terça-feira, 8 de abril de 2025

Financiamento da conservação: É preciso “abrir os cordões à bolsa” para salvar a vida na Terra


Fazer as pazes com a natureza é a tarefa que determinará o século XXI”. Estas palavras foram proferidas por António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, na abertura da cimeira global da biodiversidade (COP16), que decorreu no final de outubro, na Colômbia.

Um dos principais assuntos na agenda do encontro era o financiamento para a conservação, ou seja, impulsionar as contribuições financeiras dos Estados signatários da Convenção da Diversidade Biológica para ser possível cumprir as metas definidas pelo Acordo de Kunming-Montreal, que saiu da cimeira de 2022 e que tem como objetivo travar e reverter a perda de biodiversidade até 2030.

Em suma, pretende-se cessar a guerra humana contra a Natureza, um empreendimento urgente e de proporções dantescas, dada a história das relações da nossa espécie com o mundo natural. Um dos principais pilares do acordo é, claro, o financiamento. Sem dinheiro, pouco ou nada se conseguirá fazer. E as estimativas apontam que sejam precisos, pelo menos, 200 mil milhões de dólares por ano para os objetivos serem cumpridos.

Mas entre as palavras e a ação há todo um mundo de possibilidades. Na mais recente COP, os países juntaram-se em Cali para concretizar progressos, mas assistiu-se, ao invés, à falta de acordo entre as delegações dos vários Estados sobre como prosseguir no que toca ao financiamento da conservação. No dia 2 de novembro de 2024, já depois de a data oficial de encerramento da cimeira ter passado e de as negociações entre os países se terem arrastado durante quase meio-dia sem avanços significativos, a COP foi suspensa, sem que se tivesse chegado a qualquer acordo sobre como os Estados vão conseguir mobilizar o financiamento para tirar o Acordo de Kunming-Montreal do papel.

A Colômbia, país anfitrião da cimeira, decidiu suspender os trabalhos na manhã do dia 2 por não haver na sala delegações suficientes que permitissem adotar um acordo sobre o financiamento. A continuação das discussões foi adiada, ainda sem data e local definidos.

O fim abrupto da cimeira foi visto por alguns observadores como sinal do fracasso do encontro, apesar de alguns avanços relevantes noutras áreas, como, por exemplo, a criação do Fundo Cali para a partilha “justa e equitativa” de recursos económicos provenientes do uso de informação genética digital sobre a biodiversidade, um novo impulso para a proteção dos ecossistemas marinhos e o reconhecimento do papel central dos povos indígenas e comunidades locais na conservação da Natureza. Contudo, o principal, a questão do financiamento, ficou por decidir

A importância do setor privado

Em traços largos, o financiamento para a conservação é a mobilização e gestão de capital, não apenas público, mas de uma ampla variedade de fontes, para proteger e, em alguns casos, recuperar a biodiversidade.

Num artigo publicado em março de 2023 na revista Journal of Environmental Management, investigadores de Itália recordavam que os recursos alocados à biodiversidade nunca foram avultados e que “a maioria das áreas mais biodiversas do mundo estão em lugares ameaçados pela pobreza, corrupção, grande extração de recursos e desenvolvimento generalizado”, tudo fatores que põem em risco a biodiversidade.

Conseguir maior financiamento passa, por exemplo, por canalizar os apoios e subsídios considerados prejudiciais à Natureza (tais como para os combustíveis fósseis e atividades extrativas intensivas) para ações e estratégias que visem a sua proteção e conservação. Por isso, o dinheiro não pode apenas vir dos Estados, mas deve também ser mobilizado no setor privado, algo já reconhecido no Acordo de Kunming-Montreal, no qual os Estados signatários destacavam a importância de “encorajar o setor privado a investir na biodiversidade”.

Helena Freitas, Professora Catedrática da Universidade de Coimbra e um dos grandes nomes da Ecologia portuguesa, conta-nos, em entrevista, que nenhum país, Portugal incluído, será capaz de “enfrentar os desafios da conservação sem o envolvimento ativo do setor privado”.

Para a ecóloga, “a magnitude dessas questões ultrapassa a capacidade de ação exclusiva dos Estados” e “as parcerias público-privadas, consagradas na Agenda 2030 e no tratado da Kunming-Montreal, devem ser mais eficazes para acelerar a implementação de soluções que sejam tanto adequadas quanto justas”. Assim, aliar a capacidade de financiamento dos setores público e privado “permite mobilizar recursos, conhecimento e inovação de forma mais ágil e integrada, garantindo um impacto mais robusto na conservação e sustentabilidade”, sentencia.

A conservação da Natureza em Portugal

Tal como acontece um pouco por todo o mundo, o financiamento da conservação em Portugal tem também as suas fragilidades. Helena Freitas destaca que “o período mais positivo para a conservação da natureza” em Portugal “foi no essencial concluído no século passado”, resultando na criação de áreas protegidas e na concretização da Rede Natura 2000. Contudo, desde então, “o desinvestimento na conservação em Portugal tem sido notório”.

Para a docente universitária, nos últimos 20 anos tem-se tornado “evidente” uma falta de capacidade no país para “gerir as exigências emergentes”, a par de uma “escassez de recursos humanos nos territórios e a perda de capacidade técnica para planear e responder a solicitações, que se tornaram cada vez mais complexas e diversificadas”.

A ecóloga aponta que esses fatores têm “limitado a eficácia das políticas de conservação e a gestão sustentável dos ecossistemas” no país, recordando que, na última década, as prioridades têm recaído sobre a “prevenção e, sobretudo, combate aos incêndios florestais, menosprezando claramente a conservação da natureza”.

No passado mês de agosto, entrou em vigor a Lei do Restauro da Natureza, um instrumento legislativo no âmbito da União Europeia, que vai além da conservação e destaca a reversão dos danos causados. Essa lei define que os Estados-membros têm até 2030 para proteger legalmente, no mínimo, 20% de habitats terrestres e marinhos, e que até 2050 medidas de restauro devem estar a ser aplicadas em todos os ecossistemas que precisem de ser recuperados.

Claro que nada disto será possível sem o financiamento adequado. O atual Governo de coligação PSD/CDS-PP, liderado por Luís Montenegro, assumiu, no seu programa eleitoral, que “a perda de biodiversidade é um sério problema, pelo que devem ser criadas condições para um efetivo restauro ecológico de áreas degradadas”. Em junho, o Executivo votou a favor da Lei do Restauro e quatro meses depois anunciou a criação de um grupo de trabalho para criar o Plano Nacional de Restauro da Natureza, para concretizar as metas europeias e do Acordo de Kunming-Montreal.

Helena Freitas considera que “a Ministra do Ambiente [Maria da Graça Carvalho] assumiu com coragem a Lei de Restauro da Natureza”, esperando–se “uma rápida elaboração de um plano nacional que apoiará a respetiva implementação”. No entanto, não deixou de expressar algumas dúvidas sobre a efetiva concretização dos compromissos, uma vez que “a prática de baixo investimento que se instalou deixa-me pouco confiante na mudança de trajetória”, confessa a ecóloga, reconhecendo que teremos de esperar para ver.

Em Portugal, o financiamento da conservação da biodiversidade tem  padecido de “inconsistência e imprevisibilidade a longo-prazo”, destaca, acrescentando que projetos de conservação têm tido dificuldade em gerar resultados e impactos significativos, sustentáveis e duradouros porque acabam por ficar dependentes de “financiamento a curto-prazo”.

Para Helena Freitas, “a fragmentação das fontes de financiamento, sem uma coordenação eficaz entre fundos nacionais, europeus e internacionais, também leva à duplicação de esforços ou ao esquecimento de áreas prioritárias”.

A par disso, outro problema é identificado: a falta de valorização dos serviços de ecossistema, ou seja, dos benefícios que o mundo natural nos possibilita a custo zero, como, por exemplo, a polinização natural, entre muitos outros. A docente universitária acredita que por não serem quantificados, acaba por não ser possível mobilizar recursos para a proteção desses serviços, que são “essenciais para o bem-estar humano e para a economia”.

Além disso, apesar da importância que lhe é reconhecida na conservação, o envolvimento do setor privado nessa arena tem sido “limitado”, o que para Helena Freitas representa “uma oportunidade desperdiçada, dado o crescente interesse na responsabilidade social corporativa”.

Então, o que fazer? A ecóloga avança-nos algumas propostas: “é fundamental garantir um financiamento de longo-prazo, com mecanismos que assegurem a continuidade dos projetos”, “é necessário integrar a valorização dos serviços dos ecossistemas nas políticas públicas e incentivar o setor privado a colaborar mais ativamente” e “melhorar a coordenação intersectorial, implementando uma abordagem integrada que alinhe os interesses de vários setores (agricultura, turismo, urbanismo, etc.) com os objetivos de conservação”.

No campo das soluções, o grupo de reflexão português NaturaConnect.PT, coordenado pelo investigador Miguel Bastos Araújo, apresentou, em setembro último, uma série de propostas para ajudar Portugal a cumprir os compromissos internacionais assumidos no que toca à conservação da biodiversidade.

Entre as medidas propostas estão a revisão dos subsídios públicos que prejudicam a biodiversidade, o restauro das funções e processos naturais dos ecossistemas, a alavancagem de fundos europeus para a conservação e restauro e o reforço de fundos públicos para aquisição e gestão de propriedades em terrenos classificados. O documento sugere ainda a aplicação dos princípios de poluidor-pagador e utilizador-pagador, a aplicação dos fundos obtidos por essa via para financiar programas de protetores-recebedores, a criação de um mercado de créditos de biodiversidade, um maior investimento público na marca NATURAL.PT que promove a visitação de áreas protegidas e valoriza os produtos artesanais nelas produzidos, e equiparar os donativos para fins ambientais aos que se destinam a causas sociais.

O grupo NaturaConnect.PT considera que só com estes esforços e transformações Portugal conseguirá atingir as metas de conservação e restauro da biodiversidade com as quais se comprometeu, com Miguel Bastos Araújo a destacar que “tendo em conta a matriz territorial portuguesa, com cerca de 97% de propriedade privada, qualquer intervenção no sentido de promover a conservação da biodiversidade requer a identificação de soluções articuladas e suportadas por financiamentos públicos e privados, que impliquem compromissos de longo prazo”.

Os choques entre a Ciência e a Política

É frequente ouvirmos numa variedade de discursos públicos sobre Ambiente e Natureza, desde logo proferidos por políticos, que a Ciência é fundamental para informar os esforços de conservação da biodiversidade. No entanto, nem sempre os interesses políticos e os factos científicos se alinham uns com os outros.

Ainda que “os cientistas sejam frequentemente consultados, nem sempre as suas recomendações são totalmente integradas nas decisões e políticas finais”, reconhece Helena Freitas, de tal forma que acaba por existir “um desfasamento entre o que é sugerido pela ciência e o que é efetivamente implementado”, sobretudo, continua, “quando existem pressões económicas e políticas em jogo”.

O diálogo, ou falta dele por vezes, entre Política e Ciência está repleto de fricções e colisões, especialmente quando as medidas e ações propostas pelos cientistas são vistas como “inconvenientes ou contrárias aos interesses de curto-prazo de determinados grupos de interesse ou dos próprios decisores políticos, que muitas vezes enfrentam restrições orçamentais e preferem soluções menos dispendiosas”, diz a docente da Universidade de Coimbra.

Por isso, “o financiamento e a prioridade das medidas científicas propostas podem ser diminuídos ou adiados, comprometendo a eficácia das políticas de conservação em Portugal”, pelo que seria relevante criar “mecanismos ou plataformas formais que garantam um diálogo fluido e contínuo entre a comunidade científica e os decisores políticos”, propõe.

Um planeta com cada vez menos diversidade de vida

No passado dia 10 de outubro, o 15.º Relatório Planeta Vivo, elaborado pela organização WWF, veio, uma vez mais, confrontar-nos com a dimensão da perda de biodiversidade. No último meio século, o tamanho médio das populações de animais selvagens a nível mundial diminuiu 73%, considerado um “declínio catastrófico” da vida selvagem na Terra.

O documento alerta que “para garantir um planeta habitável e próspero” é preciso “uma mudança sísmica” para que o financiamento passe a fluir “na direção certa, deixando de prejudicar o planeta e passando a curá-lo”.

Apesar dos esforços e de irmos na 16.ª cimeira global da biodiversidade, a perda de espécies, habitats e ecossistemas continua a progredir com velocidade e intensidade estonteantes. Ainda que reconheça a importância das COP “na criação de acordos multilaterais que visam proteger o planeta”, Helena Freitas não deixa de apontar que “as negociações enfrentam muitas vezes entraves, pois estão condicionadas por interesses económicos e políticos de curto-prazo, especialmente de países mais desenvolvidos”.

Recentemente, um grupo de altas personalidades internacionais, entre elas o ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, pediu uma reforma organizacional das COP das alterações climáticas, cuja estrutura atual consideram não ser capaz de “produzir a mudança a uma velocidade e escala exponenciais”, o que é “essencial” para assegurar o futuro da humanidade num planeta em crise climática. Talvez, da mesma forma, seja preciso refletir sobre a eficácia das cimeiras globais da biodiversidade.

O relatório da WWF avança que as maiores perdas de biodiversidade acontecem na América Latina, nas Caraíbas e em África, regiões onde se concentra parte significativa dessa diversidade biológica global e onde estão países fortemente afetados por grandes desigualdades socioeconómicas e dos mais vulneráveis às crises ambientais. Por essa razão, sociedade civil e cientistas têm apelado a um maior envolvimento e participação do chamado “Sul Global” nos processos de tomada de decisão política relativamente à conservação da biodiversidade.

Ecoando essas reivindicações, Helena Freitas acredita que “uma maior participação do ‘Sul Global’ é absolutamente imperiosa, não só porque estas regiões são as mais afetadas pela perda de biodiversidade e alterações climáticas, mas também porque possuem um vasto conhecimento local e tradicional que pode ser valioso nas negociações”.

Como tal, “uma abordagem mais inclusiva e equitativa, que considere as necessidades e vozes dessas nações, pode ajudar a garantir que os acordos globais sejam mais justos e eficazes, promovendo um caminho de desenvolvimento sustentável e de verdadeira proteção do planeta”, defende a especialista.

Será a Natureza alguma vez uma prioridade política?

Embora acredite que “a sociedade portuguesa está cada vez mais disposta a apoiar a conservação da natureza” e que “há uma atitude, de maneira geral, mais favorável por parte da sociedade e das empresas” em relação a esse tema, e que o reconhecimento dos impactos da inação sobre as vidas e negócios impulsionará “um maior empenho na conservação da biodiversidade”, Helena Freitas sublinha que a conservação da biodiversidade “está longe de constituir uma prioridade política efetiva e transversal”. Isto porque continua a ter de enfrentar “limitações orçamentais, competição com outras prioridades como a economia, a saúde e o emprego, e a pressão de setores como a agricultura, a construção e o turismo, que muitas vezes colidem com os objetivos de conservação”.

Para que se torne uma verdadeira prioridade política, é preciso que vários fatores se conjuguem e reforcem mutuamente, como, por exemplo, “a sensibilização da população e dos decisores políticos para a urgência da crise ecológica e para a relevância da biodiversidade na qualidade de vida e na economia” e “a inclusão de compromissos de conservação nos planos de recuperação económica”, bem como “a implementação de políticas de desenvolvimento sustentável que aliem a conservação ao crescimento económico”.

Mas mesmo isso poderá não ser suficiente. Para mudar o atual estado de coisas, a sociedade civil e a comunidade científica devem continuar a fazer pressão para que a mudança aconteça e para que os decisores políticos assumam compromisso de longo-prazo, porque a Natureza não se rege por ciclos de quatro ou cinco anos.

Uma vez mais, também o financiamento contínuo é crucial para tornar a conservação uma prioridade nacional, além da integração da biodiversidade “nas políticas setoriais de forma mais robusta, de modo a garantir que a preservação dos ecossistemas naturais seja uma parte intrínseca e inexorável do desenvolvimento do país”, salienta Helena Freitas.

Por sua vez, Miguel Bastos Araújo, do grupo NaturaConnect.PT, avisa-nos que “a biodiversidade não é apenas um bem natural a ser preservado, mas também uma componente fundamental do funcionamento dos ecossistemas, ajudando a criar barreiras naturais que minimizam o impacto de calamidades”. Por outras palavras, a biodiversidade é um aliado fundamental num planeta à beira do colapso ecológico e climático do qual não devemos, nem podemos, prescindir ou desvalorizar.

*Artigo originalmente publicado na revista de dezembro de 2024

segunda-feira, 7 de abril de 2025

200 anos de estreia da sinfonia Heroica, de Beethoven


Marco histórico na evolução do género sinfónico, a "Heroica" de Beethoven foi eleita, por centena e meia de maestros, como a melhor sinfonia de todos os tempos, num inquérito realizado pela revista BBC Music Magazine em 2016.
A revolucionária partitura, composta entre 1803 e 1804, causou um enorme choque aquando da estreia, em Viena, e definiu a transição do período clássico para o Romantismo, dela sobressaindo aspetos invulgares para a época, como a longa duração, a intensidade dramática, a profundidade emocional, a variedade expressiva e a inovação estrutural.
É celebre a história de que Beethoven terá riscado, do frontispício da obra, o nome de Napoleão Bonaparte, ao saber que este se tinha autoproclamado Imperador.


Violência, alienação e o império dos ecrãs


No início da semana passada, fomos confrontados com a hedionda notícia da ampla e desenfreada circulação, pelas redes sociais, de imagens de uma jovem de 16 anos a ser, neste país de alegados brandos costumes, na zona de Loures, constrangida e sujeita a abusos sexuais de várias ordens – tendo mesmo a Polícia Judiciária falado de violação agravada – por parte de, pelo menos, três outros jovens, pouco mais velhos do que ela e descritos e apresentados como “influencers”, com muitos milhares de seguidores.

Tendo a jovem apresentado queixa às autoridades alguns dias após os factos, veio a saber-se que, afinal, as referidas imagens já tinham sido visualizadas por milhares de pessoas, sem que uma única delas tivesse tomado a atitude de as denunciar como o miserável e absolutamente inaceitável abuso que são, fosse publicamente, fosse, e ainda menos, às ditas autoridades.

Naturalmente que os factos em causa deverão agora ser devida e cabalmente investigados no âmbito do respectivo processo-crime. Mas, independentemente do que neste se vier a apurar, nomeadamente em termos da referida violação, a verdade é que a sujeição de alguém em inferioridade de número, de capacidade física e de suporte emocional, em estado de nudez, relativamente aos que, em grupo, a colocaram nessa situação, é um acto de todo indigno, repugnante e cobarde. E a sua filmagem, assim como a subsequente e generalizada divulgação das respectivas imagens, é outra absoluta repugnância, que não pode deixar de merecer a nossa mais firme reprovação. Mas a verdade também é que todos aqueles que viram as referidas imagens e, assim, souberam o que se passara e que, ou viraram a cara para o lado, ou, pior ainda, se satisfizeram com aquele degradante espectáculo, não podem, também, deixar de merecer essa mesma veemente reprovação.

Acontece que, já semanas antes, outro “influencer”, perante os seus milhares de seguidores e com a prestimosa ajuda das gargalhadas amigas de um pseudo-entrevistador, se gabara alarvemente da “proeza” – que se veio a apurar ser verídica – de, por vir distraído com o telemóvel, ter atropelado violentamente, numa passadeira, uma mulher, e depois ter fugido apressadamente do local sem prestar assistência à vítima. Entretanto, na manhã do passado domingo, um condutor que circulava a alta velocidade na Estrada Marginal, junto à Praia da Torre, atropelou violentamente três ciclistas (dois dos quais ficaram em estado bastante grave e tiveram de ser internados no hospital) e fugiu do local, sem querer saber do estado das vítimas que causara e sem lhes prestar qualquer auxílio. Na tarde do mesmo dia, um condutor de motociclo atropelou violentamente, na Amadora, junto ao Bairro Casal da Mira, uma criança de 10 anos (que também teve de ser conduzida de urgência ao hospital) e igualmente fugiu do local, sem prestar qualquer assistência à jovem vítima.

Todos estes comportamentos, a comprovarem-se pelos meios e no local adequados – ou seja, no processo-crime respectivo e no julgamento e condenação em Tribunal – constituem crimes de particular gravidade, que denotam não apenas um perturbantemente elevado grau de intencionalidade, como também, e sobretudo, uma estarrecedora frieza ou ausência de sentimentos e de consideração pelo outro. E, sendo devidamente provados, devem ser punidos com a severidade que a natureza e as circunstâncias destes crimes justificam. Sobretudo quando os seus autores, nem na altura dos factos, nem posteriormente, manifestem qualquer espécie de espontâneo arrependimento ou remorso pela barbaridade que praticaram. E sobretudo quando, segundo as estatísticas da própria PSP, nos últimos dois anos, 22% dos condutores envolvidos em acidentes mortais ou com feridos graves fugiram do local! 

Mas tão importante como essa reprovação jurídico-penal tem de ser também o juízo ético, firmemente crítico, e a afirmação da inaceitabilidade social deste tipo de comportamentos, pois que quem assim actua está a levar à sua expressão máxima os sentimentos mais negativos e mais baixos, bem como uma completa ausência de valores e de princípios. Tudo isto numa postura que, como bem sabemos, já vimos, e por diversas vezes, ser adoptada na própria atividade política, tal como sucedeu quando conhecidos nazis comentaram publicamente que a prostituição forçada e colectiva, “tipo arrastão”, era o destino adequado para as mulheres de esquerda, ou quando outros, estejam eles no Parlamento ou numa claque de futebol, se permitem apelidar de “vacas” as deputadas de outras forças políticas ou dirigir ruídos como mugidos ou gritos de macacos aos seus adversários… E é precisamente por isso que a nossa atenção e reflexão têm de ir bem mais longe do que a (nestes casos, mais que merecida) condenação penal, a qual estará, porém, sempre no “fim da linha”. Sob pena de estarmos, afinal, e de forma cada vez menos eficaz, a querer tratar dos problemas da podridão das águas de um rio na sua foz e não na sua nascente.

Assim, e antes de mais, há todo um debate político e ideológico a travar acerca do ideário próprio do capitalismo, em particular na sua fase actual (a do capital financeiro e imperialista), que assenta desde logo no desprezo pelo colectivo e pelo comunitário e na contínua pregação do individualismo, ou seja, da ilusão de que será por soluções individuais (como as dos discursos e técnicas ditas motivacionais…) que a grande maioria dos membros das sociedades actuais conseguirá sair da vida miserável que leva e resolver os seus problemas essenciais: de emprego, de subsistência, de habitação, de saúde e de educação dos filhos, etc. Temos assim, e coerentemente, o uso “científico” do medo e a permanente inculcação da ideia de que “o outro” (o diferente, o deficiente, o velho, o cigano, o negro, o estrangeiro, o muçulmano, o colega de carteira ou de empresa) é um adversário, e mais do que isso, um inimigo, que nos prejudica e ameaça, e que por isso importa eliminar, seja de que forma for.

O dinheiro, o poder ou o sucesso são então apresentados como os objectivos a alcançar, seja a que custo for. E, obviamente, a lógica maquiavélica – desenvolvida e teorizada por todas as organizações e sociedades ditatoriais – de que os fins justificam os meios, por mais ilegítimos, indignos ou brutais que eles sejam, e de que vale tudo para atingir tais fins e alcançar tais objectivos, transformou-se nos valores e princípios permanentemente divulgados, praticados e instruídos por toda a sociedade nas fábricas e empresas, nas escolas, na administração e também nas próprias famílias.

As maravilhosas inovações tecnológicas, em particular as da era digital, em vez de servirem para, aumentando exponencialmente a produtividade do trabalho humano, aliviar a nossa relação com este, diminuir as pesadíssimas cargas e ritmos de actividade, dar emprego a mais pessoas e propiciar a realização pessoal e social de quem trabalha, de quem estuda e de quem já trabalhou uma vida inteira, foram, afinal, expropriadas por uma pequeníssima minoria (os 1% da população mundial que arrecada mais de 50% de toda a riqueza) e transformadas num instrumento privilegiado  de aumento dos tempos e ritmos de trabalho, de precarização e proletarização dos trabalhadores mais qualificados, e de repartição do seu saber por tarefas decompostas e simplificadas, a cargo de trabalhadores mais precários e até de máquinas, com a imposição de um crescente “taylorismo digital” e de uma absoluta desumanização das relações sociais de trabalho.

E é assim que a reivindicação histórica das 8 horas máximas de trabalho por dia, pela qual, no século XIX, tanto sangue, suor e lágrimas derramaram os trabalhadores de então, volta a ter, num número crescente de sectores e de países, um carácter absolutamente revolucionário. Pois, entretanto, em nome da “flexibilidade”, do “combate à crise” (seja ela qual for) e da necessidade de se salvarem as empresas, ou seja, os lucros dos seus donos, se generalizou a lógica e a prática de jornadas de 10, 12, 14 e até mais horas de trabalho, com ritmos cada vez mais infernais. Ou no mesmo emprego, ou até em dois, que quem trabalha é obrigado a arranjar para, devido à exiguidade dos salários, conseguir sobreviver.

O resultado desta forma de organização social é a propositada criação de uma multidão de autênticos “zombies”, absolutamente esgotados por exigentes, extenuantes e abusivas jornadas de trabalho e enormes tempos de deslocação entre o trabalho e as respectivas casas, cada vez mais longínquas e precárias devido aos preços da habitação, sem capacidade reivindicativa ou de organização, sem tempo para se cultivarem, se dedicarem ao desporto, ao teatro, à música ou à actividade cívica. E, claro, sem tempo nem disposição para dar a atenção que os filhos querem e de que precisam como pão para a boca.

A imposição duma sociedade injusta como esta resulta na anestesia e o “acarneiramento” das populações. E isso implica que o espírito crítico, a capacidade de raciocínio, o gosto pelo conhecimento, o desenvolvimento das chamadas funções cognitivas superiores, as leituras, a reflexão, tudo isso seja desvalorizado e banido, sendo, afinal, substituído pelo “deus Mulloch” do lucro e da busca incessante pelo seu máximo.

E é por isso que, para completar este mesmo “edifício social”, surge o desprezo pelo livro, pela escrita, pela aprendizagem da língua, sendo tudo isso substituído pelo reinado dos ecrãs, onde o usuário do telemóvel ou do iPad tem o pouco esforço e a facilidade de consumir, acrítica e passivamente, (apenas) aquilo que os algoritmos para tal programados lhes servem. E onde praticamente tudo é reduzido à lógica binária do “0” e do “1”, a uma linguagem e a um vocabulário de uma pobreza aterradora, ultra-simplificados, que entorpecem o raciocínio, condicionam e impossibilitam a formação do espírito e, logo, o próprio desenvolvimento humano.

Nada disto sucede por acaso ou pela simples inépcia de alguns. É que, na organização social do capitalismo, não há, para quem trabalha, tempo nem lugar para a cultura, para as artes, para o Centro de Convívio ou para a Sociedade Recreativa e Cultural (cada vez mais condenados à asfixia e ao encerramento); como não há tempo nem espaço para o são convívio humano, para o exercício da cidadania e da solidariedade social, para a prática das actividades em que nos realizamos, sejam elas a cultura, a investigação, o desporto ou a música, por exemplo, ou até o simples lazer.

Imperam ainda os grandes órgãos de comunicação de massa, encarregues de nos rezar, em todos os momentos possíveis, a “missa hipnótica” dos já referidos valores supremos da sociedade capitalista e de nos afogar com doses maciças de pretensa informação (como os telejornais de horas a fio, pejados de comentadores do pensamento dominante) e de real alienação (como os “Big Brother” e programas similares).

O extremo isolamento e solidão provocados pela pressão e pela alienação das condições de trabalho ultra-precárias e ultra-desumanas, e pelas longas e extenuantes jornadas de trabalho, conduzem, assim, a formas virtuais e inverídicas de comunicação e de pretensa vida em comunidade, que são produzidas e alimentadas pelo uso, tão permanente quanto acrítico, e até tornado cada vez mais compulsivo, dos meios de acesso às redes sociais e, logo, aos modelos e valores por estas continuamente divulgados e propagandeados, com vista a criar uma multidão de dóceis e acríticos servos. 

A permissividade com a violência, o fascínio pelo momentâneo e a crença de que ofensas virtuais, a coberto do anonimato, não têm consequências, e de que o que importa não é ter a atitude correcta, mas sim fazer o que se sabe ser errado e depois conseguir ter a “habilidade” ou o “sucesso” de não ser apanhado, a imposição da lógica e da lei da alcateia e do gangue, podem então desenvolver-se a uma escala que, muitas vezes, só é revelada quando, enfim, termina em tragédia…

É, pois, este o terreno fértil para o frenético crescimento da boçalidade, do “vale tudo”, do poder ou do sucesso a todo o custo, com base exclusiva, ou quase – porque o resto é como se não existisse de todo… – nos “exemplos” e nos “influenciadores” multiplicados à exaustão nas redes sociais e cada vez mais instalados, tolerados, aceites e até incentivados nos nossos próprios meios profissionais, políticos e até pessoais.

A violência gratuita, o ódio primário, a baixeza moral e a negação dos valores essenciais como a solidariedade, o respeito pelas diferenças e a dignidade da pessoa humana – tudo isso é, afinal, o que a sociedade capitalista do século XXI, os interesses que sustenta e os valores que pratica nos têm para oferecer. Devemos criticar com firmeza e não nos surpreender quando essas formas duras e boçais se manifestam, pois é a elas que conduz, em linha recta, a desvalorização e escravização do ser humano, o embotamento do juízo crítico e a vulgarização e banalização do mal mais odioso.

E a essência do problema não está nas novas tecnologias, que são um enorme e magnífico progresso científico e técnico, que devemos conhecer, apreciar, dominar e, sobretudo, saber usar em prol de toda a Humanidade. O nó górdio da questão está, sim, nas relações sociais que entorpecem e desvirtuam esse mesmo progresso, e que possibilitam e eternizam a sua expropriação em benefício de apenas alguns. 

Como seres humanos inteiros e completos, devemos ousar ser, não escravos, mas sim donos dos nossos próprios destinos. E por isso, a grande tarefa que se nos impõe é, cada vez mais, a de demolir esse tipo de sociedade, profundamente decrépita e essencialmente violenta e injusta, e construir um mundo mais justo e mais fraterno!

António Garcia Pereira

domingo, 6 de abril de 2025

Camilo ou Eça?


É uma gafe para a história das gafes da imprensa portuguesa: em março, o JL, baluarte das letras, artes e ideias, fez um número dedicado aos 200 anos do Camilo e pôs na capa um retrato do Eça. Tudo é mais gritante, claro, por se tratar desta publicação em particular, mas o caso leva-me a pensar numas palavrinhas sobre o estado da arte na imprensa. Vimos de anos e anos de cortes, retalhos, falências, desinvestimentos e vigarices. de "emagrecimento" de equipas, entre jornalistas, gráficos, revisores. mesmo para quem não trabalha na área, percebe-se que está tudo no osso, e o osso sofre de osteoporose. Não sei quem edita o JL, quem fecha a edição, a capa; sei que a equipa é muito curta, à semelhança do que se passa nas outras publicações da "Trust in News", nome que o obscuro Luís Delgado trouxe à ilharga quando, digamos, comprou os títulos, ao serviço não sabemos de quem nem do quê. Há meses que vão saindo notícias sobre os salários em atraso, os subsídios não pagos aos trabalhadores deste grupo, que tem vivido no sufoco do horizonte sem emprego e com o dia a dia marcado por dificuldades financeiras. e no entanto, o trabalho continua - creio que não houve revistas por sair em banca. Já em relação aos assinantes, não se passa o mesmo. a Visão já ficou por entregar porque a "Trust in News" não paga a tempo aos correios. Diria que pode haver uma correlação entre esta débacle nas condições laborais, as vidas num caco e o mau serviço prestado, mas também pode não haver, que sais je? O que sei é que há gente a trabalhar ali que não é exatamente ignorante. a troca do Camilo pelo Eça é cómica, mas também trágica. Os tempos não estão fáceis para quase ninguém, conselheiros acácios e calistos elóis incluídos, para a imprensa estão ainda piores. cuidado com o futuro, gente.

A visão de Vieira Resurrected é a que surge retratada no livro de Rui Frias sobre a evolução recente dos jornais portugueses (um daqueles pequeninos do Pingo Doce, como lhe chamo).

A Terra está a morrer com Alfredo Cunhal Sendim

sábado, 5 de abril de 2025

Nem ilhas desabitadas fogem às tarifas de Trump. Um país “que ninguém conhece” é o mais afetado



“Nenhum lugar do mundo está isento” da vingança da nova administração dos EUA. Do arquipélago dos imortais às ilhas desabitadas da Austrália e Noruega: os pequenos territórios não escaparam ao “Dia da Libertação”.

Esta quarta-feira Donald Trump puniu os países que acusa de abusarem da bondade dos Estados Unidos e das suas políticas comerciais dos últimos anos, com novas tarifas “recíprocas” que afetam cerca de 185 locais por todo o mundo. E os “piores infratores” são os mais castigados, disse a Casa Branca.

Um dos grandes objetivos das tarifas, segundo Trump, é proteger os empregos americanos da concorrência estrangeira desleal, mas entre as regiões afetadas estão algumas onde há mais pinguins do que humanos.

É o exemplo das ilhas Heard e McDonald, territórios australianos no Oceano Índico mais conhecidos pelas suas populações de pinguins do que por qualquer atividade económica humana, uma vez que são ilhas totalmente desabitadas; ou Tokelau, perto da Nova Zelândia, onde vivem menos de 2.000 pessoas; ou Norfolk, no Pacífico Sul.

Falamos também das ilhas norueguesas de Svalbard, com apenas 3.000 pessoas, e de Jan Mayen, no Oceano Ártico, onde moram apenas 18 pessoas, todos trabalhadores temporários; ou o Território Britânico do Oceano Índico, que só tem uma base militar conjunta do Reino Unido… com os EUA.

Todos estes territórios serão atingidos pela tarifa mínima de 10%, confirma a Casa Branca ao Politico, porque estão sob a jurisdição da Austrália e Noruega, que estão sujeitos às novas tarifas.

“Não tenho a certeza de que a Ilha Norfolk seja um concorrente comercial da economia gigante dos Estados Unidos, mas isto só mostra que nenhum lugar do mundo está isento” das tarifas, desabafou o primeiro-ministro australiano Anthony Albanese.

Nesta novela, o país mais afetado pelas tarifas é um de que “nunca ninguém ouviu falar”, como descreveu o próprio Trump no seu primeiro discurso ao Congresso dos EUA, em que prometeu cortar a ajuda ao Lesoto. O pequeno país africano conhecido como o “Reino no Céu” foi atingido por uma tarifa de 50%, devido às suas próprias políticas tarifárias de 99%.

As tarifas entram em vigor este sábado, 5 de abril. A União Europeia rapidamente começou a prometer uma resposta às tarifas de 20% aplicadas pela administração Trump.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

"Tenta ser o arco-íris da nuvem de outra pessoa."


Grupo de Artes "Peripécia" - Benagouro, Vila Real

Palavras escritas por Maya Angelou, escritora, poetisa e ativista, nascida neste dia 4 de abril de 1928. 

Amar, por Agostinho Silva


“Quem ama verdadeiramente ama o que lhe aparece, tal como é, e, ao mesmo tempo, o que será aquele mesmo ser desenvolvendo-se, como Deus o quer, em plena liberdade. Amar alguém ou alguma coisa é primacialmente instalá-lo num clima de plena liberdade, com todos os riscos que a liberdade comporta: desejar é limitar na liberdade, a nós e aos outros. Mas quando verdadeiramente amor existe, então realizamos na terra o que há de mais belo e de mais raro: porque todo o amor que ama o eterno é o amor de Deus amando-se a si próprio.”
 Agostinho da Silva

terça-feira, 1 de abril de 2025

Globalmente, um terço de todas as espécies de elasmobrânquios estão ameaçadas de extinção

Globalmente, um terço de todas as espécies de elasmobrânquios estão ameaçadas de extinção e as populações de tubarões oceânicos diminuíram 71% ao longo do último meio século.
Muitas pessoas pensam que o finning (o corte de barbatanas e descarte do corto em alto mar) é o maior responsável por estes declínios...
Pois, embora seja verdade que o finning tem sido um factor de destruição enorme, muitas pessoas não se apercebem que a captura acidental de tubarões em pescarias comerciais que visam uma espécie completamente diferente é, na verdade, também uma das maiores ameaças aos tubarões e às raias em todo o mundo!
Então porque ocorre esta "captura acidental"?
O que podemos fazer para evitar que isso aconteça?
Lê o artigo da nossa cientista Sophie A. Maycock, correspondente inglesa do Sharks Educational Institute e autora do SharkSpeak