terça-feira, 15 de outubro de 2024

Para lá da fatalidade dos tempos



Num livro de 2015, Colapsologia, Pablo Servigne e Raphael Stevens criticavam uma economia despreocupada com os limites planetários e muito resistente à mudança, comparando-a como um carro que, em grande velocidade, se aproxima de um muro, conduzido por gente incapaz de olhar para o lado e perceber rotas alternativas.

Há inúmeras razões para estes bloqueios “sociotécnicos” — sendo uma delas, a meu ver, a enorme concentração de recursos e de bens e serviços a partir deles produzidos nas mãos de pouquíssima gente, que fará tudo para não perder, na transição, a sua “quota de mercado”, mudando de direcção, os que mudam, o mais devagarinho possível.

Mas, ao contrário da riqueza que estes poucos acumulam, esta dificuldade de imaginar caminhos alternativos, que nos desviem das várias crises que ameaçam a nossa existência colectiva, está bem distribuída pelo mundo, onde a ideia da TINA (There is no Alternative — Não há Alternativa) nos tornou seres passivos, à espera que outros tomem (as melhores) decisões sobre o nosso futuro.

Nesse mesmo livro, os autores assinalam que muito desse futuro se jogará na nossa capacidade de nos reimaginarmos enquanto sociedade, e de construirmos novas e poderosas narrativas sobre a humanidade e a nossa relação com esta casa comum, a Terra. E nesse sentido, destacam, “as iniciativas de transição” perceberam de maneira admirável que a batalha (e o esforço que será preciso fazer), se situa no terreno do imaginário e do Storytelling (a arte de contar histórias).

Em 2020, preso em casa, como muitos de nós, descobri que, no ano anterior, Rob Hopkins, co-fundador do Movimento para a Transição, cujo trabalho, a partir da pequena cidade inglesa de Totnes, vale a pena seguir, tinha publicado um novo livro, com um titulo tão singelo quão desconcertante: From What is to What If. Algo traduzível, directamente, por “Do que é ao que poderia ser”. A sua leitura revelou-se preciosa, pelas notas de esperança que me trouxe, naqueles dias sombrios.

A obra tem um subtítulo que nos lembra alguns livrinhos de auto-ajuda: Unleashing the Power of Imagination to Create the Future We Want (libertando o poder da imaginação para criarmos o futuro que desejamos). Mas, em vez de conselhos sobre como ficarmos ricos ou nos despedirmos do emprego para desenvolvermos um novo negócio, convida-nos a recuperar capacidades postas de parte ou atiradas para um cantinho das nossas vidas, e a utiliza-las em benefício da nossa saúde, da saúde da comunidade, da saúde do planeta.

Esta obra, que passou a ter, este ano, uma edição portuguesa, não vale, por isso, pelas respostas que dá — porque não é, relembro, um livro de auto-ajuda — mas por nos desafiar a fazer perguntas diferentes (pelas quais chegaremos, decerto, a respostas diferentes para as nossas inquietações). Voltando a Colapsologia, sou dos que sinto que “temos enorme necessidade de novas narrativas transformadoras neste momento de grande incerteza”. Mas, para isso, e como defendeu há muito o economista Serge Latouche, é preciso que “descolonizemos a imaginação”. E é isso que o co-fundador da Transition Network (TN), nos convida a fazer.

Rob Hopkins está em Portugal, e até ao final de Outubro apresentará o seu livro em várias cidades portuguesas, numa viagem em que terá a companhia da portuguesa Filipa Pimentel, co-líder da TN. Eu vou encontrá-lo perto de casa, na Póvoa de Varzim, cidade que criou, há pouco tempo, uma dinâmica para a transição, a partir de uma associação designada Centro do Clima. Depois de ter organizado, em 2021, durante o festival de cinema Porto/Post/Doc, uma sessão que o juntou, de longe, a José Carlos Mota e Laura Sobral — dois investigadores com trabalho admirável nas áreas do urbanismo e participação pública — vou poder, finalmente, agradecer-lhe, de viva voz, pelas reflexões que ele, e outros protagonistas do Movimento pela Transição, me têm proporcionado.

Enquanto jornalista muito dedicado às questões urbanas, a influência desta forma de pensar mudou, por exemplo, a minha abordagem ao espaço urbano, aos discursos que sobre ele se (re)produziram, e que nos fazem confundir desenvolvimento com uma inevitável motorização da mobilidade (símbolo de um crescimento imparável), que nos aprisionou a todos no trânsito e numa miríade de outros problemas, ao mesmo tempo que expandiu, e expande ainda, os limites da “cidade”. Tornando a gestão da vida urbana, e o nosso próprio quotidiano, insustentáveis. Percebi que, também na cidade, precisamos de construir, ou recuperar narrativas que nos ajudem a recuperar a rua.

Aberto a fazer perguntas diferentes, descobri gente que se recusa baixar os braços e vive imaginando e testando novas formas de viver a cidade, ou recuperando o que ela tinha de melhor, e que podemos resumir numa palavra, a proximidade: às pessoas, os vizinhos, aos serviços e aos bens de consumo, à troca de ideias, que também nos alimenta e à natureza, de que fazemos parte, mas da qual nos afastamos. Essa reaproximação faz-nos diminuir a pegada da mobilidade, ao mesmo tempo que alimenta o tecido urbano e a coesão social. E é uma poderosa ferramenta para a transição, ao pôr-nos mais perto de outros que, como nós, sentem o impacto do tempo, e a urgência da mudança, propiciando acção colectiva.

O que escrevi sobre a cidade pode ser replicado em muitos outros contextos e escalas. Kate Raworth, — que se identificou com o livro de Hopkins — desenvolveu na década passada pensamento paralelo para a economia, criando o conceito de Economia Donut. No qual, mais uma vez, desconstroi a aparência de ciência de teses e narrativas económicas tidas quase como “naturais”, e nos coloca perante novas possibilidades. Entre as quais, pasme-se, a cooperação, mais do que a sacrossanta concorrência, ganha destaque. E isto explica porque andam tão nervosos os arautos do status quo, do dividir para reinar, do homo economicus. Esse pseudo-ser egoista que tudo fará em benefício próprio, incluindo, se preciso for, prejudicar os outros.

Em todo este pensamento, perpassa sempre a ideia de que sozinho, ninguém chegará lá — se quisermos que esse lugar, o lá, não seja o pior dos cenários que nos pintam. E, apesar de nos terem ensinado que a competição é o grande motor da evolução humana humanidade, creio, como os autores de Colapsologia, que, pelas piores razões, vamos descobrir, nestas décadas, o valor da solidariedade. De outra forma, não acredito que sobrevivamos a este ciclo de (auto) destruição a que nos sujeitamos, arrastando, para o desastre, boa parte das espécies com as quais partilhamos o planeta.

Sem comentários: