O linguista, escritor, tradutor, crítico literário e académico português Fernando Venâncio, autor de 'Assim Nasceu uma Língua' (2019), morreu esta sexta-feira em Mértola, aos 80 anos, anunciou a editora Guerra & Paz e noticiou a agência Lusa. Com essa obra, mexeu no passado da língua portuguesa, mas também manifestou "tranquilidade" quanto ao seu futuro.
Em comunicado,
Manuel S. Fonseca, editor da Guerra & Paz, recorda como recebeu um texto de Amesterdão em 2015, um prefácio assinado por Fernando Venâncio. Mais tarde, aconteceu o que o editor classifica como “o milagre: o Fernando aceitou ser meu autor”. Daí sairia 'Assim Nasceu uma Língua' e, em 2022, "O Português à Descoberta do Brasileiro". Fernando Venâncio esteve ligado a vários projectos culturais e em 2020 foi distinguido com o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho pela obra 'Assim Nasceu uma Língua' - Sobre as Origens do Português.
Marco Neves, tradutor, revisor, autor e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tinha-o como mentor. Esta sexta-feira, sublinha ao PÚBLICO que Fernando Venâncio era um linguista mas também um escritor de ficção. E isso foi importante para o sucesso de Assim Nasceu uma Língua, que se tornou um best-seller por ser "um livro que era de um estudioso da língua mas também de alguém que sabe escrever mesmo muito bem".
"É muito raro, diria até que é caso único um livro de linguística que não seja um dicionário ou uma gramática ter um sucesso tão grande e chegar a tantas pessoas" no mercado português, enfatiza, "porque apesar de ser um tema que as pessoas gostam, normalmente não lêem livros de linguística. Teve uma recepção do público extraordinária."
Assim Nasceu uma Língua "é um livro principalmente de divulgação mas é também de investigação. Além de expandir o conhecimento, também cria novo conhecimento. É algo que não é assim tão comum".
Fernando Venâncio considerava que “a linguística portuguesa é muito estranha. Temos óptimos historiadores, óptimos investigadores da gramática e sobretudo da sintaxe, mas não há nenhum interesse na divulgação”, dizia ao Ípsilon em 2022.
Marco Neves lembra que Venâncio "não tinha medo nenhum de usar qualquer canal: Facebook, blogues, redes sociais. Não tinha aquela hesitação que algumas pessoas na academia têm de usar qualquer canal para chegar ao grande público e isso também ajudou a poder comunicar aquilo que o apaixonava – a língua e a literatura".
Na mesma entrevista de 2022, Fernando Venâncio criticava o Acordo Ortográfico de 1990 e o silêncio da comunidade de linguistas sobre um “produto mal-enjorcado, elaborado em cima do joelho, rejeitado por todas as entidades então consultadas” e “tecnicamente inapresentável”. Era, portanto, um crítico do acordo.
Um romancista, cronista e tradutor
Na obra literária, assinou Um Selvagem ao Piano (Peregrinação, 1982), Os Esquemas de Fradique (Grifo, 1999), El-Rei no Porto (Asa, 2001), Beijo Técnico e Outras Histórias (Ulisseia, 2015), Último Minuete em Lisboa (Assírio & Alvim, 2008), Maquinações e Bons Sentimentos (Campo das Letras, 2002) ou Só o Meu Computador Me Compreende (On y va, 2018). Assinou a colectânea de ensaio Objectos Achados (Caixotim, 2002), compilou uma antologia da Crónica Jornalística – Século XX (Círculo de Leitores, 2004) e editou os seus diários de viagem em Quem Inventou Marrocos (Ausência, 2004). José Saramago: a luz e o sombreado (Campo das Letras, 2000) é outra das suas obras, além da colectânea de polémicas Maquinações e Bons Sentimentos (Campo das Letras, 2015).
Mas é com Assim Nasceu uma Língua, que em 2023 já ia na 7.ª edição, com a editora Guerra & Paz, que se assinala o ponto alto da sua carreira – um linguista à procura das origens de uma língua que depois se espalharia pelo mundo. Aliás, em 2022, assinou também O Português à Descoberta do Brasileiro, pela mesma Guerra & Paz, acerca da influência do português do Brasil sobre a escrita em Portugal a partir de finais da década de 1970, além de se ter dedicado a construir gramáticas de português para a sua língua de tradução de eleição, o neerlandês, ou de ter feito a investigação Concepções de Língua Literária em Portugal na Época de Castilho (1835-1875).
Lançado em 2019, Assim Nasceu uma Língua é a obra de referência de um homem nascido em Mértola em 1944 e que viveu em Lisboa desde os dois anos, depois em Braga desde os dez e foi para Amesterdão aos 26 anos, onde se formou em Linguística Geral e onde viveu e leccionou, nomeadamente na Universidade de Amesterdão sobre Problemática e Legislação das Línguas Minoritárias na Europa – mas também deu aulas e ocupou cargos directivos em universidades de Amesterdão, Roterdão e Haia, como refere uma sua biografia da Direcção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas. "Assim Nasceu uma Língua" é aliás, nas palavras do jornalista e cronista do PÚBLICO Nuno Pacheco, “a obra de uma vida”.
Nela, Venâncio investiga e vasculha uma língua nascida de uma língua única junta com o galego e que se separou a partir de 1400 para uma independência que, na opinião do linguista, não devia esquecer a sua origem. “Portugal utilizou a língua que herdara ao fazer-se independente: o galego”, lê-se nessa obra. Fruto da sua “curiosidade” e da “vontade de ir até onde ninguém tinha ido” como disse ao Ípsilon em 2019, levou-o a fixar por escrito a fortíssima ligação ao galego, depois a absorção de algo do espanhol, e a ilusão da “língua lusitana” – “Quando a Galiza deixou de ser referência, Portugal procurou uma referência mais a sul, no povo lusitano. E Camões consagrou isso”, disse ao Ípsilon na mesma entrevista.
A obra “conquistou Portugal, seduziu os nossos vizinhos galegos, bem como gerou controvérsia no Brasil”, recorda o editor Manuel S. Fonseca na mesma nota enviada às redacções. "Houve alguma polémica no Brasil, é verdade, por vários motivos", completa Marco Neves ao PÚBLICO. "Porque o livro fala da questão do português de Portugal e do português do Brasil. Mas levantou também discussões infindas sobre a relação do português com o galego ao tentar mostrar que o português nasce da língua medieval a que ele chamava directamente galego; se para os portugueses pode parecer uma questão pouco importante, marcar uma posição a dizer que neste momento o galego e o português já não são a mesma língua é uma questão bastante ainda acesa e polémica entre muitos e muitos sectores da sociedade na Galiza."
Ainda assim, diz Marco Neves, na altura da morte de Fernando Venâncio, entre aqueles que concordavam ou discordavam do académico português, "todos são unânimes em dizer que foi importantíssimo para as relações entre Portugal e Galiza".
A Guerra & Paz reeditou este ano "Os Esquemas de Fradique" e o seu editor acredita que ali, naquele romance de há décadas, é que serão descobertas “paixões doidas – ‘sabem tão bem!’ – um cientista gatuno (‘gatuno, mas um tipo porreiro’) e muito whisky divino”. É a obra que Manuel S. Fonseca destaca, a par do legado para a linguística, do autor de quem se despede esta sexta-feira.
Ao nível pessoal, Manuel S. Fonseca descreve uma “voz cheia de entusiasmo”, “o tão bom humor”, ácido por vezes, escrutinador do “grande circo da pretensão, pompa e circunstância”.
“Tento contar uma história, com a reserva que a história impõe sempre”, dizia Fernando Venâncio. “E a verdadeira história é que o português é, historicamente, um fenómeno tardio. Há toda uma história anterior. Ao mesmo tempo, isso dá-nos uma grande tranquilidade. Porque o português sobreviveu até hoje, da melhor maneira, e tem o futuro pela frente, seja em que forma for.”