segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Documentário - Um Oceano de Plástico


O jornalista Craig Leeson associa-se à mergulhadora Tanya Streeter e a uma equipa internacional de cientistas e investigadores, com o objetivo de visitar vinte locais do planeta ao longo de quatro anos para explorar o estado extremamente frágil em que se encontram os nossos oceanos.

English VersionA Plastic Ocean

Saber mais:

domingo, 30 de agosto de 2020

Bosques urbanos, essenciais contra as mudanças climáticas

Uma Grande Muralha Verde para as cidades. FAO
 

O Fórum Económico Mundial (WEF) nunca deixa de nos surpreender. Em seu relatório sobre os riscos globais para a economia mundial este ano, ele enfatizou que a economia não representa nenhum risco para a economia. Os riscos para a economia são fundamentalmente ambientais.

Muitos de nós tínhamos isso bem claro há muito tempo, mas quem melhor para falar sobre riscos para a economia do que o próprio Fórum de Davos. Também nos deixa inquietos quando traz à mesa questões que ativistas e cientistas da mudança global vêm apontando há anos.

Em uma exposição de arqueologia informativa, o FEM recuperou algumas ideias importantes para esses tempos de emergências diversas e interconectadas. Se este órgão lhes der cobertura, poderemos ter mais oportunidades de sermos ouvidos. Sua influência sobre aqueles que tomam decisões políticas é inquestionável.

As florestas urbanas de Miyawaki

Recentemente, o Fórum publicou informações sobre a ideia de plantar pequenas florestas urbanas “para promover a diversidade e combater as mudanças climáticas”.

A proposta não é nada nova. A ideia de florestas urbanas é o que, de uma forma não necessariamente tão explícita, vem se desenvolvendo dentro do planejamento urbano contemporâneo. É um eixo central no quadro acadêmico emergente do novo paisagismo.

É especialmente marcante o valor nesta campanha da floresta urbana por um pesquisador japonês e sua redescoberta como se ele fosse um verdadeiro guru espiritual e filosófico além de sua contribuição técnico-científica.

Akira Miyawaki , Professor Emérito da Universidade de Yokohama e Diretor do Centro Japonês de Estudos Internacionais em Ecologia, é pesquisador em ecologia de vegetação. Ao longo da sua longa carreira, Miyawaki indicou repetidamente a necessidade de restaurar o que chamou de ambiente de vida.

O pesquisador refere-se à restauração baseada na vegetação real e intocada, atendendo às dinâmicas naturais e, principalmente, ao que acontece nos pequenos espaços intocados mantidos próximos a centros religiosos ou com significado espiritual em seu contexto japonês. Neles encontra as melhores referências do que poderia ser seu ambiente sem ser afetado pela ação transformadora do ser humano.

Este elemento de espiritualidade e o peso que a cultura japonesa dá à floresta, bem como a enorme diversidade e qualidade das florestas mistas naturais que ainda estão preservadas, são fatores que tornam a ideia de Miyawaki particularmente atraente.

Um conceito não tão novo
Na verdade, o que o cientista propõe é basicamente o conceito de vegetação natural potencial .

A ideia, não isenta de dificuldades conceituais e controvérsias, está profundamente enraizada entre os gestores ambientais em planejamento urbano, conservação, ordenamento do território e avaliação de impactos ambientais em grande parte do planeta.

O conceito é, na verdade, bastante simples: assume que a vegetação é o resultado de processos determinísticos que alteram sua estrutura e composição ao longo do tempo de forma previsível. A vegetação limita-se, segundo esta versão simplificada (embora útil) da realidade, a seguir o caminho traçado pela sucessão.

Nessa sucessão idealizada, grupos de espécies com características funcionais muito diferentes substituem gradualmente outros até que aquela comunidade que chamaríamos de potencial natural seja alcançada.

Se não houver perturbações, o sistema avança em direção a essa vegetação potencial, enquanto se houver perturbações antrópicas (madeira ou pastoreio) ou naturais (avalanches ou incêndios naturais), regressa à praça inicial.

A lista de exceções e limitações a essa ideia encheria livros inteiros, mas não há dúvida de que o conceito se enraizou muito bem em muitos grupos profissionais. E, aparentemente, também nos economistas do FEM.

Exemplos mediterrâneos
Num projeto pilotado por Luis Balaguer, um grupo de cientistas de restauração ecológica trabalhou na identificação de referências para restauração ecológica e vimos as dificuldades práticas de usar esse conceito de vegetação potencial.

Além das evidências acumuladas sobre a necessidade de restauração em um quadro muito mais complexo do que o de identificação de vegetação potencial, é marcante a ausência de referências e obras-chave nesse quadro de construção de pequenas florestas urbanas.

No contexto mediterrânico, em 2007 indicamos que é necessário muito mais conhecimento ecológico e científico para restaurar os ecossistemas maltratados (ver também a resposta de Méndez e colaboradores ).

Aliás, e precisamente em relação a esta ideia redescoberta e atribuída ao cientista japonês, Rey Benayas e colaboradores já propunham em 2008 a criação de pequenas ilhas de floresta mediterrânica em extensas áreas agrícolas. É uma ferramenta de gestão da diversidade com efeitos positivos em todos os tipos de serviços ecossistêmicos. Um caminho para combinar em ações de conservação, restauração e agricultura.

A ideia subjacente à campanha do Fórum de Davos é poderosa e bem-vinda. O que se destaca especialmente é que o Fórum coloca diante de nós algo simples de implementar e que coloca o bem-estar das pessoas que vivem nas grandes cidades (a maioria) como prioridade vinculada à diversidade biológica sem a necessidade de grandes investimentos e com soluções baseadas para a natureza.

Tentar reconstruir pequenas ilhas florestais ou habitats naturais – não necessariamente arbóreos – em nosso ambiente urbano como fonte de diversidade é simples e nada novo, mas no contexto do paisagismo transformador, é muito revolucionário. Essencial na verdade.

A Grande Muralha Verde
Em 2050, o percentual da população que viverá nas cidades será de quase 70%. Grande parte desse crescimento ocorrerá na África e na Ásia. Consciente disso e do papel insubstituível da segunda natureza – aquela que permanece nas cidades – para o bem-estar das pessoas e a estabilidade ambiental do planeta, a FAO juntamente com seus parceiros apresentou em setembro de 2019 o projeto Great Green Wall para as cidades .

O projeto propõe uma extensão natural da Grande Muralha Verde do Saara e do Sahel para impedir o avanço do deserto e combater as mudanças climáticas.

A iniciativa envolverá a criação de áreas verdes urbanas em territórios conquistados pelo asfalto e concreto nas principais cidades da África e da Ásia. Pretende-se apoiar pelo menos três cidades de cada um dos 30 países destes continentes localizados nesta imensa faixa de terra afetada pelas monções e altamente ameaçada climaticamente.

Até 2030, este projeto ambicioso terá ajudado as cidades a criar 500.000 hectares de novas florestas urbanas e restaurar ou manter cerca de 300.000 hectares de florestas naturais existentes dentro e ao redor das cidades do Sahel e da Ásia Central.

Não se trata de construir parques, mas pequenos resquícios de florestas naturais, às vezes em pequenos fragmentos do território. Como micro-reservas da natureza, elas fornecerão serviços ecossistêmicos e ajudarão a equilibrar o desejo de conexão com a biodiversidade que os cidadãos têm.

Um coração arborizado para as cidades
Esses grandes projetos contam com a árvore como elemento básico. A importância das árvores para as cidades é enorme . Eles ajudam a regular os microclimas urbanos , filtram a poluição do ar, fornecem sombra, absorvem CO₂ e ajudam a prevenir inundações repentinas e temperaturas extremas.

Cidades como Madrid estão constantemente a reinventar-se e procuram cada vez mais soluções verdes pela sua configuração e dinâmica insanas. Um exemplo é o recente projeto Bosque Metropolitano , que Madrid pretende implementar nos próximos anos após o lançamento de um atraente convite à apresentação de propostas .

O foco principal de florestas metropolitanas como a planejada para Madri é aproveitar ao máximo a periferia verde que circunda as cidades. Cintos verdes, anéis e conectores. A ideia é boa, lógica e prática. Mas o desafio não está aí, mas no coração da cidade, bem no epicentro da poluição e do asfalto e bem onde vive a grande maioria da população.

O desafio, no momento, dificilmente tem propostas corajosas além das impressionantes florestas verticais ou das florestas em miniatura do professor japonês Miyawaki. São contribuições brilhantes, mas pontuais, para um problema de saúde global.

A Grande Prostituta

Fonte: aqui


Autores como Karl Kraus (Viena, 1874–1936) começaram desde cedo a perceber algo que destruiria o papel fundamental da Imprensa.

Já houve um tempo em que o jornalismo era incómodo. Era sinónimo de Informação, liberdade e pluralidade de pensamento e opinião, debate, espírito critico, divulgação literária, científica, Política, etc. Esse tempo morreu!

Os Meios de Comunicação Social (Média) tornaram-se principalmente negócios e instrumentos de propaganda. A Imprensa morreu, o ideal do “jornalista” é uma memória longínqua, as grandes investigações e até a defesa apaixonada de causas fazem parte de um passado distante.

Os Média formam um grupo que vive para propagar e difundir, não o que são as coisas ou o seu ponto de vista, mas aquilo que é a narrativa oficial, diabolizando tudo o que não segue o guião pré-escrito da realidade. São uma Máquina de Propaganda.

Subjugaram-se e/ou foram assimilados por interesses económicos, políticos e até culturais. A sua função é debitar de modo repetido determinadas mensagens e slogans para que o consumidor interiorize que ideias deve repetir e aceitar. A Sociedade da informação é agora a Sociedade da manipulação massiva.

Longe de servir de maneira desinteressada os ideais universais aos quais se arroga, a Imprensa propõe e reserva os seus favores àqueles que têm meios de os pagar e os pagam efectivamente.

Não se trata tanto do fim do ideal, e do domínio do real, mas do triunfo de um falso real, o real construído para consumo obrigatório.

O jornalismo está morto e os Media são a grande prostituta dos dias actuais!

sábado, 29 de agosto de 2020

Futures against futurisms


The Futures of Education Ideas LAB space is designed to highlight original scholarship and opinion pieces that bear on issues being examined within UNESCO’s Futures of Education initiative. The ideas expressed here are those of the authors; they are not necessarily those of UNESCO and do not commit the Organization.

When UNESCO launched the Futures of Education project, none of us imagined that the theme was going to have such an immediate and urgent relevance. The tsunami that we are experiencing will have unprecedented consequences in the field of education. It is necessary to prepare ourselves, with intelligence, with the strength of cooperation, with the open sharing of knowledge.


“Everyone is wrong about the future. We can only be certain about the present. But a person with no knowledge of the future cannot understand the meaning of the present.”
This is the reason for the Futures of Education initiative - trying to look to the future to understand the present and understand all that we have to do to overcome inequalities in education, inequalities that deepen other inequalities that make the world more fragile.
The Futures of Education initiative is not a futuristic exercise, like so many others that, in recent years, have been extraordinarily popular. Futurism has three major venerations: the digital, the artificial intelligence and the brain. No one should disregard the importance of these three topics. But we must look at them with caution, as a starting point and not, as so often happens, as a solution or, even worse, as the solution.
These futurisms are linked by a common denominator: they all announce the disintegration of the school, establishing a more individualized, a more private relationship with education.
The digital announces the possibility of an education made from home or other private locations.
Artificial intelligence announces, to quote the words of Laurent Alexandre, “a transhumanist school where it will be normal to modify the brains of students using the whole panoply of nano, bio, information and cognitive science (NBIC) technologies." 

It is worth remembering a text by Edgar Morin about the Earth system which I am adapting it to the Education system:

“When a system is unable to deal with its vital problems, it degrades, disintegrates, or else it is capable of creating a process of metamorphosis. The probable is disintegration. The improbable but possible is metamorphosis.”

For me, the future relies on the metamorphosis of the school. We need a deep change in the organization of the school and in curriculum. In the organization of the school space. In the organization of the school. In our conception of curriculum, pedagogy and learning. Metamorphosis is our way out, not disintegration.

Contrary to what happened throughout the 20th century, there will not be a single model of school. Therefore, it is worth talking about futures, diverse, plural, based on experiences and projects that, fortunately, already exist all over the world. It is in the strength of these experiences, in their capacity for sharing, for mutual inspiration, that the future of education will be.

And we can never forget that education needs to be a factor to fight inequalities, and not to create even more inequalities.

Instead of following the path of consumerism, we should remember Maxine Greene’s wise words, in her Presidential Address at the AERA meeting, in 1982:

For its part, neuroscience proposes, first, to personalize learning and, then, to optimize bio-electronically the brain.
In one way or another all these futurisms aim at the confinement of education within private spheres. 

As a consequence, as David Labaree argues, education tends to be re-established through a consumerist approach that undermines the role of schooling, a consumerist approach that constitutes the greatest danger for the future of schooling.
The current situation with the coronavirus crisis does nothing more than accentuate this trend. This must be a matter of great concern to us all.
“I cannot imagine a coherent sense of purpose in education if something common does not arise in a public space”.

The phrase is brilliant and calls attention to the concepts of common and public space. Perhaps we could add – a global common good.

What I am trying to say, to conclude, is that the future that interests me involves strengthening education as a global common good that arises in a public space. This common does not mean “uniformity”, but it refers to what enables “diverse human beings to act in common and to be recognized for what they do” (Maxine Greene).

The withdrawal of education in private spheres is not a solution. The two words that interest me are diversity and cooperation: the diversity of futures and the cooperation that allows us to act in common.

Schools must experiment with new ways of organizing space and time, the work of teachers and students. The curriculum must be centered on a planetary consciousness, a curriculum of the world’s intelligence.

We are all part of the same humanity, and only a global citizenship, a global responsibility for education will allow us to find the paths of the future. In diversity, in cooperation, we strengthen education as a global common good.

António Nóvoa is Ambassador of Portugal to UNESCO, professor and former rector of the University of Lisbon, as well as a member of the International Commission on the Futures of Education.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Giannutri Soft Bottoms: from exploration to conservation

Giannutri Soft Bottoms: from exploration to conservation from Davide De Benedictis on Vimeo.

English subtitles - Subtítulos en español - Hrvatski titlovi - ΕΛΛΗΝΙΚΟΙ ΥΠΟΤΙΤΛΟΙ

Bottom trawling is the most common and destructive fishing practices in the Mediterranean Sea.
Bottom trawling represents a major threat to the seafloor ecosystem. Yet soft bottoms are not desolate stretches of sand but complex ecosystems, populated by organisms that are fundamental to the conservation of fish stocks.

Giannutri island, part of the Tuscan Archipelago National Park, is a good example of intact marine environments. The fishing ban up to three miles has preserved intact deep habitats and the particular morphology of the island's seabed allows divers to reach the "twilight zone" (i.e. he bathymetric range between 50 and 120 meters.) in a rather simple way.

Trimix, DPVs and rebreathers are perfect tools for observing still extremely intact deep environments with less invasiveness. These protected areas suggests how protection, if properly managed, can effectively maintain integrity in environments that host hundred or thousands years old organisms and provide us with natural laboratories where we can study what these environments would be like if they had not been damaged by human activities.

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La pesca de arrastre es la más común y destructiva de las prácticas pesqueras en el Mar Mediterráneo.
Estas prácticas representan la mayor amenaza a todo el ecosistema del fondo marino. Ya que los fondos blandos no son extensiones desoladas de arena, sino ecosistemas complejos, poblados de organismos fundamentales para la conservación de las reservas ícticas.

La isla de Giannutri, parte del Parque Nacional del Archipiélago Toscano, es un buen lugar para observar ambientes marinos intactos. La prohibición de la pesca hasta las tres millas de la costa junto con la particularidad de sus fondos, permiten a buceadores la fácil exploración de sus fondos blandos de la zona mesofótica, o bien, la franja batimétrica entre los 60 y los 120m de profundidad.

Las mezclas de gases, los torpedos y los rebreather, son instrumentos perfectos y menos invasivos para la observación de ambientes profundos extremadamente intactos. Estas áreas protegidas sugieren como la protección, si bien gestionada, puede efectivamente mantener la integridad de ambientes que albergan organismos de cientos o miles de años y proporcionarnos con laboratorios naturales donde estudiar el aspecto de estos ambientes, como si no hubieran estado dañados por las actividades humanas.

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La pesca a strascico è il tipo di pesca più distruttivo e praticato nel Mediterraneo.
Gli organismi presenti sui fondi mobili sono fortemente minacciati da questa attività. Eppure questi ambienti non sono distese desolate di sabbia ma degli ecosistemi complessi, popolati da organismi fondamentali per la conservazione degli stock ittici.

Nel Parco nazionale Arcipelago Toscano, l'isola di Giannutri, è perfetta per osservare degli ambienti marini intatti. Il divieto di pesca fino a tre miglia dalla costa e la peculiarità dei suoi fondali, permettono ai subacquei di esplorare facilmente i fondi mobili della zona mesofotica; ovvero nella fascia batimetrica tra i 60 e i 120 metri.

Miscele ternarie, scooter e rebreather sono strumenti perfetti per osservare con la minima invasività ambienti profondi ancora estremamente integri. Queste aree protette ci suggeriscono come la protezione, se adeguatamente gestita, possa effettivamente mantenere intatti ambienti che ospitano organismi secolari o millenari ed avere a disposizione dei laboratori naturali dove studiare come dovrebbero essere gli ambienti se non fossero stati danneggiati dall'attività dell’uomo.

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Subtítulos: Carla Huete Stauffer
titlovi: Bruna Petani
Υπότιτλοι: M. Rakka and G. Rakkas
Cover photo: Marco Bartolomucci

Short bibliography: https://bit.ly/2zOH96R

sábado, 22 de agosto de 2020

Sem medidas efectivas, vamos continuar a ter “piroverões”



Os culpados são todos os governos que temos tido, particularmente a partir da extinção dos Serviços Florestais. Porém, todos esses governantes, não só não assumem o que fizeram, como não são capazes de admitir o erro e, no mínimo, criarem novamente os Serviços Florestais.


O Governo do Líbano foi avisado, até por escrito, de que havia o risco do que ocorreu. Depois, demitiram-se como se isso fosse a condenação que mereciam pela mortalidade e destruição de que foram culpados. Por cá temos a tragédia dos anuais Verões com incêndios florestais devastadores e mortíferos, apesar de há mais de 40 anos termos (eu e outros) alertado, muitas vezes, no que estavam a transformar o nosso país, particularmente as regiões Norte e Centro: numa pira contínua de lenha altamente inflamável, isto é, eucaliptal (produtos aromáticos voláteis e altamente incandescentes) e pinhal (resina, volátil e altamente incandescente) intensivos, contínuos e contíguos. Mostrei isso de helicóptero a um Presidente da República (Mário Soares). Não valeu de nada.

Em vez de travarem ou obrigarem a uma arborização cuidada e ordenada, fizeram ainda pior: extinguiram os Serviços Florestais. Assim, deixou de haver qualquer entidade competente para regularizar e não deixar arborizar da maneira desmesurada e contínua, como aconteceu durante estas dezenas de anos. Por outro lado, nos Serviços Florestais havia os guardas florestais que viviam no meio rural. Eram vigilantes permanentes e conheciam bem a região onde circulavam. Podia haver incêndios, mas nunca foram tão devastadores e mortíferos como os actuais.

Os culpados são todos os governos que temos tido, particularmente a partir da extinção dos Serviços Florestais. Porém, todos esses governantes, não só não assumem o que fizeram, como não são capazes de admitir o erro e, no mínimo, criarem novamente os Serviços Florestais. Além disso, muito do património construído (particularmente casas florestais) ainda existe, embora a maioria bastante delapidado.

Enquanto não se tomarem medidas efectivas, vamos continuar a ter “piroverões” (pyra = fogueira) e mortes, por termos uma ignisilva (igneus = fogo; silva = floresta) contínua e contígua. 

Além dessas medidas, é fundamental também acabar com os “pirotelejornais”. Quando há incêndios, já vi telejornal inteiro com imagem de fundo de um pavoroso incêndio. Além de absurdo, é de uma tremenda falta de ética. Sabemos que não se noticiam suicídios mostrando imagens, por poderem levar à tentativa de suicídio de pessoas fragilizadas ou com essa tendência. Todos nós sabemos que existem incendiários: uns doentes (pirómanos) e outros por interesse ou vingança estúpida.

Há já muitos anos, quando ainda dava aulas (tenho 86 anos), numa altura de elevado número de fogos florestais de um piroverão, fui, uns dias, com alunos meus para a parte alta da serra da Estrela, de ampla visão panorâmica. Numa noite, depois de assistirmos a um desses pirotelejornais, fomos para cima de um rochedo observar o horizonte. Passado pouco mais de uma hora, começaram a surgir incêndios no horizonte. Foram cerca de meia dúzia, durante as horas que ali estivemos.

O espectáculo desses pirotelejornais é vergonhoso, particularmente as reportagens dos repórteres locais, pois estes “jornalistas” têm imensa preocupação em estarem a mostrar imagens dos incêndios enquanto falam e, muitas vezes, até parece estar a relatar um jogo de futebol. Com os noticiários das estações de rádio, também há uma enorme falta de ética e profissionalismo. Há uns anos, no início de um mês de Abril excepcionalmente quente, no noticiário das 5 da manhã da Antena 1, ouvi o locutor anunciar que o dia iria ser novamente quente como o dia anterior, “mas os incêndios ainda não começaram”. Prefiro não qualificar!...

Por outro lado, nestes noticiários (televisão e rádio), os entrevistados são sempre os mesmos: ministros; secretários de Estado; autarcas; comandantes de bombeiros e quejandos. Este ano até ouvi o Presidente da República afirmar que os pavorosos incêndios na região de Oleiros resultaram de falta de vigilância por causa do confinamento a que a actual pandemia obriga. Felizmente, a população portuguesa não é imbecil, como muitas vezes querem fazer transparecer as desculpas apresentadas pelos entrevistados nestes show offs televisivos.

Deviam era anunciar o número de vítimas mortais que os piroverões já provocaram nestes últimos 40 anos, muitos dos quais bombeiros voluntários, pois faltam os profissionais que conheciam o terreno e sabiam combater fogos florestais, que eram os técnicos e guardas florestais. Além disso, os guardas florestais apercebiam-se das pessoas que circulavam pelas florestas e baldios. Assim, havia muitíssimo menos fogos postos por incendiários e por pirómanos.

Infelizmente, vamos continuar com piroverões, plenos de fogos florestais, mortes e enormes despesas, muito superiores à de uns Serviços Florestais bem estruturados e um país ruralmente ordenado.

Finalmente, com tantos incêndios florestais e sem Serviços Florestais com capacidade de rearborizar ordenadamente, as regiões montanhosas do país, estão a transformar-se em desertos de rocha nua, por erosão pluviosa, com consequente arrastamento de solos, como já é visível, particularmente no Norte e Centro do país.

Biólogo

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O fim da ingenuidade

Helena Gouveia

Todos têm direito a ter a sua opinião, mas não a incentivar o crime e a violência. Fazer apologia ao crime não é ter opinião diferente. É fazer apologia ao crime. E isso não pode ser tolerado.


O discurso político português atual reduz-se a uma batalha de memes e ameaças nas redes sociais, de grupos no Whatsapp e no Telegram, um caldinho de (des)informação não mediada que alimenta ressentimentos, ódio, discurso anti-ciência, teorias da conspiração, projetos autoritários e obscurantismo religioso, ou seja: o solo fértil para a violência. Porque as palavras não são apenas palavras, elas constroem o real.

Na Alemanha, em 2015 Henriette Reker foi esfaqueada quase até à morte na véspera das eleições autárquicas de Colónia, que viria a vencer. Dois anos depois o presidente da câmara de Altena, o democrata-cristão Andreas Hollstein, foi igualmente esfaqueado, tendo sobrevivido. Já a deputada trabalhista britânica Jo Cox, em 2016, e o alemão Walter Lübcke em 2019 morreram às mãos de nacionalistas. Em Março de 2019 51 pessoas foram mortas e 49 ficaram feridas no massacre de Christchurh na Nova Zelândia, massacre transmitido em direto no Facebook. O que têm em comum estes crimes, que não são uma listagem exaustiva? Todos são da responsabilidade de supremacistas brancos. E tiveram lugar não sem antes se ter criado um ecossistema propício ao crescimento das ervas daninhas que sufocam a democracia.

Pensar, num mundo hiperconectado, que este ódio não se propagaria a Portugal, é ser-se ingénuo ou optar por deliberadamente fazer vista grossa. Em entrevista recente ao “Público”, Álvaro Vasconcelos, do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa, considera que se ultrapassou uma linha vermelha e que o “discurso racista do Chega na Assembleia da República criou as condições políticas” para a escalada que estamos a assistir. “O discurso racista mata, é violência e foi-se banalizando em Portugal, foi assumido pelo Chega, teve a cumplicidade de muita gente da sociedade portuguesa, sem que as instituições da República fizessem um repúdio frontal”.

O principal partido da oposição, leviano, flirta com a possibilidade de alianças eleitorais em vez de uma defesa inequívoca dos valores democráticos. Sendo Rui Rio um germanófilo vale a pena apontar-lhe a posição da chanceler alemã nesta matéria e recordar-lhe uma frase de Bismarck: “uma leviandade pode conduzir a um desastre”.

Chegou o momento de ficarmos preocupados. Primeiro, porque há um alinhamento de conveniência de vários movimentos e grupos de extrema-direita. Segundo, porque existe uma máquina bem oleada e com recursos financeiros, mais do que a turba que vocifera em caps lock e é incapaz de escrever em português escorreito, deve inquietar-nos o facto da extrema-direita portuguesa ser hoje mais instruída, bem-pensante e de estratos sociais mais elevados. Terceiro, porque a luta política da extrema-direita não é leal, alimenta-se daquilo que Eliane Brum tem vindo a definir como “autoverdade”: os factos não importam, verificar os factos também não interessa, o que importa é a “autenticidade” com que se dizem as mais escabrosas mentiras.

Todos têm direito a ter a sua opinião, mas não a incentivar o crime e a violência. Fazer apologia ao crime não é ter opinião diferente. É fazer apologia ao crime. E isso não pode ser tolerado.

Há momentos na história em que o populismo autoritário é “fashion”, há momentos na história em que alguns líderes parecem conversar diretamente com o Estado Maior do Céu e anunciam que o Espírito Santo lhe sussurrou ao ouvido que eram os “escolhidos”, nós sabemos como acaba a história. A complacência dos poderes públicos e do espaço mediático em relação ao Chega contribui para um sentimento de impunidade a grupos marcadamente racistas, xenófobos, com ideologias ligadas ao nazismo, para praticar lógicas de intimidação.

Mais do que ficar preocupados, ou esperar por assassinatos políticos, este é o momento para os democratas de direita e de esquerda fazerem as suas opções. O silêncio não é uma.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Greta Thunberg: "Após dois anos de greves estudantis, o mundo continua em estado de negação"

Fonte: aqui

Na véspera do encontro com Angela Merkel para lhe entregarem as 125 mil assinaturas da carta aberta aos líderes da UE, Greta Thunberg e outras ativistas voltam a criticar a inação dos governos face à dimensão da crise climática. Artigo publicado no Guardian.

Na quinta-feira, 20 de Agosto, terão decorrido exatamente dois anos desde a primeira greve climática estudantil. Olhando para trás, já muito aconteceu. Muitos milhões saíram à rua para se juntarem à luta de décadas pelo clima e pela justiça ambiental. E a 28 de Novembro de 2019, o Parlamento Europeu declarou uma "emergência climática e ambiental

Mas nestes últimos dois anos, o mundo também emitiu mais de 80 gigatoneladas de CO2. Temos assistido a catástrofes naturais contínuas em todo o mundo: incêndios, ondas de calor, inundações, furacões, tempestades, degelo do permafrost e colapso de glaciares e ecossistemas inteiros. Muitas vidas e meios de subsistência foram perdidos. E isto é apenas o começo.




Hoje, líderes em todo o mundo estão a falar de uma "crise existencial". A emergência climática é discutida em inúmeros painéis e cimeiras. Fazem-se compromissos, proferem-se grandes discursos. No entanto, quando se trata de agir , ainda estamos num estado de negação. A crise climática e ecológica nunca foi tratada uma única vez como uma crise. O fosso entre o que precisamos de fazer e o que realmente está a ser feito aumenta a cada minuto. Na verdade, perdemos mais dois anos cruciais para a inação política.

No mês passado, mesmo antes da cimeira do Conselho Europeu, publicámos uma carta aberta com exigências aos líderes da UE e do mundo. Desde então, mais de 125.000 pessoas já assinaram esta carta. Amanhã vamos encontrar-nos com a chanceler alemã, Angela Merkel, e entregar a carta e as exigências, assim como as assinaturas.

Diremos a Merkel que ela tem de enfrentar a emergência climática - especialmente porque a Alemanha detém agora a presidência do Conselho Europeu. A Europa tem a responsabilidade de agir. A UE e o Reino Unido são responsáveis por 22% das emissões globais acumuladas no passado, apenas atrás dos Estados Unidos. É imoral que os países que menos fizeram para causar o problema estejam a sofrer primeiro e pior. A UE tem de agir agora, tal como se comprometeu a fazer no Acordo de Paris.



As nossas exigências incluem acabar com todos os investimentos e subsídios aos combustíveis fósseis, desinvestir dos combustíveis fósseis, tornar o ecocídio um crime internacional, conceber políticas que protejam os trabalhadores e os mais vulneráveis, salvaguardar a democracia e estabelecer orçamentos anuais e vinculativos de carbono baseados na melhor ciência disponível.

Compreendemos que o mundo é complicado e que o que estamos a pedir pode não ser fácil ou pode parecer irrealista. Mas é muito mais irrealista acreditar que as nossas sociedades seriam capazes de sobreviver ao aquecimento global para o qual estamos a caminhar - bem como a outras consequências ecológicas desastrosas de fazer tudo como até aqui. Vamos inevitavelmente ter de mudar profundamente, de uma forma ou de outra. A questão é: as mudanças serão feitas nos nossos termos, ou nos termos da natureza?

No acordo de Paris, os líderes mundiais comprometeram-se a manter o aumento da temperatura média global muito abaixo de 2ºC, e a ambicionar 1,5ºC. As nossas exigências demonstram o que esse compromisso significa. No entanto, isto é apenas o mínimo do que tem de ser feito para cumprir essas promessas.

Portanto, se os líderes não estiverem dispostos a fazer isto, terão de começar a explicar porque estão a desistir do acordo de Paris. A desistir das suas promessas. A desistir das pessoas que vivem nas áreas mais afetadas. A desistir das hipóteses de entregarem um futuro seguro aos seus filhos. A desistir sem sequer tentar.

A ciência não diz a ninguém o que fazer, limita-se a recolher e apresentar informações verificadas. Cabe-nos a nós estudar e ligar os pontos. Quando se lê o relatório do IPCC SR1.5 e o relatório do UNEP sobre a lacuna de produção, bem como o que os líderes realmente subscreveram no acordo de Paris, vemos que a crise climática e ecológica já não pode ser resolvida dentro dos sistemas atuais. Mesmo uma criança pode ver que as políticas de hoje em dia não se conjugam com a melhor ciência atualmente disponível.

Precisamos de acabar com a destruição, exploração e destruição contínua dos nossos sistemas de suporte de vida e avançar para uma economia totalmente descarbonizada, centrada no bem-estar de todas as pessoas, da democracia e do mundo natural.

Para termos uma hipótese de nos mantermos abaixo de 1,5ºC de aquecimento, as nossas emissões precisam de começar imediatamente a reduzir-se rapidamente para zero e depois para valores negativos. Isso é um facto. E como não temos todas as soluções técnicas necessárias para o conseguir, temos de trabalhar com o que temos hoje à nossa disposição. E isto tem de incluir deixar de fazer certas coisas. Isso também é um facto. No entanto, é um facto que a maioria das pessoas se recusa a aceitar. Só a ideia de estarmos numa crise da qual não podemos sair comprando, construindo ou investindo parece provocar uma espécie de curto-circuito mental coletivo.

Esta mistura de ignorância, negação e inconsciência está no cerne do problema. Assim como está, podemos ter tantas reuniões e conferências climáticas quantas quisermos. Elas não conduzirão a mudanças suficientes, porque a vontade de agir e o nível de consciência necessário ainda não estão à vista. A única forma de avançar é a sociedade começar a tratar a crise como uma crise.

Ainda temos o futuro nas nossas próprias mãos. Mas o tempo está a escapar-nos rapidamente por entre os dedos. Ainda podemos evitar as piores consequências. Mas para isso, temos de enfrentar a emergência climática e mudar os nossos caminhos. E essa é a verdade incómoda a que não podemos escapar.

Greta Thunberg é uma ativista ambiental de 17 anos da Suécia. Este artigo foi escrito em conjunto com as jovens ativistas do clima Luisa Neubauer da Alemanha, Anuna de Wever da Bélgica, e Adélaïde Charlier da Bélgica. Artigo publicado no Guardian a 19 de agosto de 2020. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

Curta-Metragem - One Earth


"One Earth é uma curta-metragem ambiental que criei e editei para ajudar a aumentar a consciencialização sobre o nosso impacto no meio ambiente no dia a dia.Ela conta a história de como nós, globalmente e massivamente em todo o mundo, usamos os recursos para o nosso lucro de curto prazo, desflorestando, minerando, queimando combustíveis fósseis, consumindo e expandindo. Infelizmente, isso leva a muitos problemas ambientais que enfrentamos hoje em 2021, incluindo poluição global, mudança climática e extinção de seres vivos." - Romain Pennes

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Lynn Margulis, a bióloga que demonstrou que a cooperação leva ao êxito




Muitas mulheres, apesar de fazerem grandes contribuições para a ciência com impacto, não foram reconhecidas pela história. Uma delas é Lynn Margulis (1938-2011), a brilhante bióloga que descobriu a endossimbiose.

A reportagem é de Ana Toledo, publicada por Rebelión, 13-08-2020. A tradução é do Cepat.

Esta teoria descreve a origem das células eucarióticas como consequência de sucessivas incorporações simbiogênicas de diferentes células procarióticas. Quando o artigo “A Origem da Mitose nas Células” foi publicado, em 1967, no Journal of Theoretical Biology, após ter sido rejeitado anteriormente em quinze revistas, se chocou com vários pontos do paradigma neodarwiniano. Sofreu inúmeros ataques e desqualificações apesar de ter uma teoria consolidada explicativa da proliferação da vida multicelular e sua maravilhosa diversidade. Hoje, é um dos documentos mais importantes da biologia do século XX, pois representou uma mudança fundamental na compreensão da evolução das espécies.

Durante toda a sua carreira, enquanto a maioria dos biólogos enfatizava o papel da competição no processo evolutivo, ela enfatizou a cooperação, superando a arraigada crença de que só sobrevive a mais forte. Daí sua famosa frase: “A vida é uma união simbiótica e cooperativa que permite triunfar aos que se associam”.

Apesar das dificuldades, trazidas pelos próprios colegas de profissão, e do fato de durante anos ter sido mantida à sombra de seu marido, sempre foi apaixonada pelo seu trabalho e nunca deixou de pesquisar. Além disso, muitas das pessoas que a conheceram destacam seu caráter amigável e sempre pronto para a troca de ideias.

Assim como nesses dias reconhecemos e elogiamos centenas de trabalhadoras normalmente desvalorizadas da área da saúde, o setor mais feminilizado, atualmente, com 76,9% de profissionais mulheres, é uma questão de justiça reconhecer e destacar as contribuições de tantas mulheres que alcançaram uma sociedade melhor. Lynn Margulis fez contribuições fundamentais para a ciência moderna e trabalhou solidariamente apesar dos ataques. Lembrar sua história é importante para deixar de retardar o progresso, por querer invisibilizar o trabalho das mulheres.


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sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Dani Rodrik por um downgrade da globalização, ou a emergência do capitalismo 3.0



Prémio Princesa das Astúrias para as Ciências Sociais, em 2020, Dani Rodrik marca a década pelo “rigor na análise da dinâmica da globalização”, bem como por procurar contribuir para que o sistema económico “seja mais sensível às necessidades da sociedade” (como justificou o júri a escolha do galardoado). Tais predicados observam-se de modo vincado na sua obra “O paradoxo da globalização”, na qual expõe o trilema de uma época: mais democracia, mais auto-determinação nacional e maior integração dos mercados, em simultâneo, não será possível e implica escolhas decisivas a realizar. 

Não poucos observarão neste livro o captar, antecipado, de tensões sociais e escolhas disruptivas do ponto de vista político que se sucederam, nesta década, a nível mundial, talvez porque poucos tivessem tido a lucidez de perceber esta mesma (tripla) equação e de lhe oferecer uma resposta socialmente sustentável.

1-Globalização e capitalismo estão de tal modo entrelaçados que um pronunciamento acerca do futuro de um implica, necessariamente, um retirar de consequências sobre o outro (p.253), pelo que quando Dani Rodrik, em O paradoxo da globalização, tece um amplo conjunto de considerandos acerca do primeiro dos fenómenos, intentando um não menos extenso programa de reforma, afirme a emergência de um capitalismo 3.0.

2- Um tal estádio, para cujos princípios conformadores o autor pretende contribuir (ou mesmo delinear), sucede, logicamente, a um status quo ante, balizado em duas etapas fundamentais: “a sociedade de mercado idealizada por Adam Smith necessitava pouco mais do que um Estado ‘guarda nocturno’. Tudo o que os governantes precisavam de fazer para garantir a divisão do trabalho era obrigar ao respeito dos direitos de propriedade, manter a paz e recolher os poucos impostos [necessários] para pagar uma série limitada de bens públicos, tais como a defesa nacional. Durante a primeira parte do século XX e a primeira onda da globalização, o capitalismo foi governado por uma visão estreita das instituições públicas necessárias para o manter. Na prática, o campo de acção do Estado ultrapassava estes limites (como quando Bismarck introduziu as pensões para a terceira idade na Alemanha em 1889). Contudo, os governos continuavam a percepcionar o seu papel em termos restritivos. Chamemos a isto [a esta fase] ‘Capitalismo 1.0’.

À medida que as sociedades se tornavam mais democráticas e os sindicatos e outros grupos se mobilizavam contra os abusos manifestados pelo capitalismo, surgia, gradualmente, uma nova e mais expansiva visão das funções do Estado. Nos Estados Unidos, as políticas antitrust que acabaram com os grandes monopólios constituem as primeiras políticas económicas intervencionistas, apoiadas pelo movimento progressista que fazia de ponta de lança. Depois da Grande Depressão aceitaram-se, sem objecções, as políticas monetárias e fiscais activas. O Estado começou a desempenhar um papel cada vez maior para proporcionar ajuda ao bem-estar e à protecção social. Nos actuais países industrializados, a percentagem de despesa pública na riqueza nacional subiu rapidamente, desde uma média inferior aos 10% no final do séc.XIX, para mais de 20% justamente antes da Segunda Guerra Mundial. Com o eclodir a Segunda Guerra Mundial, estes países construíram complexos Estados de bem-estar social nos quais o sector público se expandiu até alcançar uma média de mais de 40% da riqueza nacional.

Este modelo de ‘economia mista’ foi o maior êxito do século XX. O novo equilíbrio que se estabeleceu entre Estados e mercados permitiu um período sem precedentes de coesão social, estabilidade e prosperidade nas economias avançadas que durou até meados da década de 1970. Chamemos a isto [a esta fase] ‘Capitalismo 2.0’” (p.253-254).

3- Esta segunda etapa, na qual é preciso atentar bem e dela colher os devidos ensinamentos – tal o seu sucesso -, esteve muito vinculada ao acordo de Bretton Woods, no qual se estabeleceu uma forma superficial de integração económica, com existência de controlos sobre os fluxos internacionais de capital, uma liberalização comercial parcial e abundantes excepções para os sectores socialmente sensíveis (agricultura, têxtil, serviços) assim como para as nações em vias de desenvolvimento. Tal permitia, portanto, a cada país, a liberdade de construir a sua própria versão nacional do ‘Capitalismo 2.0’ (p.255).

4- Ora, um dos pontos-chave na construção da nova ordem mundial passaria, para o Professor de Harvard, por recuperar, ou melhor, reinventar a principiologia inerente a Bretton Woods – que ao longo desta sua obra elogia, de modo reiterado.

5- O que correu mal, entretanto, para que o bem desenhado paradigma pós-II Guerra Mundial tivesse, sem embargo, sofrido uma inelutável erosão? Duas causas são apontadas pelo docente de Economia: a) pressão da globalização financeira; b) uma intensa integração económica.

O excesso de integração – nos moldes em que foi concretizada – obliterou duas realidades extremamente importantes: i) - “podíamos impulsionar uma integração rápida e profunda na economia mundial e deixar que os avanços institucionais chegassem mais tarde”; ii) “a hiperglobalização não teria efeitos, ou [a existirem] seriam, na sua maioria, benignos, sobre as instituições nacionais” (p.255).

Pois bem, “a crise – tanto financeira, como de legitimidade – que a globalização tinha produzido e que culminou com a queda do mercado financeiro em 2008, deixava a descoberto a imensidão destes pontos cegos” (p.255).

6- A urgência de encontrar um novo equilíbrio entre os mercados e as instituições que os sustentam à escala global é a grande demanda deste tempo. O grande problema, evidentemente, é como isto se faz.

Para Dani Rodrik, o apelo de construir, à escala mundial, mecanismos do tipo daqueles que tão bons resultados produziram em âmbito nacional, na fase do ‘Capitalismo 2.0’, é sedutor. Não obstante, utópico e, por isso, impraticável e “indesejável”.

Este é um dos topos que atravessa todo o livro, um dos mais cruciais, interessantes e controvertidos da nossa época: a proposta e a refutação, os benefícios e os inconvenientes, as potencialidades e os constrangimentos de um Governo Mundial, a sua (im)practibilidade.

8- À vista das consequências económico-sociais de uma completa integração, de um suposto mundo plano, Dani Rodrik expõe o “trilema político fundamental da economia mundial: não podemos perseguir, simultaneamente, democracia, autodeterminação nacional e globalização económica”: “se queremos impulsionar mais a globalização, temos que renunciar em parte à nação, ou à política democrática. Se queremos conservar e aprofundar a democracia, temos que eleger entre Estado-Nação e integração económica internacional. E se queremos manter o Estado-Nação e a autodeterminação, temos que eleger entre aprofundar a democracia, ou aprofundar a globalização. Os nossos problemas têm a sua raiz na nossa renúncia em enfrentarmos estas opções inelutáveis” (p.20).

9- Todavia, podemos perguntarmo-nos porque serão os termos da equação mutuamente excludentes, ou, dito a contrario, não será cada uma das parcelas compatível com as demais? Academicamente, a compatibilidade seria possível. Tal exigia, porém, um governo global, responde Rodrik.

10- No seu entender, tal afigura-se muito ambicioso, a complexidade requerida imensa, a sua eventual concretização apontaria para um futuro muito longínquo (p.20); é, em suma, “uma quimera” (p.21). Reconhecendo, é certo, que tal proposta está hoje longe de ser património de ingénuos ou utópicos, sendo reclamada por actores/académicos de diferentes proveniências, além de ser sempre a opção preferida dos seus alunos (p.222) quando os coloca perante o “trilema”, há motivos substantivos para recusar essa governança global. Motivos, aliás, “mais práticos, do que teóricos”, afiança.

11- É por a política e o social primarem que tem que haver um downgrade na globalização, no entender de Dani Rodrik, porque, de contrário, a exaltação/desespero das populações poderia levar a graves problemas sociais/de segurança; quanto à taxa das transacções financeiras (Rodrik defende a taxa Tobin), o Professor de Economia demonstra como os valores (económico-financeiros) que se apurariam, com a sua aplicação, seriam, de facto, gigantescos.

12- Porque é que a hiperglobalização poderia levar ao desespero das populações, colocando graves problemas ao Estado, no domínio social e de segurança? Porque é que, portanto, esta não é desejável e, paradoxalmente, para se sustentar a globalização (saudável) ela deve dar um renovado espaço às políticas/opções nacionais? 
Rodrik dá dois exemplos, desenvolvendo-os com grande oportunidade: os padrões laborais e a competição fiscal internacional levantam sérias questões quanto ao modo como as pessoas são afectadas pela total integração dos mercados, pelo comércio livre irrestrito. 

13- Qualquer regulamentação nas relações laborais, “do ponto de vista liberal clássico” (p.209) tem pouco sentido: se empregado e empregador acordassem 15 horas de trabalho diário, pelo salário mínimo, tal estava na sua disposição e, em nome da liberdade e da não interferência, o Estado nada tinha a dizer, ou a intrometer-se, no assunto (no quadro desta perspectiva, reitere-se). Porém, “o que pode ser bom para um trabalhador concreto pode não ser para os trabalhadores no seu conjunto” (p.209), pelo que a regulação impõe-se.

Quando falamos nos efeitos da globalização sobre os standards laborais, devemos levar em linha de conta que a possibilidade do outsourcing faz com que a minha empresa me possa substituir por um trabalhador da Indonésia. E tais trabalhadores estão sujeitos a regras niveladas por baixo quando comparadas com as do meu país – e “inclusivamente a maioria dos partidários do livre comércio”(p.210) objectaria a que estes trabalhadores, estando no meu país, estivessem sujeitos a regras diferentes, piores, daquelas a que me submeto; porque permitir, então, esta concorrência, ainda que à distância?

Por outro prisma, que efeitos, na prática, isto tem na minha situação laboral? Aqui, há que dizer que são consequências menores do que aquelas “reclamadas por muitos defensores dos trabalhadores”, mas maiores do que aquelas “que os defensores do comércio livre estão dispostos a admitir” (p.211). “Os níveis salariais são determinados, antes de mais, pela produtividade laboral. As diferenças de produtividade constituem 80 a 90% da variação salarial em todo o mundo. Isto limita, de forma significativa, o potencial de externalização dos postos de trabalho destrutivos do emprego nos países avançados. A possibilidade de uma empresa dar o meu posto de trabalho a alguém que ganha metade do que eu não constitui um perigo excessivo quando esse trabalhador estrangeiro produza metade do que eu.

No entanto, 80-90% não é 100%. As instituições políticas e sociais subjacentes aos mercados laborais exercem uma influência independente sobre os salários, à margem dos potentes efeitos da produtividade. As regulações laborais, os níveis de sindicalização e, de forma mais global, os direitos políticos exercidos pelos trabalhadores conformam o acordo entre trabalhadores e empresários e determinam como se partilha, entre eles, o valor económico criado pelas empresas. Estes acordos podem colocar os níveis salariais para cima, ou para baixo, em qualquer país nuns 40% ou mais. É aqui aonde a externalização, ou a ameaça da externalização, pode desempenhar um papel. Transferir os empregos para onde os trabalhadores contem com menos direitos – ou ameaçar fazê-lo – pode ser proveitoso para as empresas. Dentro de certos limites, pode ser utilizado como plataforma para obter concessões sobre salários e práticas laborais dos trabalhadores nacionais (…) não podemos pretender que a externalização não cria graves dificuldades para os padrões laborais de um país” (p.211).  

14- Quanto ao exemplo dos efeitos da globalização no imposto sobre sociedades, a principal ideia a reter é a de que a competição fiscal entre países – quem oferece menos impostos para as empresas pagarem – “restringe a capacidade de um país para eleger a estrutura (…) que melhor reflecte as suas necessidades e preferências” (p.211). Como, p.ex., uma robusta protecção social, resultante de uma preferência cultural, indissociável de um dado “mundo da vida”, exige um conjunto de receitas susceptível de a assegurar, percebemos bem do que aqui se cura.

Os dados acerca da evolução histórica desta incidência do imposto sobre as sociedades é extremamente elucidativo do caminho trilhado nos últimos 30 anos: “houve uma substantiva redução de impostos de sociedade, em todo o mundo, desde os princípios dos anos 1980. A média dos países membros da OCDE, excluindo os Estados Unidos, caiu de cerca de 50%, em 1981, para 30%, em 2009. Nos Estados Unidos, o imposto sobre o capital baixou dos 50% para os 39% no mesmo período. A competição entre países, pelas empresas globais, cada vez mais móveis – aquilo a que os economistas chamam ‘competição fiscal internacional’ – teve um papel nesta mudança global (…) Um detalhado estudo da OCDE descobriu que quando outros países reduzem a média do seu imposto sobre sociedades em 1%, o país em questão segue-os, reduzindo a sua taxa impositiva em 0,7%” (p.212). 

Uma nuance aqui, nada negligenciável: “o mesmo estudo mostra que a competição fiscal internacional tem lugar apenas entre os países que eliminaram os seus controlos de capital. Quando tais controles estão vigentes, o capital e os lucros não podem transferir-se com a mesma facilidade para fora das fronteiras nacionais e não existe pressão para baixar os impostos sobre o capital. A eliminação dos controles de capital parece ser o principal factor que impulsiona a redução do imposto sobre sociedades desde a década de 1980” (p.212-213).

15- Se a globalização, a cada vez maior integração dos mercados mundiais, o benefício de se deixar de proteger um dado sector nacional é tão claro, então porque não se deixa que seja a deliberação nacional, fundada no debate e discussão bem argumentada, a alcançar essa conclusão? Porque é que não se confia que os cidadãos saberão distinguir entre interesse corporativo, dissociado do bem comum, patente em determinadas reivindicações de alguns sectores, daquele que é protesto socialmente legítimo (e, assim, legitimado também)? Dani Rodrik é taxativo: a globalização, um feito que tirou milhões da pobreza e que não deve ser rejeitada em favor de um regresso ao puro proteccionismo, tornou-se num fim em si mesmo, olvidando o seu carácter marcadamente instrumental, ao serviço do desenvolvimento dos países, do bem das populações. Há que voltar a recentrar a sua missão precípua.

Em conclusão, o colaborador de publicações como The Economist ou The New York Times, sentencia: “a agenda da hiperglobalização, com o seu objectivo de minimizar os custos de transacção da economia internacional, choca com a democracia pela simples razão de que aquilo que procura não é melhorar o funcionamento da democracia, mas conseguir que seja fácil aos interesses comerciais e financeiros aceder aos mercados a baixo custo. [Sustentar/suportar politicamente a hiperglobalização] requer que apoiemos uma narrativa que dê primazia às necessidades das empresas multinacionais, aos grandes bancos e aos grandes investimentos sobre [por cima de] outros objectivos sociais e económicos” (p.225).

16- De entre as regras sugeridas para um capitalismo 3.0 está, pois, na linha de uma maior margem de manobra para as políticas nacionais – que é, igual e paradoxalmente, maior margem de manobra para uma globalização que se aguente e não seja pura e simplesmente substituída, dados os seus efeitos sociais e políticos, pelo regresso ao proteccionismo que, sem este downgrade se tornará, possivelmente, mais próximo – a hipótese de, com maior frequência, os países utilizarem as suas cláusulas de salvaguarda. Eis, em síntese, um dos momentos-chave deste livro: “Precisamos de aceitar o direito de cada país a salvaguardar as suas próprias opções institucionais. O reconhecimento da diversidade institucional não teria sentido se os países não pudessem ‘proteger’ a suas instituições nacionais (…) Estabelecer claramente este princípio faz com que estes vínculos sejam transparentes. O comércio externo é um meio para chegar a um fim, não é um fim em si mesmo. Os defensores da globalização predicam, incessantemente, ao resto do mundo que os países devem mudar as suas políticas e instituições para expandir o seu comércio internacional, tornando-se mais atraentes para os investidores estrangeiros. Esta forma de pensar confunde os meios com os fins. A globalização deveria ser um instrumento para conseguir os objectivos que as sociedades perseguem: prosperidade, estabilidade, liberdade e qualidade de vida (…) Para chegarmos a uma postura equilibrada deveríamos aceitar que os países pudessem manter os seus padrões nacionais nestes âmbitos e, se for necessário, possam fazê-lo levantando barreiras na sua fronteira quando esteja demonstrada que o comércio ameaça práticas nacionais que desfrutam de um amplo apoio popular. Se os defensores da globalização estiverem certos, o clamor pedindo protecção fracassará, por falta de provas, ou apoio. Se se equivocam, existiria uma válvula de escape para garantir que estes valores em disputa – as vantagens de uma economia aberta e os ganhos da manutenção das regulações nacionais – recebam uma atenção adequada no debate público nacional. Este princípio descarta o extremismo em ambos os lados. Evita que os partidários da globalização se imponham em casos nos quais o comércio e as finanças internacionais sejam a porta do cavalo através da qual se dê a erosão de standards amplamente aceites no próprio país. Do mesmo modo, evita que os protecionistas obtenham benefícios à custa do resto da sociedade quando não está em jogo nenhum fim público importante. Em casos menos evidentes, em que tem que existir uma renúncia mútua dos diferentes valores, o princípio obriga à deliberação necessária e ao debate, que são a melhor forma de gerir questões políticas difíceis”(p.260-261).

17- Claro está que, neste âmbito, não se pode descurar os riscos inerentes ao amplo uso destas cláusulas, enquanto forma de (claro) proteccionismo. Para o economista de Harvard, essa é uma problemática que, de facto, se coloca, mas a defesa da sua dama é, também, bem clara: “para evitar um uso indevido, as cláusulas de não participação, ou de exclusão voluntária podem negociar-se de forma multilateral e incorporar salvaguardas processuais concretas. Isto diferenciará o exercício de renúncia do proteccionismo descarado; os países que quiserem abandonar a disciplina internacional poderão fazê-lo apenas depois de satisfazer determinados requisitos processuais explícitos negociados com anterioridade. Estas exclusões não estão isentas de riscos, mas são parte necessária na criação de uma economia internacional aberta compatível com a democracia. De facto, as suas salvaguardas processuais – que pedem transparência, responsabilidade, tomada de decisões baseada em provas – melhorariam a qualidade do debate democrático” (p.264).

18- Princípios e regras propostas por Dani Rodrik para conformar o novo paradigma capitalista: i) Os mercados devem estar profundamente integrados em sistemas comuns de governança; ii) A governança democrática e as comunidades políticas estão organizadas, em grande medida, dentro dos Estados-nação e é provável que assim continuem num futuro imediato; iii) Não existe “um único caminho” para a prosperidade; iv) Os países têm direito a proteger os seus próprios sistemas sociais, normas e instituições; v) Nenhum país tem direito a impor as suas instituições a outros; vi) O objectivo dos acordos económicos internacionais deve ser a adopção de regras de tráfego para gerir o interface entre as instituições nacionais; vii) Os países não democráticos não podem contar com os mesmos direitos e privilégios na ordem económica internacional que as democracias.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Entrevista a John Perkins






John Perkins is an American author. His best known book is Confessions of an Economic Hit Man, in which Perkins claims to have played a role in an alleged process of economic colonization of Third World countries on behalf of what he portrays as a cabal of corporations, banks, and the United States government.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

A economista que defende uma mudança radical do capitalismo para o mundo pós-pandemia

Fonte: aqui
Mariana Mazzucato é considerada uma das economistas mais influentes dos últimos anos. E existe algo que ela quer ajudar a consertar: a economia global.

"Admirada por Bill Gates, consultada por governos, Mariana Mazzucato é a especialista com quem outras pessoas discutem por sua conta e risco", escreveu a jornalista Helen Rumbelow no jornal britânico The Times, em um artigo de 2017 intitulado "Não mexa com Mariana Mazzucato, a mais assustadora economista do mundo".

Para Eshe Nelson, da publicação especializada Quartz, a economista ítalo-americana não é assustadora, mas "franca e direta, a serviço de uma missão que poderia salvar o capitalismo de si mesmo".

O jornal The New York Times a definiu como "a economista de esquerda com uma nova história sobre o capitalismo", em 2019. Em maio deste ano, a revista Forbes a incluiu no relatório: "5 economistas que estão redefinindo tudo. Ah, sim, e elas são mulheres".

"Ela quer fazer com que a economia sirva às pessoas, em vez de focar em sua servidão", escreveu o colunista Avivah Wittenberg-Cox.

O valor e o preço

Mariana Mazzucato é professora de Economia da Inovação na University College London, na Inglaterra, onde também é diretora-fundadora de um instituto de inovação na mesma universidade. Também é autora do livro O Estado empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado.
O Papa Francisco, com as vestimentas papais, senta em uma cadeira e sorriDireito de imagemGETTY IMAGES
Image caption'A visão da economista Mariana Mazzucato é interessante para o futuro econômico', escreveu o papa Francisco em março

O trabalho de Mazzucato teve inclusive um impacto fora dos círculos dos economistas. "No futuro econômico, a visão da economista Mariana Mazzucato, professora da University College London, é interessante. Acho que ela ajuda para pensar no futuro", escreveu o papa Francisco, em março, em uma carta dirigida a Roberto Andrés Gallardo, presidente do Comité Pan-Americano de Juízes para os Direitos Humanos.

Mazzucato acredita que o capitalismo pode ser orientado para um "futuro inovador e sustentável que funcione para todos nós", diz a organização Ted, que promoveu três palestras com ela.

De fato, Mazzucato considera que a crise desencadeada pela pandemia de covid-19 é uma oportunidade de "fazer um capitalismo diferente". Ela fala há anos sobre a importância dos investimentos do Estado nos processos de inovação.

Um de seus objetivos é acabar com o mito de que o Estado é uma entidade burocrática que simplesmente promove a lentidão. Outro é demonstrar que na economia "o valor não é apenas o preço".

A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, entrevistou Mariana Mazzucato. Confira a seguir os principais trechos.

Línea
BBC News Mundo - Você já chegou a declarar: 'Não podemos voltar à normalidade. O normal é o que nos levou não apenas a este caos, mas também à crise financeira e à crise climática'. Essas palavras têm um significado especial para a América Latina, uma região com alto nível de desigualdade e pobreza, que luta contra as mudanças climáticas e com muitas de suas comunidades atingidas pela pandemia de coronavírus. Como podemos evitar voltar à normalidade pré-pandemia? Por que as pessoas não deveriam querer voltar a isso?

Mariana Mazzucato - A crise nos mostrou as deficiências na capacidade dos Estados e também que a maneira como vemos o papel do Estado no último meio século foi completamente inadequada.

Desde a década de 1980, os governos foram instruídos a se sentarem no banco traseiro para permitir que as empresas administrem (a economia) e criem riqueza. O Estado só poderia intervir para resolver problemas eventuais. O resultado é que os governos nem sempre estão adequadamente preparados e equipados para lidar com crises como a pandemia de covid-19 ou a emergência climática. Ao se presumir que os governos precisam esperar até que ocorra um grande choque sistêmico para agir, são tomadas medidas insuficientes.

Nesse processo, as instituições essenciais que fornecem bens e serviços públicos de maneira mais ampla (como o Serviço Nacional de Saúde no Reino Unido, que teve cortes de verbas de US$ 1 bilhão desde 2015) ficam enfraquecidas. As medidas de austeridade impostas após a crise financeira de 2008 foram o oposto do investimento necessário para aumentar a capacidade do setor público e, assim, prepará-lo para o próximo choque do sistema.

Na América Latina, é fundamental que a agenda se concentre na criação e na redistribuição de valor.
Homem com as mãos na cabeça, com números e gráficos econômicos de fundoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionPara Mazzucato, é essencial aprender com os erros cometidos após a crise financeira de 2008


Altos níveis de desigualdade e pobreza significam que existem populações vulneráveis ​​com potencial para enfrentar enormes dificuldades econômicas no contexto de uma crise como a que estamos enfrentando agora. E, para agravar ainda mais as coisas, as economias latino-americanas são caracterizadas por enormes setores informais. Em todo o mundo, incluindo a América Latina, Estados despreparados gastam menos recursos para financiar serviços públicos. Além disso, eles também têm menos opções para ajudar o setor informal, o que é desastroso para as populações vulneráveis.

Portanto, os Estados devem criar valor investindo e inovando para encontrar novas maneiras de fornecer serviços públicos a populações vulneráveis ​​na economia informal. Quando os Estados ficam em segundo plano e não se preparam para crises (o que aconteceu em muitos países, não apenas na América Latina), sua capacidade de oferecer serviços públicos é severamente prejudicada.

Mas esses serviços públicos devem fazer parte de um sistema de inovação: cidades verdes e crescimento inclusivo exigem inovação social e tecnológica. As tendências de desindustrialização na região criam dificuldades adicionais. Os Estados não têm capacidade para exigir que os produtores locais aumentem a criação de bens necessários para enfrentar a crise (por exemplo: suprimentos hospitalares), o que os obriga a depender do mercado internacional em colapso para acessar esses bens.
dois homens de máscaras carregando sacos de alimentos na ruaDireito de imagemGUILLERMO LEGARIA/GETTY IMAGES
Image captionVários setores econômicos da América Latina sofreram as consequências de medidas de confinamento para impedir a disseminação do coronavírus

BBC News Mundo - Você disse que 'a crise da covid-19 é uma oportunidade de criar um capitalismo diferente'. O que isso quer dizer? O que esta crise está nos dizendo sobre o sistema atual que outras crises não nos disseram?

Mazzucato - Há uma "tripla crise do capitalismo" acontecendo. Uma crise de saúde: a pandemia global confinou a maioria da população mundial, e está claro que somos tão vulneráveis ​​quanto nossos vizinhos, local, nacional e internacionalmente.

Uma crise econômica: a desigualdade é uma causa e uma consequência da pandemia. A crise da covid-19 está expondo ainda mais falhas em nossas estruturas econômicas. A crescente precariedade do trabalho é uma delas. Pior ainda, os governos estão agora emprestando para empresas em um momento em que a dívida privada é historicamente alta, enquanto a dívida pública tem sido vista como um problema na última década de austeridade. Além disso, um setor de negócios excessivamente 'financeirizado' tem desviado o valor da economia.

A terceira crise é climática: não podemos voltar aos 'negócios de sempre'. No início deste ano, antes da pandemia, a mídia estava cheia de imagens aterrorizantes de bombeiros sobrecarregados (tentando apagar incêndios), e não de profissionais de saúde.

Agente de saúde medindo temperatura de uma mulher

Direito de imagemEPA
Image captionSegundo Mazzucato, o atual modelo de capitalismo apresenta problemas que precisam ser resolvidos diante da crise de saúde dos coronavírus

BBC News Mundo - O capitalismo como o conhecemos pode sobreviver? Ele deve ser salvo?

Mazzucato - Essa crise e a recuperação de que precisamos nos dão a oportunidade de entender e explorar como fazer o capitalismo de maneira diferente. Isso justifica repensar para que servem os governos: em vez de simplesmente corrigir as falhas de mercado quando elas surgirem, elas devem avançar ativamente para moldar e criar mercados para enfrentar os desafios mais prementes da sociedade.

Eles também devem garantir que as parcerias estabelecidas com empresas, envolvendo fundos governamentais, sejam motivadas pelo interesse público, e não pelo lucro. Quando empresas privadas pedem resgates para os governos, devemos pensar no mundo que queremos construir para o futuro e na direção da inovação que precisamos alcançá-lo, e, com base nisso, adicionar condições que beneficiem o interesse público, não apenas o privado. Isso garantirá a direção da viagem que queremos: verde, sustentável e equitativa.

Quando as condicionalidades são bem-sucedidas, elas alinham o comportamento corporativo às necessidades da sociedade. No curto prazo, isso se concentra na preservação das relações de trabalho durante a crise e na manutenção da capacidade produtiva da economia, evitando a extração de fundos para os mercados financeiros e a remuneração de executivos. A longo prazo, trata-se de garantir que os modelos de negócios levem a um crescimento mais inclusivo e sustentável.

bombeiros da Austrália tentando apagar incêndio florestal

Direito de imagemGETTY IMAGES
Image captionNo final de 2019 e no início deste ano, a Austrália passou por uma onda de calor extrema que causou milhares de incêndios florestais
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Papa

Em 31 de março, em sua conta no Twitter, Mazzucato reagiu às palavras do papa Francisco sobre seu livro: "Estou profundamente honrada pelo papa ter lido meu livro O valor de tudo: criar e absorver a economia global e por concordar que o futuro — especialmente pós-covid-19 — tem a ver com uma repriorização de 'valor 'acima' preço'".

A especialista disse à BBC News Mundo que ela foi convidada a participar de uma comissão do Vaticano focada na economia no âmbito da pandemia da covid-19 e nos contou sobre essa experiência: "Fornecemos relatórios semanais ao papa e à Diretoria do Vaticano, antes dos discursos semanais do papa, sobre aspectos-chave da resposta económica à covid-19. É uma grande honra".
pessoas trabalhando em plantaçãoDireito de imagemREUTERS
Image captionEconomista acredita que os modelos de negócios que levam a "crescimento mais inclusivo e sustentável" devem ser priorizados


"Nosso instituto de pesquisa e inovação se junta ao grupo de trabalho de outras universidades, incluindo a Georgetown, nos Estados Unidos, e do World Resources Institute. Esses relatórios variam da economia política do alívio da dívida à reestruturação das relações econômicas público-privadas", prossegue.

Bem comum

"Nosso principal interesse é trabalhar com o Vaticano sobre como seu conceito de 'bem comum', do qual falamos em termos de 'valor público', pode ser usado para estruturar a forma de investimento e colaboração públicos e privados. Sem isso, corremos o risco de fazer o mesmo que aconteceu com a crise financeira de 2008: biliões foram injetados sem afetar a economia real. A maior parte disso voltou ao setor financeiro e a crise seguinte começou a crescer", diz ela.

"Para construir um crescimento inclusivo e sustentável, precisamos de investimento público impulsionado pelo conceito de bem comum e novos tipos de relações público-privadas que são estruturadas sob condições que criam um ecossistema mais simbiótico e não-parasitário. E temos que trazer grupos de cidadãos e sindicatos para a mesa de discussão, para garantir que não apenas tenhamos uma transição mais justa, mas que também haja vozes diferentes para definir que tipo de sociedade queremos. Acredito que a energia renovada por trás dos movimentos sociais, como o Black Lives Matter, é um bom sinal de que haverá uma forte pressão para que nossas sociedades evoluam progressivamente. Se não o fizermos, perderemos."

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