Por Ricardo Paes Mamede
A vitória de Trump nas eleições presidenciais americanas foi recebida com preocupação generalizada e há boas razões para isso. Trump tem um modo de fazer política que degrada a democracia e põe em causa o regular funcionamento do Estado de direito. A sua mensagem é contrária à coesão social e à dignidade da pessoa humana, estimulando o ódio, a intolerância e o desprezo pelo ambiente, pela ciência e pelos factos. Ao nível económico, promete uma redução de impostos que agrava as desigualdades e uma política comercial agressiva que desestabiliza as relações internacionais. Pior ainda, o regresso vitorioso de Trump é um estímulo acrescido a todos os partidos e movimentos que, em diferentes países (Portugal incluído), seguem a mesma linha política. Nada de positivo pode vir daqui.
À boleia das críticas a Trump surge muitas vezes o lamento sobre o fim de uma era de globalização supostamente feliz. O anunciado regresso do proteccionismo americano contrastaria com várias décadas de relações comerciais assentes em regras, que teriam contribuído para um bem-estar alargado à escala global.
Esta narrativa tem dois problemas. Primeiro, ignora que a globalização económica contemporânea, com as suas regras e lógicas de funcionamento, criou um conjunto de problemas sérios nas economias e nas sociedades. Segundo, é incapaz de perceber que o sucesso de Trump — e de outros movimentos políticos semelhantes — é mais consequência do que causa dos problemas decorrentes das relações económicas internacionais.
A forte expansão do comércio internacional e dos fluxos financeiros é um dos traços mais marcantes da economia global contemporânea. Sob a promessa de prosperidade generalizada, as fronteiras comerciais foram desmanteladas, abrindo espaço a uma mobilidade sem precedentes de capital, bens e serviços. Países de rendimentos baixos especializaram-se na produção intensiva de bens de consumo a baixo custo, enquanto as nações mais ricas se concentraram em sectores de alta tecnologia e serviços financeiros. Este processo resultou na criação de cadeias de valor globais, fazendo emergir uma interdependência entre economias que foi por muitos recebida como uma promessa de paz e estabilidade. Na verdade, este modelo trouxe um conjunto de distorções e desequilíbrios que colocam em causa a viabilidade de uma economia mundial integrada nos moldes actuais.
A emergência da China como superpotência industrial, assente na instalação em massa naquele país de fábricas das empresas dos países ricos a partir da década de 1980, foi um dos principais factores que contribuíram para agravar os desequilíbrios globais. A deslocalização da capacidade produtiva para a China pretendia tirar partido dos seus baixos custos de produção e aceder a um mercado potencial de grandes dimensões.
Os resultados foram, por um lado, a acumulação de enormes excedentes comerciais e de capacidades tecnológicas pela economia chinesa; por outro lado, a desindustrialização de muitos países ocidentais, com impactos nefastos nas suas estruturas sociais e no seu endividamento externo. Os poucos países que resistiram à desindustrialização daí decorrente foram aqueles que produziam os bens de que a China necessitava para o seu desenvolvimento económico. Como exemplo mais ilustrativo, a economia alemã, tendo um perÆl de especialização assente em máquinas e equipamentos de produção e transporte, viu crescer as suas exportações como poucos, à boleia da procura chinesa. Tal como a China, a Alemanha seguiu uma política de contenção da procura interna (por via de políticas salariais e orçamentais restritivas), traduzindo-se na acumulação de excedentes comerciais signifcativos face aos seus parceiros.
Assim, a par do crescimento exponencial dos movimentos de bens e capitais, a globalização contemporânea caracterizou-se por enormes desequilíbrios nas contas externas, com efeitos negativos na estabilidade financeira internacional. Os países com elevados superavits comerciais reciclaram os seus excedentes financiando os deficits dos países com contas externas negativas. Isto permitiu aos últimos continuar a consumir, mas à custa de um endividamento crescente.
Estes desequilíbrios têm estado na origem das centenas de crises financeiras e recessões económicas ocorridas nas últimas quatro décadas em diversos pontos do globo (incluindo a crise do euro, que arrastou Portugal entre 2010 e 2013). O excesso de crédito e a especulação financeira dão lugar a bolhas no preço dos activos que, ao rebentar, originam recessões profundas. A pandemia e a guerra na Ucrânia vieram acrescentar à lista de efeitos nefastos da globalização os riscos associados a um excesso de interdependência entre países no fornecimento de bens essenciais.
Longe de ser uma era dourada, a globalização económica contemporânea tem estado assim associada a fenómenos de instabilidade social, financeira e económica. Pelo caminho, milhões de trabalhadores nos países desenvolvidos viram os seus empregos desaparecer, os salários estagnar, a precariedade e as desigualdades aumentar. A capacidade dos Estados para fazer face a estes problemas fragilizou-se. Era difícil que isto não se traduzisse em instabilidade política.
Quem lamenta o fim da globalização como a conhecemos até há pouco não se limita a ignorar os aspectos nefastos das regras em vigor. Parece também confundir as vantagens inerentes às trocas comerciais entre países com uma economia global em que “regulação” significa pouco mais do que impor a cada Estado a abertura descontrolada das suas economias à concorrência internacional.
Não haja dúvidas de que o proteccionismo de Trump é simplista e perigoso. O aumento acentuado das taxas aduaneiras, acompanhado de uma atitude de confronto nas relações entre países, poderá resultar numa guerra comercial generalizada, com consequências graves para a economia global.
A solução para os desequilíbrios resultantes da globalização económica deveria, ao invés, passar por uma regulação mais robusta dos sistemas financeiros e por uma coordenação internacional das políticas cambiais e comerciais que permitisse ajustar as contas externas distribuindo as responsabilidades entre os países com excedentes e os países deficitários — na linha do que Keynes propôs há 80 anos, com pouco sucesso, no âmbito das negociações de Bretton Woods.
Na ausência de tais mecanismos de coordenação, não é de espantar que os países recorram aos instrumentos que têm à sua disposição. A solução não é boa. Desmantelar as fronteiras económicas nacionais e esperar que tudo corra pelo melhor, como em larga medida se fez nas últimas décadas, ainda o é menos.
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