terça-feira, 2 de setembro de 2025

Reinterpretar o fogo num tempo que extraiu dele um novo Adamastor


Este país, que durante séculos se pensou pelo mar, hoje vê-se encerrado pelo fogo, e com a extensão crescente da área ardida, se tantos vulgarizam o apelo da indignação, fica claro como esta apenas serve para ocultar um ajuste de contas, uma consciência da realidade que emerge pelo fogo, lavrando a cada verão como o grito de um território e de uma população abandonados

Dantes era o mar, esse elemento de expansão e ligação com o mundo, espelho convulso que nos abismava diante do desconhecido, um horizonte líquido e que prometia passagem, mas se este limite aberto recuou para a margem da memória, hoje é a orla flamejante que devora pinhais e eucaliptais a cada verão e nos convoca para um espectáculo de impotência e despossessão, é o fogo o elemento que mais nos acossa, capturando-nos, dançando ao nosso redor e pintando um inferno em cerco. Se o mar foi, outrora, uma promessa e um sustento, se nos treinou para a distância, para o conhecimento dos ventos, do risco e da deriva, desse antigo mar da História o que resta? Eduardo Lourenço notou como este banhava já «sem paixão o promontório sacro, donde outrora investimos o Desconhecido para hoje ainda, por esse gesto, termos no silêncio expectante de uma memória que nos julga na sua luz imperecível um rosto e um nome que são os nossos por nós sermos deles». Outro elemento reemerge agora para nos entregar a esse resíduo final dos tempos, e conseguimos ouvir-lhe o murmúrio sobre a terra, os picos desses fogos, o ar que de súbito nos enclausura. Se antes nos pensávamos pelo mar, hoje parece ser o fogo que pensa em nós, pensa por nós, nos força a imaginar um mundo em que já não controlamos nada, mas somos o alvo constante da predação de elementos sobre-excitados, que avançam sobre nós como titãs, arrasando tudo à sua passagem. O fogo deixa, assim, de ser uma arma, a nossa primeira técnica ou indústria, e liberta-se dessa chama que se deixava contemplar, tornando-se uma muralha móvel, inferno imediato, que atravessa aldeias e compromete tudo. Parece, assim, romper com esse delírio empobrecido, essa lúgubre fantasia do quotidiano, e instala um excesso de realidade que consome a própria imaginação. O fogo deixa de ser símbolo e torna-se destino.

O historiador do ambiente Stephen J. Pyne diz que, num clima que era já propício a incêndios, as alterações climáticas e as mudanças no uso da terra, nomeadamente através da agricultura intensiva e de outras formas de exploração que apenas acumulam combustível, entrámos na era do Piroceno. Pela leitura do livro com este mesmo título, publicado entre nós pela Livros Zigurate, com tradução de Sara I. Veiga, fica claro que não se trata de um termo ostentoso ou de uma metáfora escandalosa, mas serve antes como um diagnóstico civilizacional: a história humana pode ser lida como uma história do fogo, e o tempo presente como a sua culminação mais ambígua. Desde o início, o Homo sapiens é um animal pirotécnico, distinguindo-se de todas as outras espécies pela capacidade de dominar a combustão e de a usar como extensão do corpo e da comunidade. O fogo alimentou as cozinhas e os mitos, abriu clareiras nas florestas, forjou ferramentas e territórios, e, sobretudo, instaurou uma ecologia artificial, uma ecologia do fogo, onde natureza e cultura se confundem. Assim, ao invés de propor algum rótulo geológico, o que Pyne nos oferece é uma cronologia que nos permite actualizar algumas noções decisivas. Se o Holoceno foi a idade da estabilidade climática e o Antropoceno a era em que o humano se tornou força geológica, o Piroceno é a idade em que o fogo industrial, liberto dos limites ecológicos, passou a governar. Ao queimar os combustíveis fósseis para alimentar esse estado de crisálida constante das sociedades modernas, absorvidas na mitologia do progresso, e cada vez mais alheadas da ecologia planetária, é o fogo, esse elemento que parecia condenado a tornar-se apenas metáfora ou resíduo, que regressa para nos sacudir deste estupor. Como se Prometeu tivesse finalmente partido os grilhões e viesse cobrar a dívida acumulada de séculos.

Pyne propõe, assim, uma tripla articulação: primeiro, o fogo natural, produto da fulguração terrestre, dos raios, das erupções, do acaso atmosférico; depois, o fogo cultivado, domesticado pelos humanos, agente de agricultura, de expansão, de conquista de espaços; por fim, o fogo fóssil, aquele que, desde a Revolução Industrial, escava os subterrâneos do planeta e liberta, de modo concentrado e inédito, a energia acumulada em eras geológicas. Essa última combustão – carvão, petróleo, gás natural – é a que funda o Piroceno: um tempo em que a humanidade queimou o passado fossilizado para inflamar o presente, convertendo o planeta num imenso campo de cinzas.

Sacrifício total
Deste ponto de vista, o Piroceno é simultaneamente técnico, climático e político. Não se trata apenas de incêndios florestais devastadores, cada vez mais frequentes, mas de uma mudança estrutural na relação entre as sociedades e fogo. O regime energético fóssil multiplicou a potência do fogo para lá de qualquer contenção cultural ou ecológica: onde antes havia ciclos, práticas de manejo, rituais de controlo, agora há uma combustão que não pode ser detida senão pelo esgotamento da própria matéria-prima ou pelo colapso climático. As chamas que ardem na Califórnia, na Amazónia, no Mediterrâneo ou na Austrália, são apenas sintomas localizados de uma pirotecnia global que revela o parasitismo na atitude que temos para com o planeta.

Assim, aquele fogo vivo que os povos indígenas sabiam cultivar, de tal modo que mesmo os campos de cevada pareciam inspirados nele, aproveitando-lhe o eco, deu lugar a esta irrupção descontrolada e que denuncia a lógica de supressão, fazendo nascer esse fogo que parece tomado de um ânimo vingativo, vindo reclamar com juros tudo o que lhe é devido. Neste quadro, já sem colónias nem extensões além-mar, Portugal parece recair uma vez mais nos seus vícios seculares, na tendência para a ruína que sempre nos acompanhou, vendo-se comprometido face à intriga cobiçosa que Camões já denunciara através do Velho do Restelo, cultivando as espécies mais rendosas e que mais o fragilizam. Se antes tínhamos uma agricultura que criava mosaicos, hoje deixamos apenas combustível acumulado à espera de uma faísca. Assim, não há ano em que o verão não seja atravessado pela expectativa do desastre, pelas imagens das chamas colossais, das colunas de fumo, aldeias evacuadas, cinzas a cair como uma neve sinistra. Aos poucos, o mar já não é a imagem central, mas é o fogo que molda a percepção contemporânea de um país ciclicamente em chamas, laboratório de uma era em que a paisagem se torna pira.

Quando o fogo devorar a terra inteira, se algo lhe sobreviver, talvez se diga que começou por aqui. Mas, por agora, o colapso é também da narração, pois sempre que essa coreografia macabra dos nossos verões se instala, com ela surgem os chavões e o tom enfático daqueles que preenchem os directos televisivos e que simulam o escândalo, uma má-consciência em pó para misturar em qualquer beberagem, e, para além disso, também os relatórios ministeriais e as sucessivas promessas de maiores investimentos, da afectação de mais recursos para o combate aos fogos, a criminalização, a prevenção. Por detrás de toda esta coreografia lateja uma falha de imaginação, enquanto o mais fácil continua a ser figurar o fogo como inimigo absoluto, sonhando-se a utopia de uma paisagem sem combustão. Quer-se negar os ciclos, a transitoriedade, e esse elemento de alquimia natural que o fogo providencia. Ao expulsá-lo, apenas se consegue alimentá-lo. Ao querer extinguir inteiramente as chamas, prepara-se o sacrifício total. Eis-nos, assim, diante desse Adamastor de brasas, que faz de nós mirrados argonautas de um século que nos atemoriza, sem bússola nem um verdadeiro anseio de qualquer espécie. Vemos emergir esse colosso no modo como as chamas serram ao vento, as brasas empalidecem e logo se adensam ainda mais, uma e outra vez, como o pulsar do sangue de um ser vivo eviscerado, e que se reergue, vingativo. «Assim, contemplamos o fogo que contém em si algo dos próprios homens, que são menos sem ele, estão apartados das suas origens e são exilados. Porque cada fogo é todos os fogos, e é o primeiro fogo e o último» (Cormac McCarthy). São estas as representações que emergem a partir do momento em que se quer fazer do fogo esse inimigo terrível, não nos deixando senão a hipótese de encarar o próprio futuro como um fogo devorador, que nos deixará reduzidos ao próprio fóssil da civilização que erguemos. «A imagem mais viva do inferno./ Eis o fogo em todos seus vícios:/ eis a ópera, o ódio, o energúmeno,/ a voz rouca de fera em cio», escreve João Cabral de Melo Neto.

E poderíamos levar bem mais longe este vitral em combustão, esta catedral consumida pelas chamas, como um imaginário que subitamente se propagasse também ele, sujeito ao mesmo clarão, sentindo o impulso de um deus convocado a partir das entranhas da terra. Ver-nos-emos assim cercados por «monstros sem ordem génios galopando na respiração estrelada dos meus pulmões», para trazer aqui uns versos de Ernesto Sampaio. «Olhar suculento mestre do horror e da audácia gelada em cada canto em cada flor de fumo colada aos ossos dum horizonte inocente e inesgotável/ Poeira dum astro pré-existente ao nosso espiral dos dias que estreitamos puros tripas da raiva vegetal que embrulhamos em cada palavra/ Fogo perpétuo fruto espantoso de bandeiras negras e vermelhas comboio que esmaga e canta e ninguém deterá».

Íntimo e universal
De qualquer modo, o ponto central e a advertência que colhemos nas páginas do livro de Pyne é de que esta ideologia da supressão do fogo está fadada ao fracasso. Enquanto isso, e para não comprometer os lucros, continua a acumular-se combustível, e o interior do país vê-se transformado num barril de pólvora. Ao suprimir as queimadas, esses fogos quase rituais que controlam a dispersão do mato, incubámos o tal monstro que depois só é travado quando toda a matéria que tinha à sua disposição para se alimentar foi consumida. O resultado é o que vemos verão após verão: esses incêndios imensos, tragédias como as de Pedrógão Grande, um país incinerado e que se tornou uma espécie de entretenimento televisivo para os que, nas cidades, se sentem defendidos. E o país aceita esta condição de epicentro do Piroceno, um país-vitrine do que acontece quando uma cultura deixa de integrar o fogo no seu regime ecológico e o relega apenas para o desastre.

Há aqui uma lição mais profunda, e que nos puxa para essa relação tão próxima com o fogo, sendo este, segundo Gaston Bachelard o elemento ultra-vivo. «É íntimo e é universal. Vive no nosso coração. Vive no céu. Ergue-se das profundezas da substância e oferece-se com o calor do amor. Ou pode descer de novo à substância e ocultar-se aí, latente e represado, como o ódio e a vingança. Entre todos os fenómenos, é de facto o único a que se podem atribuir com tanta nitidez os valores opostos do bem e do mal. Brilha no Paraíso. Arde no Inferno. É brandura e é tormento. É cozinha e é apocalipse.» Mesmo essa imagem de um cigarro aceso junto ao rosto, iluminando-o, admite esse ígneo impulso, esse anseio contemplativo, tão bem cultivado por estes versos da poeta russa Marina Tsvetáieva: «O cigarro arde e apaga-se,/ na sua ponta treme,/ como um poste consumido – a cinza./ Dá-te preguiça sacudi-la –/ o cigarro inteiro atravessado pelo fogo.»

Num tempo em que, diante dos avanços científicos, tudo, e até a religião, merece o seu sarcasmo, o fogo parece atravessar-se como um elemento ancestral, que vem escarnecer da prepotência que nos entregou a um estado de fragilidade absurda, colocando-nos à mercê dos elementos, e, desde logo, ao lado insano e impiedoso do fogo, que em mitologias antigas aparecia como dádiva divina, e agora surge como um Prometeu invertido. Atrás das noites, o incêndio corta pelo meio, como flor terrível que se abre no escuro. As ondas de calor mortíferas, os incêndios que acabarão por cercas as cidades, lembram teatros de guerra, e deixam claro como a criatura pirotécnica perdeu o seu pacto com a chama. Já não a domina. O Antropoceno, dito de outro modo, não é senão a face geológica do Piroceno: o homem imprime na Terra a assinatura do fogo que libertou.

Contudo, isto marca também uma cisão dentro da espécie, uma vez que, para boa parte dela, a humanidade se foi tornando em qualquer coisa de odioso. Podemos pressentir como já trazíamos o incêndio na cabeça, como um ensejo secreto de devastação de uma realidade absurdamente profana, e este já não seria justamente um país de marinheiros ou navegantes, mas de incendiários, uma vez que quem se sente queimado, devastado interiormente, toca tudo com essa ferida que anseia por degradar a envolvência, participando do horror que o consome. Nesta orla vã desfeita em que o país se transformou, condenando todos a sentirem-se estranhos à sua própria terra, é realmente de espantar que venha alguém lançar fogo à paisagem? Não é a absoluta impotência e o desvario dos sentidos que sopra intimamente uma fúria elementar, «como se um fogo celestial tornasse/ seu, de um instante para outro, os mais estranhos objectos,/ assim consagrando um intervalo/ de outro modo inconsequente// por nos dar grandeza e glória,/ ou até amor.» (Sylvia Plath).

Entre nós, quem levou mais longe esta denúncia foi certamente Manuel Bivar, que este ano assinou, com Sofia da Pala Rodrigues, a reportagem ‘País de Incendiários’, um podcast de investigação da revista Divergente, e que, no país com mais área ardida da União Europeia, vem por fim preencher uma lacuna estarrecedora, esforçando-se por nos dar a conhecer o contexto e as motivações daqueles que fazem arder Portugal. Antes desta investigação, Bivar tinha já publicado, em 2021, A Charca, livro que, apesar das suas quatro edições, continua a não ter qualquer eco nos nossos órgãos de imprensa. Assim, talvez seja desculpável que seja o seu editor a fazer esta chamada de atenção, reproduzindo aqui um excerto: «Dizem os psicanalistas que os ascetas, os pastores, os puritanos, não eliminando o esperma, se tornam possessos e puxam fogo. Mas ele não concordava com estas teorias da psicanálise. Ele odiava psicanálise. Puxam fogo porque são desgraçados, porque se sentem revoltados e porque o incendiário é, nestes matos, o revolucionário possível. Também dizem que os incendiários são alcoólicos, mas isso não explica nada. O álcool apenas dá coragem à vontade de fazer. O alcoolismo é de certa forma o oposto do puxar fogo, é um puxar fogo ao interno para esquecer o externo, enquanto no foguear o mato tudo é externo, tudo é glória. A combustão final, a salga da terra, a morte nas chamas como a menos solitária das mortes, porque se morre em conjunto com o que está em volta. Quem vê um fogo não o esquece, como quem vê a revolução não a esquece. Mas o fogo está sempre ao alcance, em acto individual e grande, e a revolução não. O fogo é a arma dos solitários e, convenhamos, não tem nada que ver com ejaculação.

O fogo, a arma dos desvalidos, dos oprimidos, daqueles a quem querem controlar e a quem tudo é negado. Basta riscar o fósforo em Julho ou Agosto e tudo vai pelos ares. Nem ricos nem pobres, nem poderosos nem indigentes, o fogo está ao alcance de todos, torna a todos iguais, dá sentido à existência, e não nega o gesto a ninguém. De­sesperado, perseguido pela burocracia da natureza, num estado mental que não lhe permitia enfrentá-los, entendia pela primeira vez o porquê de metade dos que ali subsistiam serem incendiários em potência.»

Mais à frente, Bivar ainda ensaia uma réplica àqueles que, a cada ano, com uma espécie de fulgor patriótico, encenam o seu repúdio ou incompreensão diante desses pequenos monstros no íntimo dos quais eclode essa pulsão de largar um fósforo a tudo isto, estes seres que se passeiam por ali nessa deserção etílica, como espectros que atravessam o fumo, fantasmas de tudo o que ardeu e ainda vai arder, assombrados pelo tumulto dos lugares esquecidos. «Quando os via discutir o porquê de tanto fogo posto, de tantos incendiários, dava-lhe vontade de rir de tão óbvia que era a resposta numa terra onde todos tinham sido re­duzidos ao papel de passar os dias em frente da televisão a ver programas da manhã ou agarrados a telemóveis, e que simplesmente queriam voltar a fazer parte deste mundo. Como não respeitar o velho que fechado no lar a ver tele­visão de dia e de noite, que escuta os arrotos dos dez com quem partilha o quarto e que de vez em quando morrem ao fim da tarde e só são tirados de manhã porque há falta de pessoal de noite, e que sai discreto e puxa fogo à serra numa derradeira e última acção cujo resultado assiste ser transmitido em directo na televisão? Como não respeitar o rendeiro que, expulso do terreno de que sempre tratou porque vão plantar olival intensivo, corta os carvalhos centenários, faz explodir a mina de água com dinamite e por fim puxa fogo aos matos de giestas?»

Um novo pacto
Como resulta claro da leitura do livro de Pyne, nenhuma política de fogo é neutra. Toda a técnica carrega uma imaginação, e acaba por gerar as suas catástrofes e assombrações. O século XX cultivou a fantasia prometeica da supressão total do fogo, deixando para o século XXI a obrigação de ter de aprender, à força, que a supressão alimenta o monstro, enquanto acumula combustível, alonga épocas de risco, permitindo que o menor impulso sirva de ignição a esse efeito concatenado. Começa também a ficar claro como, do lado dos homens, o fogo responde a uma ânsia de intensidade pura, prometendo vir, com a sua força, lavrar um tempo que nos esgota na sua condição intervalar, indecisa, enquanto tudo já arde, mas sem se ver. Afinal, o próprio coração é tido como um fogo encoberto que se consome e canta… Ora, sendo o país já em si uma catástrofe para aqueles que se sentem entregues a essa periferia urbana, perante estes, o fogo, esse elemento incapaz da imobilidade, mostra-se um agente de revelação, um monstro propriamente dito, no sentido em que mostra aquilo que foi escondido. E se o fio da história humana pode ler-se como uma sucessão de fogos – o fogo que aquece a gruta, a chama que cozinha e purifica os alimentos, encurtando os intestinos, e que, assim, assume uma co-autoria biológica do humano, permitindo a expansão do cérebro… e o fogo que, mais tarde, arde sob caldeiras e asfaltos –, isto diz-nos que, qualquer que venha a ser o sobressalto do capítulo seguinte, o fogo desempenhará um outro papel, e é possível que esteja uma vez mais ao lado daqueles que se sentem impotentes.

De algum modo, desde cedo o fogo nos convoca, por meio daquela sua soberba ondulação nas formas… Como diz Herberto Helder, «o fogo é que dá ao mundo os fundamentos da forma». Perante uma cultura ensurdecida, é a própria natureza que resgata a dimensão épica, e vem reelaborar os caracteres desastrosos que foram despertados por uma civilização que tende claramente para a mitificação do progresso, desertando o real, provocando a degradação dos ecossistemas e a extinção em massa da vida no planeta. O próprio fogo nuclear persiste e vê agravar-se a sua ameaça existencial a cada dia que passa. E, nisto, aqueles homens que ficaram para trás, podem não saber explicar-se melhor, e podem encontrar nessas grandes arcadas de fogo toda a eloquência que falta à sua expressão. Surge neles, assim, esse ânimo de passar fogo à criação inteira, iluminando por dentro as coisas até as carbonizar num espectáculo que sacia o lado demoníaco das naturezas inquietas que nos restam. E uma vez mais vemos como o fogo responde, nos pensa, elabora sobre o que somos. Entre os símbolos nocturnos, emerge essa escrita cheia de prenúncios quanto ao que nos espera. Por isso mesmo, Stephen J. Pyne recusa qualquer fatalismo, e vinca como esta análise da civilização humana na relação com o fogo permite entender como aquilo que se nos impõe é estabelecer uma nova política do fogo, um novo pacto, para que possamos reaprender a gerir combustões, reatar laços com práticas tradicionais de queimada controlada, reconhecer que o fogo não pode ser abolido, apenas administrado. Num planeta saturado de carbono, pensar o futuro é pensar regimes de chama. Assim, o Piroceno não é um conceito que deva apenas situar-nos numa cronologia geológica, mas aparece como uma alegoria do destino humano: o século XXI será julgado pelo modo como lidou com o fogo – se continua a queimar o passado fossilizado até ao último sopro, ou se inventa uma pirotecnia diferente, renovável, reconciliada com o ritmo da Terra.

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