Cheguei à Alemanha em 1996. Não era um clandestino, mas também não era um trabalhador plenamente legal. Trabalhava para uma empresa portuguesa com instalações na Alemanha. Os descontos eram feitos em Portugal, mas a minha vida — o meu corpo, o meu esforço, o meu dia-a-dia — ficava na Alemanha. Trabalhava aqui, pagava o custo de vida daqui, mas ganhava o ordenado de lá.
Resultado: vivia numa terra rica com o salário de uma terra pobre.
Tinha residência, mas não tinha direitos. Quando ficava doente, pagava do bolso. Não contribuía para a segurança social alemã, e, no fundo, era um trabalhador descartável. Estava legal o suficiente para produzir riqueza, mas ilegal demais para exigir dignidade.
Durante meses vivi esta realidade. Até que um italiano — sim, um imigrante como eu — me estendeu a mão e me ajudou a encontrar um emprego com contrato local. Foi então que consegui uma verdadeira autorização de residência. Foi então que comecei a ter direito à saúde, aos descontos, à dignidade. Foi então que deixei de ser escravo.
Sim, escravo.
Porque é isso que muitos trabalhadores estrangeiros são — hoje, na Europa do século XXI. Escravos modernos. Com contratos assinados, mas sem direitos. Com residência, mas sem cidadania plena. Com obrigações, mas sem proteção.
E essa realidade não é exclusiva da Alemanha. Em Portugal, a escravatura moderna também existe. Muitos imigrantes são explorados em setores como a agricultura, a construção civil ou o trabalho doméstico. Trabalham horas a fio, vivem em condições miseráveis, recebem salários de miséria e, ainda por cima, são vistos como o inimigo.
Porque a desinformação ensinou-nos a desconfiar dos fracos e a perdoar os fortes.
O pobre é acusado de sugar o sistema. O rico que desvia milhões é considerado “esperto”.
O imigrante que foge da fome é visto como ameaça. O corrupto que foge ao fisco é visto como empreendedor.
Vivemos num país onde mais de 20% dos eleitores votam em quem transforma o desespero em ódio, em quem aponta o dedo aos mais frágeis e diz: “a culpa é deles”. Não é. A culpa não é de quem tem fome. A culpa é de quem lucra com a fome dos outros.
Eu fui escravo na Europa. E por isso sei o que digo:
A verdadeira ameaça não vem de fora. A verdadeira ameaça veste fato, senta-se em gabinetes luxuosos, e continua a tratar seres humanos como se fossem peças descartáveis de uma máquina de fazer dinheiro.
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