domingo, 13 de abril de 2025

Palestina cedilhada


Nunca tive grande paciência para os filmes do Manuel Oliveira. Desde logo porque, nas palavras do próprio, uma imagem quando vem é para ficar. Ou seja, quando dávamos por ela, estávamos a olhar para o mesmo chaparro durante 10 minutos.
Mas tentei, até porque a minha irmã tinha a mania que via filmes independentes e eu não queria ser o bronho da família. Com os anos fui aprendendo a falar menos e observar mais. Em miúdo era exactamente o contrário. Um irritante tagarela a quem os adultos faziam o favor de pedir para se calar (eram outros tempos, não havia ainda psicólogos).
Quando entrei na Cisjordânia pela primeira vez fiquei quieto a olhar para o muro. Uma coisa é ver imagens na televisão e discutir ângulos e outra, bem diferente, é participar no dia-a-dia por aqueles lados. "Estes gajos estão presos", lembro-me, foi a primeira coisa que me veio à cabeça. Aquele muro não separa um lado do outro. Aquele muro dá a um dos lados o estatuto de prisioneiro e ao outro, o papel de carceeiro que dita as regras do jogo.
Em Gaza esta realidade é ainda pior. A concentração de pessoas é muito maior, as regras mais apertadas e a prisão ainda mais desumana. Olhar com calma para a vida daquela gente permite perceber algumas coisas e, de certa forma, formar opinião. Ter uma opinião ajuda a perceber quando nos tentam, ostensivamente, mentir.
Sei que me tentam enganar quando começam a contar a história pelo fim. O fim é o cenário que queres defender, dê por onde der. A história vai variando de forma a que justifique sempre o fim que me queres oferecer. Quando isto acontece, sei que me estão a mentir.
O fim desta história é muito simples: Israel pode matar quantos palestinianos quiser porque não gostamos de árabes. 
Agora, como isto não se pode dizer...há que ir adaptando a narrativa. Venham daí que isto hoje tem cedilhas e tudo.
1 - o Hamas faz o ataque a 7 de Outubro e o mundo aceita o início da chacina em Gaza. Somos todos #bringThemHome . Tudo normal.  Por esta altura ninguém tem coragem de discutir a evasão da prisão e o ataque aos opressores dos 20 anos anteriores. Muito menos falar nos criadores do Hamas e os porquês. As imagens das mortes israelitas estão frescas.
2 - O número de mortos em Gaza começou a aumentar exponencialmente com todos os bombardeamentos e, por esta altura, as IDF garantiam que apenas faziam ataques cirúrgicos a esconderijos do Hamas. E afirmava-se que os mortos eram, essencialmente, combatentes.
3 - Como matavam tudo o que mexia e os números não batiam certo, a narrativa voltou a levar um pouco de óleo. De facto estavam a matar civis, mulheres e crianças, mas era porque os cobardes do Hamas se escondiam atrás deles. Ao mesmo tempo não deixavam os civis saírem de Gaza para não perderem os guerrilheiros.
4 - Quando as mortes chegaram às 34 000, decidiram parar o contador. É que o Hamas só tinha 40000 efectivos e já não havia forma de esconder 15000 mulheres e crianças assassinadas. Foi então que o discurso levou nova afinação. Não havia civis inocentes em Gaza. Todos tinham ódio a Israel. Todos eram Hamas. Nesta fase lembro-me de ter escrito que, ao ver a família soterrada nos escombros, o que esperava a comunidade internacional da reacção de um homem? Pedir desculpa a Israel ou engrossar as filas do Hamas?
5 - Durante as várias fases do genocídio, especialmente mais para o fim, usaram-se os clássicos argumentos de "nem os vizinhos os querem" e "não podemos decidir quem é o agressor com base no número de mortos". Ora...podemos sim. É exactamente isso que faz um massacre ser um massacre. 
6 - Quando Trump falou na Riviera e a expulsão dos palestinianos de Gaza, uma vez mais, o mundo civilizado ficou parado. Assistiu de camarote. O cessar-fogo começou, o cessar-fogo foi interrompido e, de rajada, despacharam mais 1000. Nós já só contamos cadáveres palestinianos à centena. Menos que isso nem é estatística. 
7 - Apareceu uma manifestação em Gaza a pedir que o Hamas se fosse embora. Não duvido que muitos palestinianos não gostem deles. Acho lógico até. Não eram muitos mas foram bem aproveitados. A narrativa voltou a mudar, poucos dias após os novos bombardeamentos. Os palestinianos eram novamente reféns do Hamas. 
Esta cronologia foi toda dita e escrita nos meios de comunicação portugueses. Toda.
As pessoas que o fizeram estavam e estão a mentir. O seu objectivo, único, é justificar o massacre de um povo que desprezam sem correrem o risco de serem chamados daquilo que verdadeiramente são: racistas primários.
Irrita-me a troca de narrativa para justificar o fim. É um truque barato de argumentação de quem não tem coragem de assumir as suas posições. Certo dia um racista disse-me, sem rodeios, "por mim deviam bombardear aquela merda toda em redor de Israel". Embora seja uma posição asquerosa, pelo menos é honesta. O espectáculo de flexibilidade que comentadores e opinadores, alguns, nos estão a dar deste o 7 de Outubro chega a ser deprimente. Assumam-se, não tenham medo de ser quem são. 
Na vida, como em tudo, é bom observar, ouvir e pensar. E também é bom e honesto termos coragem de assumimos o que dizemos, sem medo que nos julguem.
Por mim, como diria outro realizador que também não me enchia as medidas, depois do genocídio de Gaza, quero é que Israel se foda.

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