A grande questão neste momento, defende Marci Shore, "é saber quem vai forçar quem" na "situação sem precedentes" em que os Estados Unidos se encontram. "Trump e Vance não são omnipotentes nem imortais, são habilitados por muitas outras pessoas, incluindo quase todos os republicanos".
Isso é notório, por exemplo, na recente
aprovação da "lei grande e bela" que vai enriquecer os mais ricos e empobrecer os mais pobres, num país que está a resvalar para o autoritarismo. "O terror atomiza-nos, e os regimes tirânicos alimentam-se dessa atomização – e o único antídoto é a solidariedade ", ressalta a historiadora especializada em fascismo.
Aos que dizem que a América será salva pelos "pesos e contrapesos" que sempre orientaram a política norte-americana, Shore deixa um aviso. "As estruturas e instituições não são proteções mágicas e sobrenaturais, são criadas e geridas por pessoas" – e se a História nos mostra algo, é a facilidade com que coisas impensáveis são normalizadas. "Os seres humanos têm uma capacidade extraordinária de normalizar o anormal; o que parecia inconcebível num dado momento pode tornar-se o novo normal alguns meses mais tarde, e mal nos apercebemos de como as fronteiras recuaram."
Com uma carreira de décadas dedicada à cultura eslava e à Europa Central e de Leste,
Shore trocou a Universidade de Yale, nos EUA, pela Universidade de Toronto, no Canadá, uma decisão que, garante, foi tomada após muita ponderação em família. Se dependesse do marido, o historiador e escritor Timothy Snyder, é possível que a mudança nunca tivesse acontecido. "O meu marido não é uma pessoa ansiosa por natureza. Se estivesse sozinho, teria regressado a New Haven, não apesar, mas precisamente por causa da vitória de Trump, para lutar pela democracia dos Estados Unidos."
Ao ver o vídeo que o NYT fez consigo e com outros dois especialistas em Fascismo da Universidade de Yale, Jason Stanley e o seu marido, Timothy Snyder, achei muito marcante a analogia que faz com o Titanic, em relação a esta ideia do ‘excecionalismo americano’. Continua a haver muita gente, dentro e fora dos Estados Unidos, a acreditar que os pesos e contrapesos vão impedir o navio de se afundar, apesar de a realidade apontar na direção oposta. Vislumbra alguma forma de esses pesos e contrapesos prevalecerem, por exemplo, por via das eleições intercalares no próximo ano ou do ramo judiciário? Ou estamos destinados a ver o navio afundar-se? Não existe nada “destinado”. Os “pesos e contrapesos” referem-se a estruturas e instituições – não são proteções mágicas e sobrenaturais, são criadas e geridas por pessoas. Há certamente juízes que estão a recuar e a dizer ‘não’ – e a administração Trump está, muitas vezes,
a recusar-se a honrar essas decisões judiciais. Torna-se então uma questão de saber quem vai forçar quem. Esta é, de certa forma, uma situação sem precedentes nos Estados Unidos.
E como se sai dessa situação?
Tudo depende das pessoas. Trump não é omnipotente nem imortal – e JD Vance também não. Eles são habilitados por muitas outras pessoas – incluindo quase todos os membros republicanos do Congresso, que fizeram barganhas faustianas. Esta “Lei Grande e Bela”, que priva milhões de americanos de cuidados de saúde e milhões de crianças de comida,
não teria sido aprovada se o Partido Republicano não tivesse alinhado com Trump. Eles podiam dizer ‘não’.
A votação no Senado estava a 50-50 antes de JD Vance ter dado o voto de desempate na sua qualidade de vice-presidente. Juntamente com todos os democratas, três senadores republicanos votaram contra. Se mais um senador republicano tivesse votado contra, o projeto de lei não teria sido aprovado.
Logo após o voto, o meu irmão, que é compositor de ópera, publicou
este vídeo [uma música chamada “Na noite passada sonhei que vi Jesus”, que termina com o verso “E ele disse-me que eu podia ir para o inferno” e com a adenda: “Mantenham-se seguros, amigos – e não fiquem doentes”. Desde a eleição de Trump, Dan Shore tem usado os seus
dotes musicais para compor sátiras políticas de protesto contra as políticas da administração.]
Em tempos como estes, as pessoas tentam encontrar esperança onde quer que seja e muitas estão algo esperançosas perante notícias recentes como a libertação de Mahmoud Khalil, ativista da Universidade de Columbia, e a vitória de Zohran Mamdani nas primárias democratas à Câmara Municipal de Nova Iorque. O que podem estes eventos indiciar no contexto da busca por um caminho alternativo para os EUA? Os Estados Unidos são um país profundamente dividido, é por isso que todas as eleições presidenciais são uma competição por um grupo demográfico relativamente mínimo, os chamados “swing voters”, ou eleitores indecisos. Há uma verdadeira resistência, há momentos de esperança, e é importante estar ciente e reconhecer esses momentos.
Estou a participar numa
iniciativa do Seminário de Democracia da New School para documentar “pequenos atos de resistência democrática”. Este site pretende ser uma plataforma de solidariedade, reconhecimento e apoio moral, mas também um recurso para jornalistas, especialmente jornalistas fora dos Estados Unidos.
Recentemente, deu uma
palestra na Universidade Metropolitana de Toronto onde avisou os canadianos – numa mensagem também dirigida, presumo, aos europeus e a outras sociedades – que “não podem confiar” no atual governo americano e que, por conseguinte, não podem confiar nos Estados Unidos. A verdade, porém, é que a arquitetura da relação transatlântica assenta nesta dependência europeia dos EUA, por exemplo, em matéria de defesa e segurança. Quão exequível seria “sair” desta relação? Ou existe outra forma de negociar (e fazer acordos) com os EUA, reduzindo essa dependência?
Eu nem sequer o descreveria como uma mudança de paradigma, mas sim como um salto para o niilismo. Para Trump, não existe a verdade versus a mentira ou o bem versus o mal; existe apenas o que é vantajoso ou desvantajoso para si próprio num dado momento. Todas as relações são puramente transacionais. Não existem valores ou princípios.
Estamos a olhar para um abismo. Pode acontecer, claro, que algo que Trump entenda como sendo do seu interesse num determinado momento tenha, por acaso, efeitos positivos – mas isso não deve ser mal interpretado como uma política coerente ou um paradigma que reflita qualquer tipo de valores consistentes.
A Europa não deve absolutamente confiar em nós. É isto mesmo: o fim do namoro.
Num artigo que escreveu em maio, afirmava que se deve “evitar fetichizar” conceitos como autocracia, fascismo, autoritarismo, etc., porque “nenhuma situação histórica é exatamente igual a outra”. Ainda assim, impõe-se a pergunta: que lições é que o passado pode ensinar-nos no que toca a lutar contra este sentimento de paralisia da sociedade? Conceitos como o fascismo são muito úteis, só não devem ser fetichizados. Quanto às lições: os seres humanos têm uma capacidade extraordinária de normalizar o anormal. O que parecia inconcebível num dado momento pode tornar-se o novo normal alguns meses mais tarde, e mal nos apercebemos de como as fronteiras recuaram. Habituamo-nos a uma nova realidade e depois não conseguimos ver verdadeiramente o que está a acontecer à nossa volta.
Após as eleições de novembro de 2016,
o comediante John Oliver disse ao seu público televisivo: "Vai ser demasiado fácil as coisas começarem a parecer normais – especialmente se se for alguém que não é diretamente afetado pelas ações [da administração Trump]. Por isso, lembrem-se: isto não é normal. Escreva-o num post-it e cole-o no seu frigorífico." O contexto era um programa de comédia política, mas isto não era uma piada, e o conselho de John Oliver foi absolutamente correto.
Há aqui dois desafios: abanar a sociedade, para que reconheça as implicações aterradoras da livre expressão da violência e da crueldade, e encontrar métodos para fundamentar o nosso discurso na verdade empírica"
É essencial não normalizar o anormal. É também essencial insistir na verdade – procurando-a, dizendo-a em voz alta. O terror atomiza-nos, e os regimes tirânicos alimentam-se dessa atomização. O único antídoto para isso é a solidariedade. Conhecemos a
famosa citação de Martin Niemöller, o simpatizante da direita alemã que se tornou prisioneiro político dos nazis: "Primeiro vieram atrás dos socialistas, e eu não me pronunciei – porque não era socialista. Depois vieram atrás dos sindicalistas, e eu não falei – porque não era sindicalista. Depois vieram buscar os judeus, e eu não falei – porque não era judeu. Depois vieram atrás de mim – e já não havia ninguém para falar por mim".
Líderes como Donald Trump são regularmente aplaudidos pela sua “honestidade”, mas essa honestidade não corresponde à ideia de falar verdade no sentido do que se pode empiricamente provar como verdadeiro – corresponde, antes, a falar sem qualquer filtro, mesmo quando o que se está a dizer é o oposto do que é verdadeiro. Isto coloca um desafio aos cidadãos em geral, e aos jornalistas em particular, tornando ainda mais difícil navegar a realidade e reportá-la nos dias que correm. Desde que Trump anunciou a sua primeira candidatura à presidência, há uma década, os jornalistas têm tentado combater a desinformação com factos, mas isso não parece ser suficiente, nem nos EUA, nem na Europa. Qual é o caminho?
O que os apoiantes de Trump entendem como “honestidade” é o tipo de libertação da repressão que Freud descreveu em “A Civilização e os seus Descontentamentos: a livre expressão de Eros e Thanatos”. Hoje, se virmos uma mulher a andar na rua e desejarmos violá-la, é perfeitamente admissível expressá-lo em voz alta. Freud dir-nos-ia que a civilização se baseia na repressão. A libertação dessa repressão é a verdadeira libertação – pela qual pagamos o pequeno preço da destruição da civilização. E estamos a pagar esse preço.
As possibilidades tecnológicas de disseminação e consumo de informação – e desinformação – não têm precedentes. É um alvo em movimento: a tecnologia acelera mais rapidamente do que conseguimos compreender o problema e formular soluções. Em 2016, os jornalistas americanos ficaram sem saber o que fazer. Estavam habituados a verificar factos individuais – não estavam habituados a um completo afastamento da realidade empírica. E ninguém conseguia verificar os factos tão rapidamente quanto Trump conseguia mentir.
Portanto, há aqui dois desafios. Um é abanar a sociedade, para que reconheça as implicações aterradoras da livre expressão da violência e da crueldade. O outro é encontrar métodos para fundamentar o nosso discurso na verdade empírica.
Receio que a mudança da minha família para Toronto tenha sido um pouco dramatizada de forma absurda. Na verdade, não é assim tão dramática. Foi uma decisão familiar muito gradual e complexa, que começou muito antes das eleições. Por um lado, Yale é uma instituição excecional; adorei ensinar em Yale, tenho lá amigos e colegas de quem sentirei muitas saudades. Por outro lado, nunca pensei ficar tanto tempo na mesma cidade ou na mesma instituição; parecia que estava na altura de mudar a meio da carreira.
Há muito que queria criar os meus filhos num lugar onde não houvesse tanta violência armada – mesmo em tempos muito melhores politicamente, a quantidade de violência armada nos Estados Unidos é horrível. New Haven [a cidade do Connecticut que alberga a Universidade de Yale] fica a menos de uma hora de Sandy Hook, onde uma turma inteira de alunos do primeiro ano foi
assassinada por um atirador numa escola primária há pouco mais de 12 anos. Na altura, um dos meus alunos de licenciatura trabalhava como paramédico a tempo parcial e foi um dos primeiros a responder. Chegou ao local e não havia nada a fazer – estavam todos mortos.
A posse de armas per capita é mais elevada nos Estados Unidos do que em qualquer outra parte do mundo. Sou eslava e sabe o que Anton Chekhov disse sobre as armas? "Quando a arma está em cena, tem de disparar até ao fim do último ato." Receio que isso seja verdade tanto na vida quanto no teatro. Em qualquer sábado à noite em New Haven, as urgências estão cheias de vítimas de ferimentos provocados por armas de fogo.
Foi por isso que decidiu ir dar aulas na Universidade de Toronto?
A Munk School for Global Affairs começou a recrutar-me a mim e ao meu marido, Tim Snyder, há cerca de três anos. E há muitas razões pelas quais não só Toronto em geral, mas também a Munk School da Universidade de Toronto em particular, eram especialmente atrativas. Estudei na Universidade de Toronto nos anos 90 e adorei tanto a cidade como a universidade. A Munk foi concebida para promover e apoiar a interdisciplinaridade, o envolvimento, tanto académico como público. Há lá um grupo fantástico de académicos, liderado pela extraordinária cientista política Janice Stein, muito inspiradora para mim.
O Tim e eu viemos para Toronto em agosto de 2024 com os nossos filhos, num ano sabático de Yale. Por isso, já estávamos a viver aqui durante as eleições de novembro. E é muito provável que tivéssemos ficado em Toronto e aceitado as ofertas da Munk mesmo que Kamala Harris tivesse vencido. O meu marido não é uma pessoa ansiosa por natureza; se estivesse sozinho, teria regressado a New Haven, não apesar, mas precisamente por causa da vitória de Trump, para lutar pela democracia dos Estados Unidos.
Mas aceitou mudar-se pela família?
Sim, concordou em ficar em Toronto por mim e pelos nossos filhos. Estou muito disposta a assumir a minha própria ansiedade, mas encolho-me quando vejo a imprensa infligir-lhe a minha ansiedade e cobardia. “Fugir” é o tipo de palavra que quer
Jason Stanley quer eu, enquanto judeus neuróticos, usaríamos – mas o Tim não foge.
A minha posição é influenciada pelo facto de, apesar de ser americana, não ser uma americanista – ou seja, o meu trabalho intelectual sempre se centrou na Europa Central e de Leste. Há muito que estou mais empenhada na Ucrânia do que nos Estados Unidos, e muito do que faço é desempenhar o papel de mediadora cultural, ajudando os americanos a compreender a Europa de Leste.
A minha vida intelectual nunca esteve centrada no meu próprio país, o que talvez contribua para o meu sentimento geral de que é possível trabalhar em prol do bem a partir de onde quer que seja – ainda que de formas diferentes. Além disso, tendo saído dos Estados Unidos, sinto-me ainda mais obrigada a falar sobre o que se está a passar lá, em nome dos meus amigos e colegas que se encontram em posições mais vulneráveis.