terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

A Grândola não é uma canção de egoístas em noite de copos


Daniel Oliveira critica o comportamento das pessoas que, "em direto para as redes sociais, confraternizaram num restaurante do Bairro da Bica, em Lisboa, na última quinta-feira", entoando a canção de Zeca Afonso "Grândola Vila Morena", a maioria "sem máscara e sem distanciamento social".

O comentador que ocupa o espaço de opinião da TSF à terça-feira recorda que "o restaurante já fora encerrado coercivamente no mês passado", sendo que "os donos invocam o direito de resistência, apesar de todos os constitucionalistas explicarem que ele não se aplica sem que tenham recorrido aos tribunais".

Daniel Oliveira esclarece, contudo, que não tem "alma de vigilante" nem "julga o que cada um faz durante o confinamento". "Não gosto do espírito de bufaria coletiva, porque sei que ele não trará nada de bom às nossas sociedades e sei que aqueles que se arriscam a desempenhar esse papel acabam a pedir desculpas pelos seus próprios pecadilhos."

No entanto, o jornalista considera que, "ao transmitir as imagens em direto, ao recorrer a uma figura constitucional e ao cantarem a Grândola, estas pessoas quiseram transmitir uma mensagem política" que merece ser debatida.

O jornalista sublinha que "a Grândola não fala apenas de liberdade, fala-nos da igualdade em cada rosto, numa terra de fraternidade" e "não fala apenas da liberdade de cada um, fala de uma liberdade partilhada de forma fraterna e igualitária".

Por isso, Daniel Oliveira assinala os custos que o prolongamento e o agravamento da pandemia trazem, não só em termos de mortalidade, mas do impacto na sociedade.

"São centenas de milhares de crianças que perderam o acesso ao ensino presencial e não têm pais com competências culturais ou tempo para as ajudar em casa. Cada semana com as escolas fechadas à espera que os números de infetados desçam é menos uma oportunidade para saírem da pobreza em que nasceram. São crianças em risco ou mulheres vítimas de violência doméstica privadas pelo confinamento à sua segurança e dignidade. É o precário sem proteção, é o profissional de saúde exausto, é o velho isolado. São as pessoas com doenças mentais que se agravam, são todos aqueles para quem um jantar na Bica seria a última das prioridades. É a liberdade deles que fica limitada por cada a dia a mais nesta pandemia", enumera.

O comentador conclui, portanto, que "ou as pessoas que estiveram nesta festa negam a existência do vírus e acham que podemos voltar sem risco grave às nossas vidas ou acham que a nossa liberdade tem mais valor do que a liberdade das outras pessoas".

Na perspetiva de Daniel Oliveira, "isto não é apenas um conflito entre a liberdade e a saúde pública, é um conflito entre várias liberdades que apenas a solidariedade pode resolver".

Para o jornalista, a Grândola não deve ser encarada como "um hino apolítico onde se sente a liberdade de ignorar o outro, onde a liberdade é uma palavra de uso exclusivamente individual em que cada um terá direito, conforme o poder que tenha, para impor a sua vontade".

"A Grândola não é uma canção de noite de copos. É uma canção política sobre a dignidade, a solidariedade e a liberdade de todos num país pobre e injusto. Liberdade sem solidariedade é egoísmo. É a liberdade do mais forte para a tragédia do mais fraco", sustenta.

Daniel Oliveira lamenta ainda a diferença de tratamento entre o que aconteceu no restaurante Lapo e o que aconteceu no ano passado no Bairro da Jamaica: "Quando, em maio do ano passado, foram detetados três cafés abertos no Bairro da Jamaica, a PSP montou um espetáculo televisivo com direito a cerco policial e assessoria de imprensa para mostrar mão firme e só saíram de lá quando as portas dos cafés foram soldadas. Quando este restaurante ao lado do Bairro Alto reabriu, desafiando publicamente e em direto o encerramento anterior, treze pessoas foram gentilmente notificadas para pagarem uma multa."

"Este é o nosso país. Por isso, quando estas pessoas cantam a Grândola numa noite de copos, deviam prestar atenção à parte em que se diz que em cada esquina está um amigo, em cada rosto há igualdade. Sem isto, os seus caprichos serão pagos com a perda de liberdade dos outros", remata.

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