são uma herança cultural árabe. Tal como em muitas outras partes da nossa cultura - da gastronomia à arquitectura, aos hábitos e à língua - a presença Árabe na Península Ibérica deixou marcas profundas e que definiram (e ainda definem) o nosso modo de vida. No que toca aos mitos das Osgas, é de notar que as mesmas histórias que contei acima, são contadas por todo o mundo Árabe, e que no Corão, o Diabo aparece a Maomé sob a forma de Osga. A jeito de confirmação desta teoria, basta ver que o diz o Dicionário dos Arabismos na língua Portuguesa, publicada há algumas décadas pela Academia de Ciências de Lisboa - o próprio nome 'Osga' é um Arabismo, uma adaptação da palavra 'Wazzagah', usada no árabe para estes animais.

Assim sendo, quando nos próximos dias virem estes animais nas vossas paredes, apreciem-nos sem medo. Estão perante uma maravilha da natureza!

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