A travessia entre mundos
Ao longe, uma figura alta e esguia atravessa a Rua da Escola Politécnica, no Príncipe Real, em Lisboa. Movimenta-se com uma elegância contida, passos seguros, gestos serenos. Dr. Drauzio Varella parece imune ao calor daquele fim de tarde, à azáfama urbana, ao próprio ruído do tempo. Comunicador reconhecido, já teve lugar no horário nobre do maior canal televisivo da América Latina, a TV Globo. Oncologista renomado, foi pioneiro no estudo da biotecnologia para o tratamento do cancro e da SIDA no Brasil. Octogenário irrequieto, começou a correr aos 50 anos e com 82 pretende participar da maratona de Berlim, em setembro. Escritor singular, com o best-seller Estação Carandiru, retratou um ambiente tão conhecido como temeroso, a Casa de Detenção de São Paulo. Como se não bastasse, viajante. Chegara à Lisboa há poucos dias vindo do Brasil.
Conhece bem a cidade. Aqui tem casa, refúgio, silêncio — o necessário para escrever, ler e pensar. Regressou pela tranquilidade que aqui encontra e para lançar o seu vigésimo livro, O Sentido das Águas – histórias do Rio Negro (edição Companhia das Letras), obra que condensa mais de 100 viagens ao coração da floresta Amazónica, entre Manaus e São Gabriel da Cachoeira.
Qualquer conversa com Drauzio — e ele prefere o tratamento informal, com uma simpatia desarmante — por si só, daria um livro. Pessoa que inspira respeito pela voz serena, conversa interessante, informativa e articulada. O seu percurso pessoal e profissional é o testemunho do que de maior um ser humano pode aspirar a ser.
Mais do que um diário de campo, o livro de Drauzio é um conjunto tocante de retratos humanos — sem moralismos, sem adornos fáceis — com a intenção clara de ouvir o outro. Ambiciona transmitir um maravilhamento que o contato direto com a natureza em estado bruto consegue. Histórias colhidas entre os vapores dos rios e o silêncio das aldeias, entre os doentes esquecidos e os curandeiros, entre os ecos das lendas e os horrores da história. Drauzio aproxima-se como quem escuta, como quem aprende, com a delicadeza de quem sabe que não se pode contar a Amazónia tentando moldá-la aos esquemas europeus ou aos termos vazios como “luxuriante”. Como dizia Euclides da Cunha: “A Amazónia é um excesso de céu por cima de um excesso de águas”. Qualquer adjectivo forçado empalidece perante tamanha vastidão. Reconhecendo isso, Drauzio é claro quando diz que o livro traz histórias “da região do rio Negro”. 62, para ser precisa. Na literatura folclórica brasileira, o boto dor-de-rosa, curupira e boitatá são algumas das figuras que enriquecem o imaginário coletivo. Em O Sentido das Águas, Drauzio comunica diretamente com testemunhas destes mitos ao mesmo tempo que, como bom professor, ensina através da história, relata a inação do Estado com o património humano e ambiental onde crimes do tempo do Império ainda são perpetrados.
A ciência no interior da floresta: da Biotecnologia à Biofilia
Mas porquê, afinal, um oncologista internacionalmente reconhecido — pioneiro no uso de biotecnologia no tratamento do cancro e da SIDA — se embrenharia pelos afluentes escuros do Rio Negro? A investigação científica foi o estopim. Mas, talvez no seu profundo inconsciente, tão escondido como alguns recônditos da floresta que ocupa mais de 60% do território brasileiro, a resposta esteja numa palavra esquecida do vocabulário contemporâneo: biofilia.
O termo, cunhado por Erich Fromm e popularizado por Edward Wilson, traduz o amor instintivo à vida, à natureza, àquilo que pulsa fora de nós, mas do qual dependemos inteiramente. Drauzio parece movido por essa pulsão ancestral — uma ânsia de reencontro com algo maior, mais essencial, que não cabe nos corredores de hospitais, bancos de universidade, cadeias ou à frente das câmaras. Daí hoje, a leitura de tal obra, escrita por esta personalidade é essencial.
A sua escrita, neste novo livro, ressoa com essa procura. Sem paternalismo, sem exotismo, ele retrata comunidades indígenas com a dignidade de quem sabe que a verdadeira grandeza está na resistência serena, na sabedoria transmitida pela oralidade, no modo como se vive — e morre — no interior da floresta. À semelhança dos naturalistas do século XVIII, como Alexandre Rodrigues Ferreira, Drauzio recolhe relatos, observa costumes, regista o que vê e sente. Ferreira, que recebera do Marquês de Pombal a missão de sondar as potenciais riquezas da Amazónia, falava do “rio de águas âmbar”. Curiosamente ou não, parte do seu espólio está no Museu de História Natural na mesma rua lisboeta onde encontrámos Drauzio. Ao contrário do mandatário do Marquês, as riquezas que Drauzio procurou no norte do Brasil tinham como objectivo serem estudadas não para enriquecer um império, mas para devolver a saúde de doentes cancerígenos, pessoas que vivem com o VIH, sem que para isso a vida dos povos que mantém a floresta viva fosse explorada. Na verdade, O Sentido das Águas oferece aquilo a que um grande contador de histórias pode aspirar: a humildade de um olhar profundamente humano.
Nascido no bairro fabril de imigrantes do Brás, na megalópole de São Paulo, desde muito jovem interessava-se por ouvir e contar histórias. Terreno fértil não lhe faltava: filho de pai galego e mãe brasileira, foi sobretudo criado pelos avós portugueses: ela do Porto e ele de Trás-os-Montes. Portugal sempre esteve à mesa através do bacalhau servido em casa duas vezes por semana. O menino que adorava jogar à bola na rua encantou-se cedo pela leitura que os “gibis” de Jerônimo, o herói do sertão e O Anjo, pela maneira como este mundo o absorvia e o transportava para outros. “A leitura é uma atividade que trabalha com todos os processos cognitivos.” É certo que estas influências foram formadoras para o futuro Dr. Drauzio Varella, como também o é a tenacidade do seu espírito em manter a curiosidade de menino como um guia para a vida.
Em conversa exclusiva para a Comunidade Cultura e Arte, Antônio Drauzio Varella, partilhou a génese do projeto, marcada por uma inquietação que começou muito longe da floresta.
A luz que a ignorância acendeu
Entre as décadas de 1980 e 1990, a medicina passava pela pesquisa de tratamento do cancro através da biotecnologia, ao mesmo tempo que um novo vírus era descoberto: o da imunodeficiência adquirida, a SIDA. Nesta altura, entre a prática clínica, pesquisa e docência, Drauzio Varella envolveu-se com os seus pares da Cleveland Clinic, como seu amigo Rolando Bukowski, em pesquisas que estavam a transformar a medicina. Mas o Brasil ainda gatinhava no debate científico. Bukowski alertou para que se não se conseguisse mostrar a utilidade da floresta “como é que ela seria mantida? Fiquei com essa frase na cabeça. Voltei para São Paulo, falei com o João Carlos, dono da UNIP (Universidade Paulista) que tinha o barco Escola da Natureza e sugeri montarmos um projeto de screening.” Naquela época, não havia ninguém no Brasil capacitado para a tarefa. Drauzio imaginou um curso de biotecnologia com nomes de peso da ciência mundial. O plano parecia ambicioso demais, mas a bordo do barco que estava ancorado no Rio Negro, em plena floresta, Robert Gallo — co-descobridor do vírus da SIDA — lhe lançou a pergunta que transformaria tudo: “Quem está a estudar esta diversidade? Quem está a fazer rastreio farmacológico aqui?” A pergunta ficou. E — novamente — transformou-se em acção.
“A rotina consiste em selecionar uma planta, uma árvore de qualquer altura, colher as cascas, as folhas, se tiver flores, frutos; uma amostra é preparada para ir para um herbário; esta parte é moída, dissolvida em água, álcool e, a seguir, liofilizada. Temos 2.500 desses extratos em stock a menos 20 graus, uma extratoteca importante, a maior dessa região do Brasil. Por fim são feitos testes experimentais com esses extratos para saber se é possível combater células tumorais ou bactérias resistentes. Este é o projeto.”, sublinha-nos Drauzio Varella.
Mas foi a floresta, e não apenas a ciência, que conquistou Drauzio. “Fui-me apaixonando cada vez mais por aquele lugar”, confessa. E assim ano após ano, deixou-se envolver por aquele espaço onde a natureza e a cultura coexistem num equilíbrio ancestral, que escapa às lógicas da acumulação. “Os indígenas vivem nesta região há cerca de 14 mil anos. A floresta é uma construção social destes povos que a mantêm de pé”, refere.
É esse olhar — simultaneamente clínico e afectivo — que se traduz no livro agora publicado. Drauzio escreve como quem viveu, como quem viu de perto os ciclos da mandioca e os rituais dos pajés, os silêncios dos rios e os gritos das injustiças. Relata, por exemplo, o caso do nativo que caça uma paca para sustentar a família e vê o animal confiscado por um fiscal que, sem pudor, acaba por assá-la num churrasco. Ou o episódio em que dois soldados da etnia Hupda são forçados a dormir no chão por colegas Tukano, num quartel onde o preconceito indígena é exposto em toda a sua crueldade.
«O coronel mandou chamar os quatro soldados indígenas que dividiram o alojamento.
— Vou falar uma vez só. No Exército servem brancos, negros, indígenas, filho de japonês, de chinês, de árabe, de judeu. Aqui não admitimos preconceito racial de jeito nenhum, muito menos racismo étnico.» (O Sentido das Águas, p. 163)