quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Loteamento de solos rústicos: seis décadas depois, reabrimos a caixa de Pandora?


Por Pedro Bingre do Amaral
Quase sessenta anos depois, com estas novas alterações, corremos o risco de manter as carências de habitação, ao mesmo tempo que prejudicamos a agricultura, a floresta e o ambiente, ao criarmos sobre os mercados imobiliários expectativas de valorização súbita dos terrenos rústicos por meio de alvarás de loteamento concedidos ad hoc

No final de novembro foi aprovado, para audições da Associação Nacional dos Municípios Portugueses e outras entidades, um decreto-lei que, ao alterar o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), permitirá às autarquias autorizar a construção de habitações em terrenos rústicos, ou seja, fora dos perímetros até agora dados como urbanos ou urbanizáveis nas Cartas de Ordenamento dos Planos Diretores Municipais (PDM). Com esta medida o legislador pretende enfrentar o renovado problema da habitação, disponibilizando mais terrenos para a construção de casas em solos que até agora se destinavam à agricultura, à floresta e à proteção da Natureza. Já em janeiro deste mesmo ano fora promulgada uma simplificação do mesmo RJIGT, também para facilitar novas construções.

Por atendíveis que sejam as preocupações sociais destas alterações legislativas, poderemos estar perante opções não somente ineficazes de satisfazer o interesse comum em matérias de imobiliário, como também deletérias para a qualidade do ambiente e do território. As soluções plasmadas nesta iniciativa legislativa repetem, na sua essência, os erros cometidos pelos legisladores portugueses de 1965 quando para resolver o problema da escassez de habitação e das pressões especulativas se promulgaram o Decreto-Lei n.º 46673, de 29 de novembro, criando a figura dos loteamentos privados ad hoc em solo rústico. Este decreto-lei criou o enquadramento legal para o desordenamento do território dos cinquenta anos seguintes.

Em termos muito simplificados, antes deste decreto-lei de 1965 a expansão urbana processava-se nas seguintes fases. Em primeiro lugar a administração pública traçava o plano do bairro que se pretendia criar, segundo os modelos urbanísticos de cidade clássica, cidade-jardim ou cidade moderna.

Seguidamente, adquiria os prédios rústicos necessários para implantar esse novo bairro, emparcelando-os. Tal como nos países mais desenvolvidos da Europa ocidental, era então prerrogativa exclusiva da Administração Pública concretizar as expansões urbanas. Aos particulares estava vedada a transformação de solo rústico em solo urbano. O poder público comprava ou expropriava solo rústico adjacente à malha urbana preexistente, pagando por esses terrenos o valor próprio de terras cujos únicos aproveitamentos autorizados eram a agricultura ou a silvicultura, já que a nenhum privado era concedida a faculdade de urbanizar.

Concluída esta etapa, realizavam-se as obras de infra-estruturação: vias de circulação, saneamento, jardins, &c. Estas obras definiam novos lotes urbanos, os quais eram vendidos aos particulares para edificação segundo a volumetria e finalidades estabelecidos no plano. Da venda destes lotes edificáveis resultavam avultadas mais-valias urbanísticas que ressarciam os custos que o erário suportara na operação de compra de terrenos agrícolas e da construção de infraestruturas. A Administração Pública não se endividava, os proprietários de solo rústico eram remunerados pela perda de terra agrícola, os construtores adquiriam a preços não especulativos solo onde edificar, os compradores finais encontravam habitação em bairros de boa traça arquitetónica e boa qualidade de engenharia civil. Assim nasceram bairros lisboetas como Alvalade, Azul, Alvito, Benfica, Campo de Ourique, Restelo, Areeiro, Encarnação, Olivais, &c. Como o preço do solo se mantinha bem regulado, era possível reservar para fruição pública (jardins, parques, praças, largos, calçadas) uma percentagem elevada da área urbana.

Chegados, porém, a meados da década de 1960, a situação sócio-económica alterou-se: as periferias das cidades portuguesas começam a sentir os efeitos combinados de uma explosão demográfica, do êxodo rural e de uma economia em franco crescimento. Escasseava habitação para o imenso número de famílias que chegavam às cidades e vilas, principalmente na faixa litoral entre Setúbal e Viana do Castelo. Os preços do imobiliário tornaram-se proibitivos para a maioria da população; a carestia de arquitetos e engenheiros atrasava a produção de novas expansões urbanas de iniciativa pública. O orçamento de Estado estava comprometido com um esforço de guerra para sustentar o aparelho militar em África. Perante isto, num acto irreflectido, os legisladores portugueses promulgaram o já referido Decreto-Lei n.º 46673, de 29 de novembro de 1965, permitindo aos privados substituírem-se ao sector público e concedeu-lhes a prerrogativa de realizar loteamentos urbanos em zonas rurais. Abriram-se as portas ao crescimento desregrado de novas manchas urbanas, de escassa qualidade, sem se ter, em compensação, conseguido tornar a habitação mais acessível, posto que tal decreto agravou sobremaneira as pressões especulativas. Em suma: até 1965 as cidades expandiam-se gradualmente por “bairros” em terrenos emparcelados cuja qualidade supera a da maioria das urbanizações construídas após a promulgação deste diploma legal; a partir de 1965 passaram a expandir-se por “urbanizações” em parcelas agrícolas avulsas, não emparceladas, de quintas e casais. O território ainda hoje se ressente da ocupação disfuncional e inestética que se produziu nas décadas seguintes, com loteamentos densos esparzidos pelo território, retalhados segundo a lógica da antiga malha cadastral agrícola.

O governo marcelista procurou, sem sucesso, reverter o diploma legal de 1965 e avocar de novo para a esfera pública os loteamentos e o desenho urbano. O erro crasso cometido pelo legislador ao promulgar este decreto-lei continuou a ser reiteradamente denunciado por académicos durante as décadas subsequentes, sugerindo a sua revogação de modo a devolver exclusivamente à Administração Pública a prerrogativa de lotear e a tarefa de dirigir o emparcelamento de solo rústico periurbano e a sua subsequente ocupação por malha urbana. Estas sugestões foram por fim tidas parcialmente em conta, quando a Lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de maio) finalmente começou a devolver à Administração Pública a prerrogativa de regular as mais-valias urbanísticas geradas pelos alvarás de loteamento.

Ora, se esta nova revisão do RJIGT for promulgada, corremos o risco repetir os erros de há sessenta anos. Tal como então, ao justificar as alterações o legislador volta a invocar a necessidade imperiosa de enfrentar o renovado problema da habitação: a oferta existente não consegue satisfazer a imensa procura, dificultando a vida de quem procura casa. E enfrenta o problema repetindo, mutatis mutandis, a mesma doutrina laissez-faire que os legisladores portugueses aplicaram em 1965 para resolver sem sucesso o problema da habitação que então se sentia.

Quase sessenta anos depois, com estas novas alterações, corremos o risco de manter as carências de habitação, ao mesmo tempo que prejudicamos a agricultura, a floresta e o ambiente, ao criarmos sobre os mercados imobiliários expectativas de valorização súbita dos terrenos rústicos por meio de alvarás de loteamento concedidos ad hoc.

Existem alternativas que podem beneficiar todos de forma mais eficaz. Já estão previstas nos instrumentos de gestão territorial em vigor, e em especial nos PDM, abundantes áreas para loteamento: tratam-se das categorias de espaços urbanos ou urbanizáveis. É apenas nestes perímetros que se deve urbanizar. Se no interior destes perímetros se encontram vastas áreas de solos expectantes, devolutos ou derrelictos, causando por isso uma escassez artificial de terrenos onde construir novas habitações, tal situação deve-se a causas que podem ser corrigidas. A fiscalidade deve ser chamada a disciplinar os usos do solo, tributando devidamente os solos urbanizáveis de modo a desincentivar o seu subaproveitamento. O direito sucessório deve resolver os casos de prédios subaproveitados devido a dificuldades na resolução de partilhas. A fragmentação do solo urbanizável, causadora de tantos entraves à expansão urbana, deverá ser resolvida por meio de emparcelamentos urgentes.

Não falta solo urbano ou urbanizável neste país. É escusado repetir o erro histórico de urbanizar ad hoc o solo rústico. É possível compaginar habitação social e iniciativa privada no solo urbanizável hoje existente, deixando o solo rústico livre para outros usos de que todos também necessitamos: a agricultura, a floresta e a conservação da natureza. Haja uma política de solos eficaz a actuar sobre o solo urbano e urbanizável expectante, e podemos evitar a dispersão de urbanizações em solo rústico.

Segundo a antiga lenda grega, foi oferecida pelos deuses a Pandora, mulher inteligente e curiosa, uma caixa contendo inúmeros males e um único bem — a esperança. Contrariando a prudência, Pandora abriu a caixa e deixou escapar para o mundo os problemas que nela se continham. Em 1965 abriu-se, figurativamente, a caixa dos loteamentos avulsos; talvez devêssemos tê-la mantido fechada, depois de aprender com erros próprios do último século, e com os exemplos positivos dos países que melhores resultados obtiveram nestas matérias de urbanismo e ambiente. 

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