quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Brain rot, conheces?

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Brain rot foi eleita palavra do ano. Junta-se ao leque de expressões com que vamos fingindo abordar seriamente os efeitos das redes sociais nas sociedades contemporâneas, como já em 2020 tinha acontecido com doomscrolling.

Durante a semana passada, ainda que possa ter passado despercebido no meio de tanto acontecimento, foi notícia o facto de a expressão brain rot ter sido considerada palavra do ano. Numa votação online em que participaram 37 mil internautas promovida pela Oxford University Press, editora do famoso dicionário Oxford, a expressão levou a melhor sobre uma série de outros termos de calão da internet que compunham a lista. E rapidamente correu o mundo, num movimento habitual que já se vai tornando ritual sempre que chega esta altura do ano. Tops, listas, nomeações e eleições online do outro lado do mundo invadem os nossos alinhamentos noticiosos, especialmente quando confirmam vieses ou servem para marcar posições. E neste caso não é excepção.

Com a notícia sobre a palavra do ano, jornais por todo o mundo estrearam a expressão nas suas páginas, repetindo dezenas de vezes o alinhamento da peça: palavra do ano, shortlist completa, dados sobre crescimento da utilização, facto sobre o surgimento da expressão referido originalmente no comunicado, conclusão vaga sobre os perigos para que esta expressão aponta. A eleição de uma palavra entre outras numa votação online sugere o apodrecimento cerebral promovido pelo consumo excessivo de redes sociais e, simultaneamente, revela-nos como a toxina já se espalhou por todo o corpo social.

O viral como crítica do viral
Entre as linhas ténues das conclusões vagas, brain rot junta-se ao leque de expressões com que vamos fingindo abordar seriamente os efeitos das redes sociais nas sociedades contemporâneas, com honras de palavra do ano, como em 2020 tinha acontecido com doomscrolling. Paradoxalmente, a constatação dos efeitos nocivos das redes sociais e da deterioração do valor do conteúdo a que estas obrigam, não serve de pretexto para interromper por instantes este ciclo. Serve-lhe antes como reforço: gerando centenas de artigos de valor duvidoso que reforçam as dinâmicas de poder online, nos embrulham nesta cultura sem tempo e sem local, onde o viral se confunde com global, e a crítica se assemelha a um reflexo do objeto criticado.

Esta circularidade pode ser vista como uma demonstração cultural da nossa condição póstuma, como apelidou Marina Garcés no seu livro Novo Iluminismo Radical. “O problema é que quando a cultura se reduz à crítica da cultura, a sua autonomia fica condenada à auto-referencialidade: a filosofia como crítica da filosofia, a arte como crítica da instituição arte, a literatura como crítica das formas literárias, etc” — escreve a filósofa, e, a propósito deste exemplo específico, podemos acrescentar algo como o viral como crítica do viral. Se por um lado se estabelece uma crítica sobre um modo de estar online, essa crítica é mais uma constatação (ou uma contemplação?) do que um questionamento — retomando Garcés, “um exercício de crítica que só consegue mover-se no espaço existente entre o que já foi e a impossibilidade de ser outra coisa”.

Constatar como as redes sociais se tornaram tóxicas, que têm efeitos nocivos na saúde mental e que quase todos passamos tempo demais agarrados aos telemóveis tornou-se quase um ritual nas próprias redes sociais, mas à medida que o tempo passa, esses momentos tornam-se cada vez mais coreográficos. Cada um purga os seus vícios ou exprime as suas virtudes, na partilha de mais um viral, sem que se conquiste nem um centímetro ao fantasma da impossibilidade. Apropriando Mark Fisher, “o cancelamento do futuro é acompanhada de uma diminuição das expectativas”, e estes momentos de constatação, mais do que criticar as raízes do problema, normalizam-no, como se não houvesse alternativa.

Se no seu texto Fisher utiliza a música como exemplo, as palavras que escreve encaixam na perfeição quando pensamos no panorama mediático e cultural: “Nos últimos dez a quinze anos, a Internet e a tecnologia das telecomunicações móveis alteraram a textura da experiência quotidiana de forma irreconhecível. No entanto, talvez por causa de tudo isto, há uma sensação crescente de que a cultura perdeu a capacidade de apreender e articular o presente. Ou pode ser que, num sentido muito importante, já não haja presente para apreender e articular”. Em vez de uma crítica com valor emancipatório, nas palavras de Garcés, “que nos devolva a capacidade de elaborar o sentido e o valor da experiência humana a partir da afirmação da sua liberdade e da sua dignidade”, o que é servido é uma espécie de meme, mascarado de reflexão com uma referência histórica ou intelectual, neste caso a alusão a Thoreau que terá usado a expressão pela primeira vez em 1854 no livro Walden.

Não é que fosse expectável que os conteúdos em torno da palavra do ano desencadeassem um momento revolucionário de reflexão global em torno do sentido das nossas vidas neste mundo digital. Mas a escolha desta palavra em específico, em mais um ano marcado por guerras e uma discussão em torno do genocídio, pela amplificação do entusiasmo desmedido da Inteligência Artificial ou a ausência de respostas perante alguns dos maiores problemas da humanidade, é sintomática. Mostra-nos que estamos a passar demasiado tempo online e a limitar com isso a nossa visão do mundo, mas também as diferentes escalas em que hoje nos movemos, e a forma como continuamos a olhar para a tecnologia: numa perspectiva despolitizada, como se fosse uma inevitabilidade que nos é imposta e não o resultado de um conjunto de processos dos quais, mais ou menos, todos fazemos parte. Individualista, retomando à dimensão do comportamento individual um fenómeno social com características sistémicas evidentes, desde a ausência de regulação adequada até à implicação das empresas que desenvolvem as grandes plataformas tecnológicas nas grandes questões do presente. E como uma espécie de caixote para os males do mundo, onde pela indefinição tudo acaba por caber, servindo como bode expiatório para a podridão dos cérebros, neste caso.

A escolha de uma palavra popularizada pelas gerações mais novas, e as próprias palavras do comunicado que apontam estas gerações como os principais responsáveis pelo uso e criação do conteúdo digital a que o termo se refere, fazem outro desvio importante. Dando a esta questão uma patine geracional, reforça-se o preconceito em torno do mau uso das redes sociais como sendo uma característica exclusiva dos mais jovens — quando basta passar 10 minutos no Facebook para percebermos que atravessa todas as gerações. Mas mais do que isso: a tendência para a infantilização e despolitização do debate em torno deste tipo de questões faz com que raramente se unam os pontos que traçam o mapa da economia do espaço digital de forma coerente. Por outras palavras, raramente se expõe que o nosso cérebro não apodrece por uma espécie de depressão colectiva, mas porque o modelo económico vigente em grande parte da internet que compõe o nosso quotidiano passa, em parte, por apodrecê-lo, tirando-nos a capacidade de decidir livremente com complexos esquemas de persuasão detalhadamente pensados; e não só, roubando o horizonte fora das redes sociais.

Em 2018, o artista James Bridle denunciava num ensaio e numa TedTalk como a proliferação de vídeos viciantes no YouTube não era um sinal do acaso, nem fruto de uma intenção de quem concebe os algoritmos de recomendação, mas antes uma intricada relação de interdependência entre infraestrutura tecnológica (que quer maximizar o tempo na plataforma) e incentivos económicos (é barato fazer conteúdos online e fácil monetizá-los). Desde então, o contraste acentuou-se ainda mais e, hoje, o que vemos como virais e fenómenos da internet (e que muitas vezes começam como tal) são alguns dos conteúdos melhor remunerados online. Desde os canais de YouTube como Mr. Beast, ou o famoso entre os mais novos Skibidi Toilet, ao gigante mercado da influência que já faz circular milhões. A internet tornou-se num gigante mercado de entretenimento, mas ao longo dos anos, por muito que constatamos que este facto alterou diferentes circunstâncias da vida social (proliferação de fake news, polarização do espaço público, perda de valor do jornalismo, e podíamos continuar) continuamos sem ter uma solução à medida. Talvez porque estejamos a ver mal o problema.

Num texto publicado no seu substack em 2021, Kevin Munger, professor de Ciência da Computação num departamento de Ciência Política partilhava, a propósito da deterioração do Facebook, um ponto de vista que parte de uma premissa provocadora para expandir a reflexão: o Facebook são os outros. O mesmo racional podemos aplicar à internet no geral, aos sucessivos formatos de qualidade duvidosa e à nossa querida palavra do ano: brain rot são os outros.

Nesse texto, Munger sugere que a nossa constatação sobre a fraca qualidade dos conteúdos é, de certa forma, uma confronto com pessoas, grupos e comunidades a que não acedemos nas nossas bolhas. Ao contrário dos meios de comunicação em massa, dos media estabelecidos, onde apenas alguns conseguem aceder, por capacidade ou conhecimentos, Munger sustenta que as redes sociais são uma forma de democracia passiva com efeitos algo perversos. Os algoritmos e as redes sociais têm um papel aparentemente inclusivo, integrando todos no espaço digital, mas ao mesmo tempo deixam os mais desprotegidos à mercê das lógicas predatórias, de estratégias altamente aditivas e da capacidade de persuasão dos algoritmos. O que faz com que, em última análise, a deterioração da internet seja um sintoma da nossa incapacidade de tomar conta uns dos outros — no sentido de os equipar com as ferramentas necessárias para uma utilização crítica e benéfica das tecnologias. “A democratização da comunicação online demonstrou a hipocrisia deste ponto de vista. Sempre houve um imperativo moral para sermos mais atenciosos e inclusivos; agora é uma necessidade política. Todos nós odiamos o Facebook, e o Facebook (a empresa) é, reconhecidamente, terrível. Mas, em grande medida, odiamos o Facebook porque o Facebook são outras pessoas” – escreve, apontando aos efeitos sistémicos e prevalentes desta marginalização digital.

Nietzsche não é um hamburguer
O brain rot está longe de ser circunscrito a uma experiência individual e essa é outra característica que a eleição da palavra do ano falha em abordar. Não são só os nossos cérebros que estão podres, mas muitos dos sistemas em que vários cérebros se interligam. E a diferença entre um conteúdo sem valor do TikTok, que consumimos enquanto estamos na casa de banho, e uma notícia num bloco informativo num canal mainstream sobre um viral, um hype tecnológico desmedido ou enquadrando de forma errada conteúdos que surgem online, continuam a ser centenas de milhares de visualizações. O mesmo sistema que apodrece os cérebros através de investimentos avultados em investigação de padrões de design de interfaces e algoritmos que fomentem a adição, e renega a responsabilidade sobre os efeitos causados em discursos bonitos e pseudo-ciência publicada em blogs, é retro-alimentado por uma sociedade que, como dizia Fisher, não tem revelado a capacidade de compreender e articular o presente. Que baixou as expectativas e se deixa fascinar por qualquer viral.

Noutro escrito famoso, Fisher diz que os estudantes hoje em dia querem ler Nietzsche como quem come um hamburguer, e que estes não se apercebem que a complexidade e a indigestibilidade de Nietzsche é, em parte, o que lhe confere o valor que tem. O mesmo racional se pode mais uma vez expandir e aplicar à nossa apreciação dos fenómenos contemporâneos e do foro tecnológico. Queremos explicá-los e nomeá-los com a mesma simplicidade que partilhamos um viral, sem percebermos que essa constante simplificação é parte do problema e não da solução. Não precisamos de mais um termo engraçado que descreva vagamente o que nos acontece quando nos perdemos no TikTok, precisamos de perceber o que nos falta e procuramos nesta espiral, e que forças estão em jogo nesta interação.

Um caso paradigmático desta décalage entre a mediatização dos fenómenos e a sua compreensão, e a forma como alimenta e reforça para um brain rot generalizado, é a Inteligência Artificial e todo o discurso mainstream que se tem gerado. Artigos a afirmar que a Inteligência Artificial pensa, a propaganda desmedida das qualidades da tecnologia em segmentos críticos onde escasseiam os testes ou a simples incompreensão da diferença entre os setups científicos e a aplicabilidade prática das soluções — que geram promessas como “a IA pode resolver a crise climática”, “a IA consegue ler mentes” ou “a IA agora pode prever crimes” — denunciam outro sintoma característico da tal condição póstuma: a delegação da inteligência (como lhe chama Garcés). E como a nossa relação com a tecnologia nos envolve nesta espiral de apodrecimento não só quando estamos no TikTok.

A tecnologia ou é o nosso fim, ou a solução. “Do que se trata é de delegar a própria inteligência, num gesto de pessimismo antropológico sem precedentes” afirma Marina Garcés, continuando mais à frente: “a credulidade do nosso tempo entrega-nos a um dogma de duas faces: ou o apocalipse ou o solucionismo. Ou a irreversibilidade da destruição, até da extinção, ou a inquestionabilidade de soluções técnicas que nunca está nas nossas mãos encontrar”. Ou a estupidez da nossa utilização das redes sociais, ou a magnificência das máquinas na demonstração de inteligência. “Humanos estúpidos, num mundo inteligente: é a utopia perfeita” — assim descreve a ideologia dominante que ecoa por todo o nosso edifício mediático.

Numa internet que se edificou sobre a promessa do acesso universal ao saber, “o problema do acesso não é, portanto, o da disponibilidade, mas o do caminho” como escreve Garcés. Não é que na internet não haja bom conteúdo, não se produza conhecimento de valor, ou que toda a internet seja necessariamente construída de forma a manter-nos viciados; é que toda a cultura mainstream, ecoando a ideologia de Silicon Valley, gerou mecanismos de neutralização da crítica, como a saturação da atenção, a segmentação de públicos, a uniformização das linguagens e a hegemonia do solucionismo, sugere a filósofa.

No espaço de opinião que ocupa na revista Sábado, José Pacheco Pereira escreve uma curta nota sobre a escolha da palavra do ano. Elogia a escolha, diz que “é por isto que em muitas coisas os ingleses são muito melhores do que nós”, e termina com um “a podridão já por cá anda”, em reflexão sobre as palavras do ano na lista portuguesa. Concedendo que a escolha é interessante pelo factor novidade, não deixa de me assaltar a questão: qual o valor percebido nesta escolha resultante de uma votação online? E o que se espera que daí venha, ou o que significa no esquema geral das coisas? A resposta é nenhum e nada.Já não temos qualquer expectativa da mudança, contentamo-nos com qualquer neologismo que nos ajude a expressar o espanto com que assistimos aos fenómenos que não compreendemos. Sem que nos habituemos à sua complexidade e contribuindo muitas vezes para o ruído que queríamos calar e que nos distrai da discussão da política e da economia da internet. De viral em viral, de promessa em promessa, o vírus infiltra todos os corpos e transforma-nos numa espécie de exército de zombies que normaliza e essencializa a tecnologia, como se fosse uma inevitabilidade do futuro, vinda de um mundo paralelo, e não fosse o resultado concreto de muitos anos da história do capitalismo, e da interação de sistemas sociais.

Se o conceito de fim da história sugerida por Fukuyama já foi por muitos refutada, incluindo pelo próprio, não seria descabido recuperá-la para ilustrar o discurso em torno da tecnologia e da internet. A maioria do discurso que se gera em torno da internet desliga-a do curso da história, quer no que toca ao seu passado e a forma como chegámos onde chegámos, quer no que toca o seu presente e as soluções que têm sido procuradas. A especificidade de algumas das componentes técnicas, e a complexidade das hipotéticas soluções políticas não nos mobilizaram em torno de debates necessários mas praticamente afastaram esses debates do nosso quotidiano. E enquanto passamos atestados à podridão dos cérebros de cada um, convivemos com um mercado global da venda de dados que servem de base para a criação de estratégias que nos mantém viciados nas redes, com uma crescente normalização da vigilância e propostas dos reguladores para aceder ao conteúdo de comunicações privadas, com um aparelho mediático viciado nas redes de conteúdo duvidoso, e com um sistema de incentivos económicos onde é mais apetecível fazer anúncios da Prozis do que bom jornalismo, para dar um exemplo.

Os cérebros podem estar a apodrecer mas não devemos continuar a vê-lo como o princípio de um fenómeno: a putridão só se apodera de corpos mortos ou indefesos.

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