segunda-feira, 8 de abril de 2024

Serviço inútil obrigatório

Por Filipe Gil
Foi o dia mais inútil da minha vida. Bem cedo, numa manhã de sol, fui de autocarro até à Calçada da Ajuda, em Lisboa, para o dia de inspeção militar. Eu e uma centena de jovens de várias regiões do país (notava-se pelos diferentes sotaques) juntámo-nos num pavilhão do Quartel da Ajuda para ouvir um militar - não me lembro da patente - discursar sobre aquele momento e a importância do serviço militar para Portugal. Depois seguimos para uma longa fila à espera da dita inspeção. Horas e horas de espera num dia de sol que, mesmo depois do discurso do militar, não deixaram de parecer completamente inúteis.

Uma vez feitos os testes, sentei-me em frente de um outro militar para responder a um questionário. Das perguntas recordo-me de uma que julguei ter-me deixado em maus lençóis, sobretudo porque o meu interesse em ir à “tropa” era nulo. Estava muito mais interessado em continuar os estudos do que ver a minha vida interrompida durante uma série de meses para fazer o tal serviço militar então obrigatório. À pergunta: “Faz desporto?”, respondi orgulhosamente: “Sim, sou federado em andebol há vários anos!”. Arrependi-me meio segundo depois quando vi o militar a sorrir como quem dizia: “já não te safas!”. Mas a pergunta seguinte, sobre a área de estudo que ia seguir, colocou-me certamente na reserva. Respondi que ia estudar Ciências da Comunicação, e aí o militar encolheu os ombros com indiferença. Fiquei feliz. E mais feliz fiquei quando ao final da tarde os militares indicaram que não seria necessário regressar no dia seguinte como até aí estava previsto. Foram horas totalmente inúteis que não despertaram em mim qualquer veia patriótica para me juntar ao serviço militar. E naquelas horas de tédio lembrei-me do meu pai contar um dos piores momentos da sua vida: o dia em que se despediu dos seus pais para embarcar na viagem que o levou para combater na guerra em Angola. E como diz o ditado, “filho és, pai serás…”, sou pai de dois rapazes e não consigo ficar indiferente a esta memória, nem à ideia agora trazida à baila por várias chefias militares portuguesas do regresso do Serviço Militar Obrigatório (SMO)  - e o que isso implicará na vida dos meus filhos.

É certo que vivemos uma ameaça cada vez mais real de Putin atacar outros países para além da Ucrânia, o que implicará uma resposta à altura dos países da NATO (à qual Portugal pertence). Mas basta ligar as televisões e ler os jornais para ver que a forma de fazer guerra mudou, é feita com muita tecnologia e com militares muito especializados. O coronel (e capitão de Abril) Carlos Matos Gomes relembrou isso mesmo num artigo publicado na revista Visão esta semana: “As guerras atuais assentam em sofisticados sistemas de armas e os soldados só servem como alvo e para morrer dentro das trincheiras”. Será preciso acrescentar mais?

Convém relembrar que, em tempos, as forças armadas, tal como a ida para o seminário, eram formas de sair da pobreza extrema da ditadura de Salazar. Um país que viu demasiadas vezes os filhos das famílias amigas do regime serem dispensados de irem “à tropa” ou de serem enviados para a guerra. 
Por isso, ao invés de se pensar no SMO “com base em estados de alma”, como disse o general Luís Valença Pinto na edição de ontem do DN, não será sim melhor pensar o assunto com estratégia para  “valorizar a carreira militar”, como disse em campanha Pedro Nuno Santos ou criar um “sistema de incentivos” para a carreira militar como disse na mesma altura o agora primeiro-ministro Luís Montenegro?

Em tempo de paz, o serviço militar obrigatório vai interromper a vida de muitos jovens, que nesse período devem ter outras experiências muito mais interessantes , estudar, viajar, entre outras coisas. Já se for em tempo de guerra, o SMO servirá para mandar carne para canhão. E se há cerca de um milhão de portugueses muito ávidos de saudosismo, convém relembrar todos os dias que são uma minoria, o resto não vai em cantigas saudosistas. Mas o caminho não é por aí, devemos pensar sim no serviço militar com uma forte vertente profissionalizada, bem paga, e sempre como uma escolha, nunca como uma obrigação. Ideias avulsas, atiradas para o ar, como esta do regresso do SMO, tiram-nos o foco do que é importante e de tratar os assuntos de forma séria. Mas vá, concentremo-nos no que importa: o velho e o novo logótipo do governo português…

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