De avião, a deslocação
entre Montpellier,
em França, e
Lisboa dura cerca
de cinco horas -
com uma escala
em Paris . De
comboio, o mesmo
percurso demora
mais do triplo
do tempo - a rota mais directa é
Montpellier-Madrid-Lisboa. Além
do tempo de viagem, há outra
diferença considerável: a
quantidade de gases com efeito de
estufa emitidos é muito inferior
quando se opta pelo comboio em
detrimento do avião. É por isso que
Wolfgang Cramer, director
científico no Instituto Mediterrânico
de Biodiversidade e Ecologia (em
Aix-en-Provence, França), opta pelo
transporte ferroviário sempre que
pode. Foi assim que se deslocou até
Lisboa, para participar no
Congresso da Federação Europeia
de Ecologia, que decorre até
amanhã na Faculdade de Ciências
da Universidade de Lisboa. O
PÚBLICO é media partner no evento
que tem como mote A Incorporação
da Ecologia nos Objectivos do
Desenvolvimento Sustentável das
Nações Unidas para 2030.
Em entrevista ao PÚBLICO, o
investigador que também trabalha
com o Painel Intergovernamental
para as Alterações Climáticas (IPCC,
na sigla inglesa) fala sobre a
responsabilidade dos governos, da
importância da agricultura, da
inevitabilidade dos fenómenos de
calor extremo e avisa que o degelo
da Gronelândia e da Antárctida têm
mais impacto no Mediterrâneo do que se julgava.
Para limitar o aumento da
temperatura a 1,5 graus Celsius,
como o último relatório do IPCC
já disse que era possível, serão
necessárias grandes mudanças.
O que é que está nas nossas
mãos?
O objectivo final é reduzir a emissão
de gases com efeito de estufa para a
atmosfera e as formas clássicas são
reduzir qualquer processo que
liberte estes gases - por exemplo,
conduzir, viajar de avião,
aquecimento, isolamento das casas,
comprar muito lixo que depois
deitamos fora. Mas mesmo isso não
será suficiente. E, claro, há a
questão de quão longe podemos ir.
As outras coisas que temos de
encorajar são maneiras de
armazenar os gases com efeitos de
estufa no sistema. Aí chegamos à
agricultura, que de momento é vista
como o mau da fita, porque muitas
das emissões vêm desta actividade.
Mas podemos transformá-la para
que se torne numa maneira de
ajudar a resolver o problema. Isso
leva-nos também aos solos, que são
igualmente importantes. Não
precisamos de novas tecnologias, só
temos de aplicar as que já existem.
O que o consumidor também pode
fazer é comprar produtos que
tenham pouco impacto no clima.
Mas é possível termos
agricultura que produz o
suficiente para alimentar toda a
gente e que também é
sustentável?
Acho que sim, se olharmos para isso
a uma escala global. A questão não é
tão relevante para cada país. Não
vejo por que é que Portugal deva ser
completamente independente da
Espanha ou vice-versa. Estamos na
Europa. Não acho que o argumento
da auto-suficiência ocorra ao nível
nacional. Será mais ao nível
europeu. Por exemplo, Espanha,
França, Reino Unido e Dinamarca
estão a produzir mais carne para
exportar para a China. Qual é a
finalidade? Não vejo.
E o que é que os governos podem
fazer?
No caso da agricultura, podem
incentivar a adopção de práticas
mais amigas do ambiente ao nível
nacional e europeu. Noutros sectores, como a aviação, acho que
a quantidade de emissões de gases
com efeito de estufa a que nos
permitimos é absurda. Não há
justificação nenhuma para isso. Eu
quero muito marcar esta ideia, por
isso vim na noite passada de
comboio de Madrid para Lisboa
[demora cerca de 11 horas] .
Poderia facilmente haver um
comboio de alta velocidade que
fizesse esse percurso em quatro ou
cinco horas. Por exemplo, a
primeira parte do percurso que fiz
de Montpellier para Madrid foi um
comboio de alta velocidade,
extremamente confortável. E claro
que leva mais tempo do que voar,
mas temos de perceber que não
podemos suportar esta quantidade
de emissões. Não é possível. As
pessoas voam, muitas vezes porque
é mais rápido, mas também porque
é mais barato. Não há razão para
que seja assim.
É curioso que diga isso já que,
em Portugal, se está
precisamente a discutir a
construção de um novo
aeroporto no Montijo, perto de
Lisboa. Isto parece ir contra
aquilo que sugere.
Estamos num ponto na Europa em
que os decisores políticos
perceberam que precisam de
tributar mais as viagens de avião e
que precisam de providenciar
outras alternativas. Eu não tenho
uma posição científica, mas
acredito que os governos fazem
muito para não encorajar as viagens
de avião e reduzi-las. Podia
apostar-se numa rede de comboio
de alta velocidade. Acho que depois
a questão da necessidade de
investimento num novo aeroporto
muda muito rapidamente, porque é
algo muito caro. Em França, tinham
um plano para melhorar e transferir
o aeroporto na cidade de Nantes.
Foi um projecto com 20 anos e
houve muita resistência contra isso.
No final, acabou por não ser
construído. Se perguntar o que é
que as pessoas podem fazer, eu
diria: "Votem em partidos que não
constróem novos aeroportos." As
pessoas não devem acreditar no
argumento que a economia está a
beneficiar. É uma mentira.
Nas últimas semanas na Europa assistimos a temperaturas
extremas em vários países.
Podemos culpar as alterações
climáticas?
Podemos. A razão é que talvez seja
um bocadinho complicada de
comunicar. Os críticos dizem que já
tivemos períodos muito quentes
antes. No entanto, já foram feitos
estudos muito robustos sobre a
probabilidade de tais ondas de calor
ocorrerem. A conclusão é que há
cem anos a probabilidade de tal
onda de calor chegar aos 40 graus
Celsius em Paris não era zero mas
era muito baixa. Agora, é muito
mais elevada. Pelo menos dez vezes
maior. Ainda podíamos ter uma
onda de calor muito intensa no
começo do século XX, mas o facto
de acontecer agora é ainda mais
provável. O mecanismo que a é muito claro. Há mais gases com
efeito de estufa e, por isso, mais
calor está a ficar preso na
atmosfera.
Assim sendo, podemos esperar
mais eventos destes?
Sim.
E há forma de mitigar este tipo
de fenómenos?
No que diz respeito à atmosfera, a
única forma de mitigar é retirar os
gases de efeito de estufa. Depois
podemos perguntar-nos sobre
adaptação. Há sempre duas faces
da moeda, que são adaptação e
mitigação. Por vezes, as pessoas
não querem falar de adaptação,
porque dizem que fazê-lo significa
que já se desistiu da mitigação.
Mas esse é um falso argumento.
Temos de olhar para as duas coisas.
No que diz respeito à
adaptação, muito mais pode ser
feito e muito tem de ser feito.
Por exemplo?
Adaptação não quer dizer mais ar
condicionado, mas construir
melhor as nossas casas, isolá-las
melhor. Também tem a ver com
ordenar as cidades de maneira
diferente, ter mais espaços verdes
que produzem ar fresco durante a
noite. Há muitas formas de adaptar.
O que é interessante é que outras
partes da Europa vão poder
aprender com Portugal, porque vão
ter um clima que vocês sempre
tiveram. Lembro-me que em Berlim
havia uma discussão sobre como
adaptar o maior hospital
universitário às alterações
climáticas. Eu disse: vão a qualquer
hospital em Espanha e Portugal e
olhem para o que eles fazem. Não é
preciso inovação.
Uma das grandes preocupações
neste momento em Portugal são
os incêndios. E há um relatório
da WWF que diz que, até ao fim
do século, os incêndios em
Portugal vão aumentar 40%. Isto
é inevitável?
Eu acho que não. Pode ser evitado,
porque os fogos não acontecem só
por causa do calor e do tempo seco.
São muito mais uma questão do tipo
de árvores que temos, onde e como
é que são geridas. Toda a zona Norte
do Mediterrâneo, Portugal incluído,
permitiu que muita floresta cresça
onde não existia antes (pelo menos
nos últimos séculos). Em vez disso,
existia pastoreio para cabras e ovelhas e eram esses animais que
protegiam contra os incêndios. A
questão agora é que tipo de
agricultura queremos. É algo muito
difícil de gerir em termos políticos.
Se a paisagem estiver cheia de
árvores, nem com os melhores
bombeiros podemos parar os fogos.
Mas se a paisagem for bem gerida e
existir uma boa protecção contra
incêndios o risco vai ser muito
menor.
Em 2017, arderam 500 mil
hectares em Portugal. Qual é o
impacto dessa destruição na
biodiversidade?
Depende muito do que estava lá
antes e no que passa a estar depois.
Na Alemanha, por exemplo, há
áreas onde ventos muito fortes
destruíram a floresta. A decisão foi
não fazer nada e deixar a natureza
controlar. Não é possível fazer isso
em todo o lado, mas significa que
qualquer paisagem pode ser gerida
para maior biodiversidade. Acho
que grandes áreas podem ser mais
bem geridas para maior
biodiversidade. Na agricultura, a
questão é: permitimos grandes
quintas com muitos cereais ou
encorajamos os agricultores, ao
auxiliá-los financeiramente, a
diversificar. Isso tem um grande
impacto.
Contribui há muito tempo para o
IPCC, participa na elaboração
dos relatórios quase desde o
início. O que retira dessa
experiência?
Já faz parte da minha vida. Acho que
é uma forma fantástica de conhecer
colegas que querem garantir que os
seus trabalhos são usados pelos
decisores políticos. Também tem
sido uma oportunidade de
conhecer decisores políticos. Isso
agrada-me muito. No próximo
relatório, também tenho uma tarefa
muito interessante - além de ser
parte da equipa que escreve a
introdução. Vai haver um pequeno
capítulo, que é parte do relatório,
sobre o Mediterrâneo. Eu
coordeno-o com um colega do
Egipto. São 20 páginas do relatório
em que podemos escrever sobre
este tema.
Pode adiantar alguma coisa
sobre o que será o conteúdo
desse capítulo?
Escrevemos um artigo científico na
revista Nature Climate Change sobre
a aceleração e os riscos [das
alterações climáticas no
Mediterrâneo] . É nesse ponto que
estamos neste momento. Ainda
temos tempo e vai surgir mais
conhecimento, mas essencialmente
vamos dizer a mesma coisa. O que
eu acho que é importante e também
é algo em que quero insistir na
minha sessão aqui na quinta-feira
[hoje no congresso] é que há uma
série de ligações entre o que
acontece noutros sítios do mundo e
o que se passa no Mediterrâneo.
Pessoalmente, acho que a maior é o
degelo da Gronelândia e da
Antárctida. O impacto tem sido
sempre subestimado.
Estamos a ver agora que a
Gronelândia em particular, mas
também a Antárctida, estão a
derreter muito mais rapidamente do
que se pensava. Até agora, o IPCC
dizia que o nível da água do mar
podia subir entre 60 e 80
centímetros até ao fim do século.
Mas acho que esse número está subestimado de forma dramática.
Pode ser algo entre um e dois metros
em todo o mundo. Cidades como
Veneza e Alexandria vão
desaparecer. Mas pior do que isso
(ou igualmente mau) é que muita da
agricultura do Mediterrâneo está nos
estuários dos rios. Estamos
preocupados com os nossos
próprios países, mas se pensarmos
no Egipto, é o desastre total. Se o
nível do mar subir dois metros, eles
deixam de ter o delta. E isso vai
prejudicar milhões de pequenos
agricultores no Egipto.
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