sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Lembrando António Sérgio

Li, sem grande surpresa mas com grande consternação, que são os professores contratados, os mais novos, que estão a entregar os objectivos individuais e, com isso, a boicotarem um processo de objecção a um corpo legislativo absolutamente estúpido e extremamente penalizador do país e da profissão. A ausência de surpresa deve-se ao que tenho visto nesses jovens professores. Salvo honrosas excepções, são uma cambada de cobardes absolutamente servis e, portanto, sem o mínimo das condições exigidas para leccionarem numa escola que deveria pretender formar homens livres e não meros carneiros. Contudo, e embora talvez eles próprios já sejam vítimas desse modelo educativo castrador de liberdades e fomentador do mais miserável servilismo, deveriam fazer um acto de contrição e tomarem consciência que não se pode ensinar ninguém a andar de costas direitas quando o exemplo que vêm é de alguém que rasteja, no intervalo das vénias, pelos corredores e salas das escolas. Isto parece-me ser do mais elementar bom senso. Infelizmente conheço-os e sempre me espantou esta cobardia miserável, sobretudo da parte de quem tem mais a perder com o novo pacote legislativo e teria menos consequências no caso de o ajudar a fazer implodir. Os contratados parecem não perceber que são, cada vez mais, o núcleo fundamental do modelo escolar demencial que tem vindo a ser implementado, já que, por não estarem na carreira e por isso auferirem os mais baixos salários sem quaisquer regalias, são os mais apetecíveis para a vil mentalidade que nos tutela. Como a enormíssima maioria da classe docente, também eu fui contratado durante vários anos e andei por aí à maçã do chão, como sempre costumei dizer. Como tal, conheço bem a situação, mas nunca verguei as costas, nem nunca deixei que me pusessem a pata em cima, pelo contrário, sempre pautei as minhas atitudes pelo mais elevado padrão de exigência e respeito. Ouvia os mais velhos e procurava aprender com eles o que achava que me era útil e respondia-lhes frontalmente quando necessário. Aprendi que os professores eram uma classe nobre e livre, precisamente por não se deixarem vergar, subjugar e não terem patrões a quem tivessem que responder servilmente, tínhamos colegas que ocupavam, por vezes, funções de chefia e era tudo.
Nos últimos anos, o que tenho reparado é que cada fornada de jovens colegas vem pior que a anterior, têm medo de tudo, obedecem a tudo, fazem de tudo e para quê? Para serem ainda mais espezinhados do que já são? O que espera ganhar com isso essa canalha cobarde que tem invadido as escolas? Como podem esses indivíduos, que não têm respeito por si próprios, ensinar futuros cidadãos a serem livres e a exigirem para si o respeito que todos merecemos? Deixem-me invocar António Sérgio, passados quarenta anos sobre a sua morte, a 24 de Janeiro de 1969, pedagogo e pensador brilhante que permanece mais esquecido do que no tempo de Salazar. Não será, sem dúvida, por acaso. Dizia, pois, o nosso estimadíssimo Sérgio em 1915: A albarda da resignação trazemo-la todos da escola.[1] É isto que querem perpetuar? Julgo-me afortunado por ter conseguido escapar a este destino mas, em grande parte, devo-o aos meus professores e aos meus colegas que me ensinaram a pensar pela minha cabeça e a resistir e lutar contra o que não considerava ser correcto. É grande parte do que tenho ensinado aos meus alunos e aos colegas mais novos com que lido, porém cada vez mais me parece falar para o boneco, essa gentinha já me aparece tão formatada que é quase impossível trespassar a albarda da resignação em que os formaram. Hoje vivemos um momento gritante em que essa experiência de vida os pode fazer deitar tudo a perder, ou se endireitam agora ou viverão curvados para sempre. Por isso não tenho parado de vos exortar, de escrever e tentar passar esta mensagem que julgo ser vital para a sobrevivência da intelectualidade e mocidade portuguesas.
Ainda vou mais longe, e continuo a lembrar-vos António Sérgio,[2]o objectivo mínimo para qualquer aluno de qualquer escola é não lhe fazer mal. A escola tem sido um acervo de coisas maléficas, de tratos diabólicos, de prescrições tirânicas: e é já importantíssima reforma a simples anulação das coisas más. Grande programa: não fazer mal![3] E, infelizmente, nós pactuámos com isso, esta reforma do ensino é um exemplo acabado de um programa para criar escravos, sobretudo nos cursos profissionais, que não é mais do que um ensino de segunda para impedir qualquer concorrência futura com os educados no ensino regular. Obviamente, para criar um ensino formador de escravos servis, ter-se-ia que operar, primeiro, a escravização e servilização dos professores, homens livres e de livre pensamento recusam-se a formar escravos, foi precisamente isso que a nova legislação veio fazer, nomeadamente através dos novos estatuto da carreira docente e gestão escolar. É por isso que me tenho batido tanto contra tudo isso e custa-me aceitar que colegas meus o não entendam… Essa canalha está a pactuar com a canalha que quer fazer mal à escola pública e aos alunos, quer formar cidadãos servis que aceitem tudo sem pestanejar e é contra isso que erguerei sempre a minha voz. A minha avaliação está feita, é clara e que se lixe a deles. Recuso ser servil e mais ainda, recuso a ensinar alunos a tornarem-se escravos incutindo-lhes a albarda da resignação de que nos falava António Sérgio. Talvez por isso, pelo menos assim espero que seja, a sua sobrinha-neta, Matilde Sousa Franco, deputada do PS, tenha sempre votado contra, por ter lido e percebido as obras e a lição que o seu ilustre parente nos deixou. Apenas lamento que no artigo que escreveu, recentemente, num jornal, não tenha aludido claramente a tudo o que aqui deixo dito e que, em enormíssima parte, pertence a este, injustamente esquecido, pensador e, para mim, figura cimeira do século vinte português. Ganhou o seu arqui-rival? Sinal dos tempos e da merda de povo em que nos tornámos.

Notas:
[1] Cf. Educação Cívica, 1915, foi reeditado, em 1984, pelo Ministério da Educação e, apesar do número de 25 000 exemplares garantir que existe em quase todas as escolas, devia ter sido lido pelos professores e não foi.
[2] Cf. Divagações pedagógicas. A Propósito de um Livro de Wells. 1923 in Ensaios, tomo II, Sá da Costa.
[3] Seria bom para os amantes de tudo o que é estrangeiro que se dessem ao trabalho de ler Karl Popper, que viria a escrever esta ideia mais de quinze anos depois… Contudo, como eu já sei o que a casa gasta, poupo-vos esse trabalho e transcrevo o texto: ‘o princípio de que aqueles que nos são confiados, antes de mais, não devem ser prejudicados, deveria ser reconhecido como tão fundamental para a educação como o é para a medicina. ‘Não causes dano’ (e, portanto, ‘dá aos jovens aquilo de que mais urgentemente necessitam a fim de se tornarem independentes de nós e capazes de escolher por si mesmos’) seria um objecto valiosíssimo do nosso sistema educacional, cuja realização é algo remota, embora nos pareça modesto.’ Karl Popper, A Sociedade aberta e os seus Inimigos (escrito entre 1938 e 1943), Editorial Fragmentos, Lisboa, 1993, 2ºvol., p.271. 
Isto, meus caros, era precisamente o que defendia e escrevera António Sérgio muitos anos antes.

Para Saber Mais sobre este Ilustre Pensador Português

Maria Helena Pereira, António Sérgio – Biografia (2002)
Pedro Calafate, Centro Virtual Camões - Filosofia Portuguesa (1998-2000)
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, Antologia António Sérgio (1998)

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