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terça-feira, 22 de março de 2022

D. Jaquina, atira o soco

D. Jaquina, atira o soco

Era uma mulher truncada, muito alta (1.85 m ou mais) e algo disforme. Os braços e pernas muito musculadas e um peito estreito e pequenas mamas. Era mais alta que o marido e muito mais nova. Faziam uma diferença de 20 anos. Nazarena, vestia com rigor e usava sempre as sete saias. O marido, pescador, natural de Gaia, apaixonou-se pela D. Jaquina e vieram viver para a minha aldeia, Lamaçães (Gaia). Os pratos principais eram quase sempre peixe, que o Zé da Afurada, seu marido, trazia e vendia também para nós. Ambos eram ateus convictos. Não havia em sua casa retratos de Nossa Senhora de Fátima, Jesus Cristo nem estatuetas religiosas. As testemunhas de Jeová eram corridas `porta fora. Jaquina vivia e ficava feliz e menos ansiosa com limpezas. Ela adorava o que fazia. Ganhava o dinheiro como empregada de limpeza de algumas famílias ricas. Não podia ver uma nódoa em lugar algum. Um pouco de poeira e já a víamos atarefada a limpar o pó. Lavava a roupa num tanque comunitário e em Gaia transportava em cima da cabeça quilos de roupa dos ricos. Não se importava. Queria era limpar e lavar. Cortinados, lençóis, cobertores, toalhas, roupa… lavava com precisão e com toda a vontade.

D. Jaquina tinha um defeito: linguaruda, adorava cosquice e enfrentava como um toiro qualquer mulher que se lhe opunha. Peixeira, como se diz. Soltava merda e foda-se como o ar que respirava. Chamavam-lhe a atenção que a PIDE podia ouvi-la e ter chatices. “Eles que venham que eu lhes atiro um soco e espeto-o na tola deles”. E aí ficou o cognome D. Jaquina atira o soco. Eu e os rapazes da aldeia quando a víamos chegar, escondíamo-nos numa esquina e gritávamos “Jaquina atira o soco” e ríamo-nos despregados. Ela ficava confusa e ralhava connosco. Depois passou.

Isto tudo a propósito da religião. Até aos meus doze anos o meu mundo era católico. Estava preparado para receber o Crisma. Era estimado pelo padre da aldeia e pelos meus catequistas. Ia aos encontros católicos e era escuteiro. Mas já tinha as minhas dúvidas. Porque faleceu tão cedo o meu pai? Tinha apenas 70 anos. Porque fui tão doente na infância: 6 cirurgias, 6 hospitalizações, 6 doses de morfina, 12 doses de penicilina, vida quase entre escola, ambulâncias, hospitais e casa. Via a minha irmã mais velha a sofrer do coração e isso entristecia-me. Quando mudei de casa fui viver para o centro de Gaia e fui ao cinema pela primeira vez. O filme Apocalypse Now foi como um soco que me atiraram à cabeça. Tinha 13 anos. A partir daí questionei a religião e muitos anos fui estudando as várias religiões. Condeno os fundamentalismos, sou anti-fatimista, condeno os exércitos religiosos e o terrorismo baseado na religião. Sou ecofeminista, pelo empoderamento dos povos indígenas. Acredito profundamente num mundo sem armas, no pacifismo. Não aceito um plano inteligente de Deus na criação do Mundo. Sou pela despenalização do aborto desde muito cedo e sou a favor da eutanásia. Mas gosto muito dos textos de Leonardo Boff, aprecio imenso os cantos gregoriano e ortodoxo e bizantino. Gosto muito de S.Francisco de Assis, Santo António e Santo Agostinho. Falo com eles como se fossem irmãos. Vejo agora a religião mais do ponto de vista literário, filosófico (aprecio imenso Espinoza) e artístico. Completamente ateu não sou. Considero-me um cristão crítico.

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